Crônica de uma controvérsia crônica

Pró-Ética - SPRJ

Tu és meu irmão. Vós sois meus irmãos. Mas quão amarga por vezes se torna essa fraternidade. Ca-mus. (Os justos)

Wilson de Lyra Chebabi

Introdução e proposta de estilo

Não é para tomar parte numa militância de qualquer dos lados da controvérsia, nem para oferecer documentos e fatos, nem para justificar ou condenar que ela exista, que proponho as considerações seguintes. O foco que pretendo usar é o de tentar substituir o duelo pelo estudo. Procuro examinar as distorções da co-municação pelos antecedentes que configuram a teia de significações. O conflito tem lugar em função da dificuldade enorme - intensificada pela carga passional envolvida - de tradução de um dialeto para o outro.

Eu próprio não estou neutro, como ninguém está, e ao longo de todo o meu percurso tenho me opos-to ao poder conseguindo exercer a atividade que é indispensável ao exercício do pensamento: a atividade crítica.

Por este motivo procuro escrever uma crônica, isto é um depoimento contemporâneo do que me chegou até os nossos dias. Esta crônica tenta contribuir para desfazer ao impasse que tem permanecido ao longo dos anos.

Escritos como este não separam a arte do pensamento: como o filósofo, pretende ir além do mera-mente factual empírico, e como o artista procura realçar os acontecimentos naquilo que ofereça melhor apre-sentação do seu sentido. Pude contar com a colaboração de Dina Moscovici, que faz teatro, para procurar melhorar expressividade, já que o meu estudo quer melhorar a comunicação. Não é pois de modo algum um julgamento e sim um conjunto de reflexões a respeito dos impasses dramáticos a que podem chegar os trans-tornos da comunicação.

Minhas imPlicações

De repente, nas diligências conflituosas dos confrontos, a minha sociedade perdeu o nome designativo de sua natureza - psicanalítica- e de seu sítio (que agora é site) - Rio de Janeiro e com um número: Rio Um, porque na ordem numérica foi a primeira a ser reco-nhecida ou encomendada pela IPA daquela época.

Falo do lugar de alguém que começou sua primeira análise no fim da década de 50, com o propósito de desenvolver recursos anímicos para viver uma qualidade melhor de vida pessoal e profissional, sem ne-nhum compromisso de formação. No fim de oito anos, já trabalhando em clínica com pacientes particulares, comecei uma formação na sociedade que agora está sendo chamada Rio 2. Continuei com o mesmo analista que então havia se titulado "didata". Depois de algum tempo, em seu entender, o trabalho com ele havia se esgotado. Procurei, então, aquele que primeiro procurei - figura importante na época da constituição do se-gundo grupo psicanalítico reconhecido pela IPA no Rio de Janeiro - e prossegui a formação iniciada até que pouco tempo após essa mudança, foi-me imposto escolher outro analista, pois ele havia sido expulso. Recu-sei-me e tive de suspender a formação.

Esta foi a experiência crucial que me abriu os olhos e me fez sentir profunda e dolorosamente que quando um processo analítico entra em conflito com as formalidades burocráticas, fenece o processo e do-mina o poder burocrático.

Esboço da evolução da controvérsia

Até hoje, esse estágio da psicanálise no Rio de Janeiro só foi exaustivamente estudado, que eu sai-ba, por Nádia Sério em sua tese, que acompanha a evolução na SPRJ mas não da SBPRJ. Essa tese permanece escassamente lida.

Apesar da importância que damos ao passado na configuração do presente, nossas instituições fo-mentam uma amnésia do que aconteceu para melhor "adaptar-se" ao poder atual. Acredito que seja este o núcleo do que aconteceu na SPRJ e que se tentou sepultar no esquecimento, como tantas outras coisas. Com esse sepultamento, as instituições tendem a se tornar mausoléus e não assumem assim a vitalidade das mu-danças. O episódio do médico de uma equipe de tortura candidato a analista e o seu didata, também ainda não exaustivamente estudado. Como agir com um paciente, médico e candidato a psicanalista, cujo modo de viver insulta frontalmente a ética médica? Mas isso também se refere à dúvida de como agir se o paciente tem HIV positivo e não previne nem protege os parceiros ou cometeu um crime, etc. Este aspecto urgente e de maior interesse do que o fato particular de Amílcar Lobo já resolvido por sua própria conta (já que este mor-reu e seu didata foi expulso da IPA), continua em suspenso. Pelo fato deste tema não estar sendo seriamente trabalhado, os fantasmas vagam encriptados em nossa vida institucional, paralisando a capacidade de reflexão e em conseqüência a produção.

A amnésia social é a arma fundamental de todo sistema autoritário. Ter-se factualmente resolvido o problema não significa ter resolvido os impasses ideológicos do exercício da psicanálise daquela época e que se tenha extinguida a questão. Os aspectos institucionais tiveram uma intensa participação nessa tragédia. E certamente foi uma catástrofe pessoal na vida de várias pessoas e na da instituição SPRJ e na psicanálise do Rio de Janeiro, do Brasil e finalmente do mundo todo à medida que foi se tornando conhecido e conscientiza-da a ocorrência. Dessa ferida continuamos a sofrer até hoje.

Vários colegas demitem-se de enfrentar a crise afirmando que "quando os acontecimentos gerado-res de toda essa situação se deram há trinta anos atrás, ainda não se haviam formado em curso superior". A-cham que não têm nada a ver com essas circunstâncias, esquecendo que estão diretamente implicados nelas. O que se evita enfrentar e estudar, permanece como fantasma na genealogia institucional. Quando não resolvida, a história retorna.

Omissão do uso da ferramenta do nosso ofício

Insisto em repetir que a controvérsia ainda não foi devidamente estudada do ponto de vista psicana-lítico, porque estou convencido que o que tem tornado vãs as tentativas de "conciliação" do Grupo Pró-Ética e do Rio 1, tem sido justamente a evasão do estudo das conseqüências éticas, terapêuticas, transferenciais e contra-transferenciais do modo do analista - no caso didata - colocar-se diante de impasses desse tipo. Esque-cemos que coisas assim já aconteceram e podem sempre acontecer com todos nós. Nem todos, felizmente, são didatas, o que nem sempre torna menos grave a situação.

Em vez do estudo, o que tem acontecido é o confronto combativo ou as tentativas que visam tão somente a "conciliação". Para psicanalistas que dispõem de uma ferramenta valiosa de penetração nos recôn-ditos da alma humana, a meta da conciliação é um procedimento behaviourista que serve como defesa contra a necessária elucidação dos núcleos dolorosos de truncamento da comunicação que foram se acumulando ao longo da evolução da atividade psicanalítica no Brasil e no mundo.

O que mais martiriza é o beco sem saída de limitação à "campanhas" contra esta ou a favor daquela facção. E quase nada aprendemos com todo esse martírio. E entretanto proclamamos que a análise é um pro-cesso doloroso e é o seu enfrentamento que aciona o crescimento e nos permite chegar a um amadurecimen-to mais consistente. O que está impedindo que assumamos o sofrimento e com ele possamos crescer?

A pergunta tem sido ignorada. A resposta mais comum é a de que a psicanálise seria uma ciência que teria como objetivo o estudo e a técnica de tratar o mundo interior das pessoas que sofrem de conflitos entre as suas instâncias psíquicas. Seus conflitos profissionais, conjugais, políticos e sociais só seriam considerados como projeções dos seus fantasmas íntimos. Dentro dessa premissa, aos psicanalistas não caberia a responsa-bilidade de ocupar-se dos conflitos, paixões e violências que atravessam a sua vida convivial. Quando surgem conflitos institucionais as duas partes do conflito ou querem desvencilhar-se dos opositores ou sentenciam que os adversários precisam de mais análise. Nunca se batalha pela análise dos vínculos. Os estudos que se fize-ram, desde o próprio Freud sobre os fatores inconscientes acionados e mantidos em funcionamento nos gru-pos, nas famílias, nas instituições e na própria sociedade, seriam trabalhos diletantes de aplicação das teorias psicanalíticas sem finalidade pragmática imediata. O ideal de uma análise seria somente um processo indivi-dual diário, sem nenhuma consideração pelo aspecto da trama sócio familiar interveniente no sofrimento e no comportamento do paciente. Ter-se-ia superado a fase da teoria do trauma e tudo precisaria ser resolvido por um processo no qual o paciente se descobrisse vítima e algoz de si mesmo. Evidentemente essa posição está em contraponto com a que considera, ao contrário, toda sintomatologia pessoal somente como coagulação no paciente das contradições, paradoxos, violências e seduções das famílias, das escolas, dos costumes, da arti-culação sócio-econômica em que todos vivemos imersos.

Qualquer uma destas posições revela o seu sectarismo e a sua desmesura, com irrevogável evidência. A primeira chegou a conduzir durante muitas décadas a uma interiorização dos pacientes. avessa à participa-ção no exercício da cidadania e a necessidade de fazer do tratamento analítico um cerimonial de expiação. A segunda que tem explodido nos últimos anos constitui um retorno à teoria do trauma sem levar mais em conta o poder da fantasia e do desejo. Cada parte de qualquer controvérsia empenha-se em provar que é vítima da outro. É o outro que é a doença. E é assim que se tem dado a controvérsia que estamos tentando pensar. Ne-nhuma das duas partes estuda com zelo os benefícios que o oponente trouxe ao nosso ofício sem que isso possa invalidar a causa de cada uma.

Em qualquer desses pólos, a psicanálise praticada sob a influência de sua política institucional tem sido uma plutocracia (dominação da classe detentora dos meios ) em contraste com a isonomia - igualdade de direitos. Isto corresponde à noção grega de hybris (Na tragédia grega, o orgulho, a arrogância do herói, responsáveis por sua queda.) em contraste com o métron (instrumento para medir - comedimento no sentido grego originário). A enfermidade na medicina hipocrática deixa de ser pecha e castigo para ser alteração da boa ordem da natureza. O entendimento mais profundo pois de política tem a ver com a preservação do equi-líbrio. Política seria a arte de distribuir com comedimento os direitos e evitar as desmesuras, que são as causas de enfermidade (Laín Entralgo, 1970.) Isto é bem diferente da proposta de chamar de política a ar-mação de estratégias para armar-se e desarmar o adversário.

A teoria psicanalítica parte do conceito de desequilíbrio da economia anímica como causador das neuroses. O excesso de contenção das moções pulsionais dá lugar a que em outra situação caia no excesso violento da reação descabida. O exercício saudável da existência consiste em conseguir o equilíbrio entre a dimensão dionisíaca e a apolínea, para usar o universo conceitual inicial de Nietzsche (1872). Na medida em que a prática psicanalítica consegue os seus resultados por meio da elaboração (Durcharbeitung), e a elabora-ção é a reabertura vivenciada de focos conflituosos, amordaçados ou descarregados por atos insuficientemente pensados, para instrumentar o ganho do equilíbrio entre esses dois pólos: o da contenção e o da incontinên-cia.

Ora, é exatamente o que nós psicanalistas não estamos conseguindo fazer em nossas atividades insti-tucionais. Pergunta-se de modo cada vez mais perplexo o que vai ser da psicanálise. Qual seu futuro? O que a está minando? Também em sua história observa-se a mesma "hybris": salvação para todos os males humanos ou blefe enganador que só faz arrebanhar iludidos. A raridade de profissionais induzia, nos anos 60, 70 e ainda mesmo nos 80, a uma corrida precipitada aos consultórios e enormes eram as filas de espera. Um mon-tante grande dessa clientela buscava iniciação para uma futura profissão de psicanalista , tentando aprender o ofício com o próprio analista. Evidentemente, os resultados em termos de alcançar uma maior excelência da qualidade de vida eram pouco comparáveis com a maioria que, ou saia insatisfeita com a sua própria vida, ou partia para se tornar também psicanalista e haurir também do prestígio e da garantia de trabalho. Para tanto faziam graduação em Medicina, enquanto pelas regras das sociedades só permitiam a formação para médicos e depois em Psicologia. Psicólogos passaram a constituir a clientela predominante da maioria dos psicanalis-tas mais conhecidos.

E aí se constituiu o caroço da deformação: a busca era dos ganhos secundários, assegurados pela configuração socioeconômica de então. Estranhava-se que na Europa a análise não fosse tão procurada quanto no Brasil.

Fase histórica no Brasil

Era a época da Ditadura Militar no Brasil e em outros países da América do Sul. Foi nesse contexto que se deu o episódio Amílcar Lobo.

Do meu ponto de vista, este episódio não foi causador de uma crise grave, que quase todos os cole-gas brasileiros e já um enorme número de estrangeiros conhece. Essa difusão internacional deve-se muito à coragem e à persistência de Helena Besserman Vianna. O episódio é um sintoma de uma degeneração da prática psicanalítica em nosso meio. De um lado o novo método terapêutico, introduzido no Brasil em São Paulo, Porto Alegre e Rio de Janeiro, servia inicialmente como uma alternativa para muitos pacientes encon-trarem uma outra via isenta das torturas da terapêutica psiquiátrica, serviçal dos interesses coativos das famí-lias e depois da truculência da ditadura militar. Tudo que não podia ser expresso em praça pública encontrava na sessão psicanalítica - individual e de grupo - um refúgio com uma certa segurança. Essa segurança era garantida pelo uso ilimitado da interpretação da transferência. Todas as referências a fatos externos familiares e sociais eram reduzidas a vivências dos pacientes suscitadas pelo processo analítico e pelo analista. A análise se dava numa espécie de bolha dentro da qual não entrava o social, embora este estivesse sempre presente pelo necessário reajustamento do preço acionado pela inflação.

Deste modo, os psicanalistas, quisessem ou não, eram usados como fiadores das famílias e do sis-tema político do país. Para os pacientes também servia como proteção contra risco de internação e/ou da perseguição política. Aos analistas também convinha a recomendação de isenção de prática política em nome de manter uma neutralidade favorecedora do processo psicanalítico. Com algumas poucas exceções, evitavam aderir a atividades de insurgência contra o sistema. Desse modo também para os psiquiatras coniventes com a ditadura, a psicanálise ou era violentamente repudiada, ou podia servir de refúgio, como foi para Amilcar Lobo.

O afluxo de pacientes tornava a profissão altamente lucrativa. Médicos e depois psicólogos foram se tornando a maioria da clientela psicanalítica, já que para vir a ser analista é indispensável analisar-se. Para pretender entrar na profissão o primeiro passo era procurar um analista.

Aspectos iniciais da controvérsia

Criava-se uma situação de controvérsia não necessariamente entre os analistas, mas dentro deles. Propunha-se para os pacientes um processo de melhor aproveitamento de forças anímicas que estavam sendo desperdiçadas na formação de sintomas que necessariamente traziam sofrimento. Contudo, o que levava a maioria a procurar análise não era ganhar um acesso mais pleno e mais confortável aos seus talentos e movi-mentos anímicos, e sim o interesse em entrar para uma carreira. Como posso então aceitar a recomendação de análise para pessoas que sofrem sintomas e não me empenhar antes de tudo em resolver os meus? E quando a demanda de vir a ser analista é um sintoma? Quer dizer não contempla os verdadeiros talentos da pessoa e esta se torna um clone de seu analista?

Como se urdiu essa articulação da prática psicanalítica no Brasil, poderemos entender melhor atra-vessando os passos da tese de Nádia Sério, que constitui um documento histórico inestimável do nosso acervo cognitivo. De tal modo os entraves constituídos pelos conflitos interpsíquicos dos analistas e institucionais de suas sociedades, que se observa o reverso da chamada epistemofilia nesse campo. Sofremos de uma "episte-mofobia" sectária que repele tudo que possa elucidar as vicissitudes da nossa história institucional.

O que a tese revela é que o Serviço Nacional de Doenças Mentais (SNDM), na figura de seu diretor Adauto Botelho, incentivou os médicos psiquiatras a fazerem formação psicanalítica, fora e dentro do país. A psicanálise foi pois convocada inicialmente para treinar psiquiatras na nova técnica. No Rio de Janeiro, a leitura da obra freudiana fez-se, predominantemente, dentro do marco institucional, em São Paulo, não. Em São Paulo não interessava aos psiquiatras se tornarem analistas e os não médicos eram aceitos para se forma-rem na profissão .

Foram psiquiatras que solicitaram de Ernest Jones o envio de dois psicanalistas didatas para qualifi-ca-los. Ernest Jones indicou Mark Burke e Werner Walter Kemper. Um era um judeu formado na Inglaterra e o outro um alemão que permaneceu no Instituto Göring durante toda a guerra. Burke chegou em fevereiro e Kemper em dezembro do mesmo ano.

Teria sido absolutamente impossível, logo depois do fim da guerra (1948) não serem afetados pela catástrofe européia do qual ambos eram vítimas. De que maneira poderiam formar uma aliança fecunda? A conseqüência natural foi a formação de dois grupos hostis. Essa hostilidade teve conseqüências graves na relação entre os analistas no Rio de Janeiro. Os analisandos do Burke seguiam a atualidade da Escola Inglesa na qual predominava a obra de Melanie Klein. O Grupo do Kemper conseguiu formar a Sociedade Psicanalí-tica do Rio de Janeiro, que ficou sendo considerada a Escola Freudiana. Na época isso era considerado um estágio já ultrapassado, pois a própria obra de Freud chegava-nos pela tradução de James Strachey que ofere-cia uma terminologia muito mais "científica".

Foi necessário chegarem os trabalhos que, na década de 80, revelavam os tesouros de significação do texto original de Freud, para este ganhar o reconhecimento de sua importância.

Já na diversificação da introdução da psicanálise em outras línguas formaram-se o que Nádia Sério chama de "redes de cumplicidade", que são ativas até hoje. Chama redes de cumplicidade aquelas que se mantém comprometidas com um pacto de fidelidade ao interesse de um grupo mesmo quando as propostas do grupo não contemplam nem o benefício da comunidade, nem o do próprio grupo. Já a palavra cumplicida-de embora diga "estar implicado com" refere-se, pelo menos em português, com freqüência, ao envolvimento com alguma trama. Mas também já se usa no sentido de estar envolvido com alguém numa atividade, por exemplo, na vida em amorosa em comum.

A verdade é que se formaram logo no início - nos anos 48 e 49 - adeptos de Burke, adeptos de Kemper e brasileiros que se formaram em Buenos Aires e que ao chegar, embora tendo também as suas reser-vas, aderiram ao inglês Burke, que em pouco tempo voltou para a Inglaterra. Foi impossível, como infeliz-mente é até agora, enfrentarem as controvérsias corajosamente. Nunca se tentou, naqueles anos, cotejar as duas maneiras de entender as perspectivas e elucidar de que modo as diferenças de filiação profissional e de cultura, o impacto da guerra sobre os dois iniciadores, assim como o impacto da estranheza de ambos com a nossa língua e o nosso modo de viver. Ambos traziam dentro de si os horrores da guerra na Europa e entre eles dois. E nós também ficamos contaminados pelos seus fantasmas guerreiros, realimentando os nossos.

Mesmo depois da volta de Burke para a Inglaterra seus analisandos e os analistas que voltaram da Argentina mantiveram-se profundamente avessos ao intercâmbio com Kemper e sua escola. Era o auge da glória da Inglaterra e dos Estados Unidos, da língua inglesa, do pragmatismo e da suspeita de tudo que viesse das profundezas obscuras do pensamento alemão. A França, por ter ficado ocupada pela Alemanha nazista, não teve, senão um pouco mais tarde, a possibilidade de levar adiante a sua parte no movimento psicanalítico.

Antes de chegarem ao Rio as contribuições francesas, especialmente as representadas pelos seguido-res de Jacques Lacan, os antigos analisandos de Burke, os que se formaram na Argentina e os que chegaram da Inglaterra, onde fizeram análise e completaram suas formações, articularam uma frente contra os kemperi-anos. Alguns dos membros da SPRJ, influenciados pelas críticas da frente única seguidora da chamada escola inglesa, e rebelados contra a prática como psicanalista e como didata da esposa de Kemper, procuraram análise na Inglaterra ou nos analistas da ala recém formada.

De importância incontestável foi o papel do Prof.Décio de Souza , catedrático gaúcho que havia se formado na Inglaterra e que se ligou à Universidade, no Instituto de Psiquiatria. Constituiu logo uma plêiade de jovens psiquiatras e ganhou um prestígio muito grande no Rio e em São Paulo. O convívio com ao demais membros do seu grupo não deixou de apresentar grandes dissidências.

A verdade é que a ruptura inicial se reproduzia nos dois agrupamentos cariocas. O grupo do Kemper ficou em pouco tempo dividido entre os que seguiram o casal Kemper e os que contestavam a parceria que fizeram na sociedade. No grupo de inspiração da Escola Inglesa liderado pelo prestígio do Prof. Décio de Souza, e que havia contribuído muito para tornar esse grupo filiado à SBPSP, fazia públicas restrições aos demais. Constituiu-se um mal-estar crescente que levou a maioria da sociedade a fazer um julgamento deste, do qual saiu expulso, em 1965. Vários analisandos do Prof.Décio foram acolhidos pela SPRJ. Com esse con-tingente "kleiniano" e com um conhecido analista seguidor de Fairbairn, robustecia-se a ala que se opunha ao "status quo". Dir-se-ia que "Burke" exilado retornava para dentro do grupo de Kemper. E com a expulsão de Décio, ficava a agora SBPRJ também ainda mais dividida, tendo também em seu interior o espectro do pai morto.

Quem, durante vários mandatos ficou encarregado de costurar os rasgões entre todas essas facetas e fortalecer o grupo chamado "do Kemper" frente às críticas vindas da SBPRJ foi exatamente aquele que sus-tentava a análise didática do candidato que tomava parte numa equipe de tortura, como médico para atender os torturados. É incontestável que a grande maioria apoiava-se nele para contar com uma sociedade mais prestigiada e defendida das críticas vindas da outra. Formou-se pois um grupo coeso e seu defensor. Com a saída da esposa de Kemper, alvejada por tantos que a acusavam de não ser analista, seus analisandos se rebe-laram contra a situação institucional vigente. Esta era sustentada pelo mesmo analista (Cabernite) do candida-to membro da equipe de tortura. Acuado por ataques de fora e de dentro da SPRJ, pode-se imaginar o drama que viveu Cabernite nessa época para tentar salvaguardar a missão a ele encarregada por todos nós.

Com o prestígio de poeta, escritor, jornalista, e muito conhecido, Hélio Pellegrino, que havia sido expulso em função das suas violentas críticas ao status quo, tomou a liderança de um grupo, chamado "Fórum de Debates", e do qual faziam parte alguns membros que hoje estão pertencendo ao Pró-Ética entre eles, eu.

Solicitação de intervenções da ipa

Tanto pelo processo judicial quanto pela intervenção da IPA (pelo "site visit") o poder constituído por Cabernite foi contrariado, um novo Estatuto foi redigido e os membros do "Fórum de Debates" tomaram parte numa nova diretoria. Nada disso trouxe mudanças signficativas. O fantasma pendente do membro da equipe de tortura, analisando da figura forte e de proa que deteve tantos anos o poder ficou flutuando na at-mosfera da SPRJ.

O espaço intermediário e não militante dessa controvérsia ficou sendo garantido por uma analista, Inês Besouchet, formada por Kemper e depois reanalisada em Paris por Sacha Nacht e que constituiu com colegas, filósofos, artistas e uma psicodramatista, um Centro de Estudos, assim chamado de "Antropologia Clínica", e que se punha de fora da divergência truculenta e procurava estudar sob as diversas facetas, o ser humano em suas errâncias, ponderando os diversos lados da saga psicanalítica. Apesar de não aceitar organi-zar-se como uma instituição concorrente das demais sociedades psicanalíticas foi muito combatida por todas elas.

É no espírito e no trabalho devotado desse Centro de Estudos de Antropologia Clínica, que foi fene-cendo à medida que outras sociedades que se dispunham a garantir formação e habilitação de psicanalistas, que este escrito se inspira. O CESAC completou, com a morte de Inês Besouchet, a sua extinção. Entendia ela como função do CESAC ser um instrumento provisório, como cada um de nós precisa aceitar ser. E essa seria a sua função, pelo menos para alguns participantes de Pró-Ética, talvez poucos, como eu: Retor-nar à SPRJ sem dela ter jamais saído.

Incremento do carreirismo

Com a morte de Inês Besouchet e a suspensão da existência do CESAC, as fontes de estudo da psi-canálise ficaram limitadas aos currículos didáticos de formação de analistas. A prática psicanalítica foi se tornando cada vez mais voltada para a qualificação profissional. A fonte da clientela que se constituía nas sociedades. Era em sua maioria a dos que queriam fazer carreira. Tornar-se didata era o que podia garantir um afluxo de clientes candidatos. O que voltou a incrementar o interesse pelo estudo foi, sem dúvida, a entra-da crescente dos estudos de Lacan, que por sua vez, acirravam nos analistas tradicionais o empenho em se atualizar.

Nas últimas décadas cresceu de modo gigantesco a quantidade de grupos lacanianos de formação psicanalítica, abertos para candidatos que tenham qualquer graduação.

O que esse percurso ressalta é a constante impossibilidade de nós psicanalistas, que nos instituímos em "redes de cumplicidade", utilizarmos a interlocução e grupos operativos para desfazer os equívocos que tornam a comunicação explosiva e com isso impossibilitando a mútua ajuda num ofício tão solitário. A pres-são cada vez maior da concorrência tem forçado à dificuldade de formar redes de solidariedade. Dizer isto de outro modo é dizer que tem sido cada vez mais difícil a prevalência da colaboração em vez da competição estéril, isto é, a competição que luta pelo poder e não pelo saber. A competição pelo saber enriquece a todos, pois procurar saber o que os outros sabem não retira o saber dos mesmos, enquanto que a competição pelo poder precisa instaurar submetidos, inermes, para sustentar o triunfo do vencedor.

Tendo como ponto de partida dois núcleos culturais europeus diversos e rivais na guerra, os didatas enviados por Ernst Jones precisariam ter não só de se traduzirem entre si como também de traduzir-se para a cultura brasileira. Formaram-se núcleos que não se traduziram mutuamente para constituir uma intercultura e que chegavam num país marcado pela mestiçagem, embora enxertado de modelos europeus e norte-americanos,

Em que insisto é em levarmos em consideração essa multiplicidade de fatores que induzem à vio-lência que tem permeado a controvérsia. Esses fatores são o que Olga Ruiz Correa, em seus estudos psicanalí-ticos de famílias e instituições chama de legados transgeracionais deixados pelas figuras dos antepassados. Vemos isso também no duelo entre a diretoria e boa parte da SPRJ e o Pró-ética e também entre os subgrupos de ambos, reproduzindo a violência entre as alas Burke e Kemper. A violência resulta do medo que ambos os lados sentem de ser violentados. Medo da tirania que leva a tiranizar. Freud propôs a única tirania que frustra a eficácia da tirania, que é a tirania da razão. Só a razão permite tornar relativas as nossas paixões. O modelo mais eloqüente é o de Thomas Hobbes: o Leviatã. O governo com o poder de fazer todos aceitarem limites para terem o direito de ser respeitado pelos demais. É disso que a Ética do Pró-Ética e de todas os agrupamen-tos humanos precisam levar em conta. Em lugar do poder, o direito. E o que autentica o meu direito é o res-peito que tenho ao direito alheio.

A embriaguez de grandeza sempre é a desmesura dessa interação virtuosa entre poder e direito.

Meio século de desencontro

A verdade é que a incompatibilidade histórico-bélica entre os dois pilares do início da psicanálise no Rio de Janeiro não se resolveu ao longo desse meio século. O interesse pelo pensamento filosófico em muitos dos que se agruparam com Kemper, como Portella Nunes, Souza Viana, Inês Besouchet, eu e vários outros colidia com a proposta pragmática e tecnicista inspirada na assim chamada Escola Inglesa que anunciava a "eficácia" em contraste com a "ação água com açúcar" dos kemperianos, no dizer de Décio de Souza. Com as mudanças no panorama mundial e brasileiro, os dois territórios foram se subdividindo e cada vez mais sem interlocução sensata. Tanto a SPRJ quanto a SBPRJ têm recorrido freqüentemente a intervenções da IPA, na esperança de superar os sucessivos rompimentos internos e colapsos da comunicação.

Surgimento do pró-ética e a presença da ipa

O rompimento que tem sido o maior acionador de mudanças, sem a menor dúvida foi o que se cons-tituiu no início de 1995 e que resultou na criação do Pró-Ética e que teve apoio de muitos setores psicanalíti-cos de diversas sociedades, de diversos paises. Várias tentativas têm sido feitas por comissões nomeadas pela IPA, Já é sabido o quanto o grupo Pró-Ética empenhou-se do início de 1996 em tornar reconhecida a legitimi-dade de seu protesto contra a desqualificação - votada na Assembléia Geral - do relatório da Comissão de Ética eleita por essa mesma assembléia. Esse trabalho se fez por correspondência e por publicação que torna-ram transparente o sentido restaurador do grupo. Duas Comissões foram nomeadas. A primeira fez um estudo minucioso da estrutura da SPRJ e propôs mudanças profundas de hábitos e maneira de funcionar. No Con-gresso de Barcelona (1997) a votação a favor da causa do Pró-Ética foi unânime. Nessa época foi nomeada com a finalidade de viabilizar as mudanças pela interação entre membros da SPRJ e do Pró-Ética. Procedi-mentos cuidadosamente formulados por essa segunda comissão foram postos em exercício. Começou a haver, pelo menos em alguns subgrupos, um intercâmbio promissor, apesar de surgirem atritos intensos entre as cúpulas das duas facções. Esses atritos, entretanto, não parece terem sido estudados do ponto de vista da análise da comunicação. Não se chegou a examinar, com propósito de estudo, os protocolos dos encontros dos diversos subgrupos e especialmente do grupo de representantes da direção da SPRJ e do Pró-Ética para sur-preender em que os atritos violentos surgiam de perspectivas diversas que atingiam a ala oposta como algo insuportável.

Finalmente ao se articular o fecho que seria o grande encontro em assembléia geral, com a presença das duas facções e da comissão da IPA, ausentaram-se maciçamente os membros da SPRJ não integrados ao Pró-Ética. A comissão reconheceu que havia nisso um boicote à possibilidade de intercâmbio e todo o esfor-ço desenvolvido foi por água abaixo. Não houve, contudo, também da parte do Pró-Ética maior esforço de requerer uma nova data para a Assembléia e a própria comissão, que tão zelosamente exerceu a sua função, considerou encerrada a sua parte.

Tudo passou a ficar em suspenso, sem se saber se a SPRJ seria desfilhada e neste caso que destino teria o Grupo Pró-Ética. Com isso permanecia e permanece o impasse. Uma terceira comissão foi proposta pela IPA, tendo como premissa que as reuniões se dariam na sede da sociedade. Novo impasse. A postura do grupo Pró-Ética tem sido considerar a resolução da IPA como uma desqualificação da Comissão anterior que havia denunciado o corpo societário em seu boicote como aquele que inviabilizou a proposta de entendimen-to. E a exigência de proceder aos encontros na sede, como uma coação ao Pró-Ética de deixar de sustentar a seu destacamento em seu território próprio.

Diante disso, a ABP, que é a associação que coordena todas as sociedades psicanalíticas brasileiras filiadas à IPA, no exercício da sua função, ofereceu o seu espaço para as duas facções se encontrarem. Aí entraram velhas suspeitas e antigos rancores e não se abriu nenhuma via nova ao entendimento. Ao contrário, criou-se uma nova área de choque, pois a resposta do Pró-Ética a esse oferecimento não só foi de não ponde-ração, como também de acusação da ABP de utilizar inverdades e de negação para convencer presidentes de outras sociedades que o conflito ainda poderia ser resolvido. A suposição dos signatários da carta ao presiden-te da ABP é de que há um interesse em conseguir realizar o próximo congresso internacional no Brasil e para favorecer isso, tentar aplainar as arestas.

Essa suposição tem um precedente: na década de 70, quando Cabernite teve de enfrentar a acusação de manter em formação um torturador, justamente no momento em que havia uma possibilidade de escolher o Rio de Janeiro para o congresso internacional. Era ele a figura poderosa que se manteve por quatro manda-tos sucessivos. A eclosão contudo do episódio do torturador candidato e seu didata e todas as controvérsias a esse respeito trouxeram como conseqüência o cancelamento dessa possibilidade.

Tudo isso é da maior importância para se aferir em que medida o passado das instituições psicanalí-ticas com os seus devidos protagonistas paira no episódio atual de colisão entre as partes da controvérsia depauperando-as todas.

No início deste ano de 2000, uma nova diretoria tomou posse, constituída de pessoas que não se en-volviam antes na luta pelo poder. Coincide com a intervenção da nova comissão da IPA, rechaçada pelo Pró-Ética como já se expôs. Em face dessa falta de perspectiva de articulação, o Pró-Ética tem optado pela per-manência de sua filiação à IPA, continuando a estar sob a égide da SPRJ, mas designando-a como opositora: a Rio 1. Continua a manter contudo a decisão de não freqüentáala. Com isto a continua a falta de chance de examinar os ruídos da comunicação entre as duas facções. Já haviam começado a dar alguns frutos os encon-tros propostos pela comissão anterior. A minha proposta de uma análise institucional foi recusada por ambas as partes. A minha proposta agora tem sido a de prosseguir a nossa atividade no prédio da SPRJ, que é de direito, também nosso território. Esta tem sido recusada pelo Pró-Ética.

É minha convicção que quanto mais drástica é a aversão ao diálogo, mesmo acalorado, mais graves vão ficando os mal-entendidos e maior o rancor que se alastra num fratricídio sinistro. Tanto os textos tanto da diretoria atual da SPRJ, quanto os do Pró-Ética revelam uma animosidade fechada a qualquer ponderação. Cada parte acha que sabe sem sombra de dúvida qual é a realidade e sentencia o outro pólo da controvérsia com a maior convicção. Ameaçados pelos seus opositores, cada facção se refugia numa couraça impenetrável que se faz da incapacidade de ter dúvidas e de abrir-se para a auto-crítica. E isso leva à maior necessidade de utilizar o adversário como depositário de tudo aquilo de que me acuso.

Os que têm se colocado, como eu. numa tentativa de nos conscientizarmos dos fatores que levam a essa visão sem alternativa e procuram ponderar que as duas partes precisariam descobrir não somente a res-ponsabilidade dos adversários, mas sobretudo as próprias, são colocados como suspeitos de conivência com a ala oposta aqueles. Tanto as comissões que se dedicaram ao estudo minucioso das condições da controvérsia, quanto à tentativa da ABP, quanto agora a nova comissão, com novas propostas com respeito ao modo de fazer-se o levantamento da situação para não desfilhar a SPRJ, têm encontrado oposições ferrenhas e violen-tas, ora de um lado, ora do outro. Perde-se de vista a visão de conjunto e as motivações da controvérsia - que deixa de ser estudada - e impera a gana guerreira. Ambas as partes lutam movidas pela convicção de que sua luta é indispensável para sanear a psicanálise e sua ética do mal causado pela facção oposta. É muito difícil não supor que haja uma estratégia dissimulada de mercado nessa luta encarniçada.

Ao emergir o rumor de que um analista da SPRJ faria parte de uma equipe de tortura, o que a direto-ria procurou averiguar oficialmente não foi de que modo um candidato poderia fazer parte de tal procedimen-to, mas quem teria feito a denúncia. Agora o crime não era a tortura e sim denunciar o crime. O que o ad-versário aponta já de antemão é calúnia, é ataque e tem de ser repudiado, É a lei da guerra. E como Freud aponta em 1915, até a ciência perde a sua imparcialidade desapaixonada . Cria-se um clima ameaçador para aquele que pretende manter a eqüidistância científica. Ainda na época do chamado "Fórum de Debates", nos idos anos 80, embora participando intensamente desse movimento de contestação da Diretoria, fui convidado a tornar-me didata, isto é, a receber em análise candidatos a psicanalistas na SPRJ. A minha resposta foi que para uma análise, não se trata de um candidato a analista e sim de uma pessoa. Ele é que vai assumir a respon-sabilidade pelo destino que der a isso e como analista o meu papel só pode ser o de interpretar as suas deci-sões e não de interferir nelas. Não só a diretoria desistiu da proposta dizendo que era meu papel seguir os regulamentos da análise didática como também os meus camaradas do Fórum de Debates me acusaram de estar tomando o partido da Diretoria.

Essa mesma situação viria a se repetir na vigência do sucesso incontestável do Grupo Pró-Ética. Nas tentativas de voltarmos a nos conectar com as atividades e membros da SPRJ, eu propus que começássemos por um levantamento do que em nosso grupo ocorreu ou ocorre que está em oposição a tudo aquilo que de-fendemos que deveria reinar na sociedade. Começaríamos procurando verificar as nossas falhas éticas, pro-pondo que o outro lado fizesse o mesmo. Começaríamos pois encontrando um solo comum: todas comete-mos falhas éticas. E estas só podem ser sanadas se as reconhecermos.

A proposta acionou uma convulsão no grupo reproduzindo o clima acusatório dos tempos em que Hélio Pellegrino e Eduardo Mascarenhas foram expulsos. O grupo entendeu que estava sendo acusado por mim e que eu o estava traindo.

Formação de redes de cumplicidade

A experiência tem mostrado que a existência humana, está sempre atravessada pelas mais assustado-ras inseguranças que se originam das forças hostis que surgem do mundo inóspito externo e dos impulsos vindos do interior de todos nós. Não se pode pois nem evitar as intempéries externas nem o que nos assalta vindo de dentro. A consciência dos riscos da vida é muito mais aguda no exercício da atividade psicanalítica em função do método que implica na associação livre do paciente e na atenção igualmente flutuante do analis-ta. Essa proposta traz como conseqüência a impossibilidade de evitar a irrupção de sentimentos, impressões, percepções que desfazem até certo ponto as defesas convencionais no exercício da sociabilidade durante a sessão. Ficam abertas durante as sessões as portas para tudo que seria inconveniente. Abrem-se as portas tanto para as fantasias eróticas mais devassas quanto para as mais cruéis. Só a garantia da imparcialidade e do respeito pelo direito do paciente usar a escuta do analista, sem apoiar-se nele nem se poupar de encarar o que de fato ele vivencia, sem tamponar o seu desarranjo com consolo e sem promessas vãs, é o que abre espaço para uma elucidação vivenciada do que se passa no mundo interno. Todos os demais métodos terapêuticos calçam o atendimento com recursos de reasseguramento, consolo, promessas e sobretudo usando meios de catequese para converter o paciente ao sistema conceitual que pretende basear o método terapêutico. As redes de cumplicidade têm como finalidade garantir uma reserva de mercado. Exigem então que fique formulado um "credo" que se fomenta na convicção da iniqüidade, da arbitrariedade, da má fé, da prepotência, e da in-competência dos demais. Pacto implícito das redes de cumplicidade é não admitir que a campanha de detri-mento das demais possa estar atravessada pelos mesmos desvios que denuncia.

Nos meios psicanalíticos, apesar de ter sempre havido a exigência da análise pessoal, justamente pa-ra conscientizar os riscos destas distorções, o desamparo do lugar anímico do analista é tão grande que a con-vicção de estar apoiado por uma instituição forte, consistente e senhora da verdade, parece imprescindível.

Para que isto seja possível é indispensável que a agudeza crítica só se faça tendo como alvo os ad-versários. E com isso fomenta-se a ilusão de que se eliminarmos os adversários, estaremos livres das incerte-zas e das ameaças. Nessa guerra de todos contra todos, no dizer de Thomas Hobbes, não tem interessado verificar os rastros que o passado deixou. Para os analistas que se opunham a Kemper, da sociedade deixada por Burke e dos próprios da SPRJ que o acusam de ter deixado as sementes do nazismo que teria sido respon-sáveis pelo episódio do candidato torturador, não resta a menor dúvida que Kemper era nazista, colaborou decididamente com o nazismo e foi conivente com o assassinato de Wittmeister, seu colaborador e amigo. E não há nenhum interesse em averiguar isso. É uma certeza que respalda o ódio e justifica a guerra.

O trabalho de Hans Füchtner, autor que durante tantos anos viveu no Brasil e estudou como sociólo-go e como membro da Sociedade Alemã de Psicanálise, concluiu um trabalho de vários anos cujo título é :O caso Werner Kemper: Psicanalista, seguidor do nazismo, nazista, homem da Gestapo, militante marxis-ta?! São quarenta páginas de investigação minuciosa de trabalhos, relatos e testemunhos que revelam até à mais exigente comprovação que nada confirma essas suspeitas.

Do mesmo modo, para a facção que deteve durante tantos anos o poder na SPRJ e uma boa parte de grupos que se constituiu ao lado deste, o grupo Pró-Ética, apesar do reconhecimento internacional que chegou a ter no Congresso de Barcelona e pelas 2 comissões nomeadas pela IPA, ainda não é devidamente reconheci-do no papel importante que tem desempenhado para a renovação da SPRJ, que pela primeira vez, durante toda a sua existência, elegeu uma diretoria que até então não havia se comprometido com a política da instituição. Esta diretoria tem se esforçado em reativar o estudo e a renovação. Mas, por outro lado ainda não assumiu o valor da atividade crítica levada adiante pelo Grupo Pró-Ética, deixando-o ainda no limbo. Por sua vez, o grupo Pró-Ética tem se aferrado a um autocentrismo, sustentando-se de seus sucessos e não admitindo ponde-rar as críticas que lhe são feitas, sobretudo ao seu estilo muitas vezes violento e grosseiro. Essa estratégia, movida pelo ressentimento e não pela razão, tem sido um tiro no próprio pé. Isto o priva de apoio no chão da realidade.

É impossível deixar de considerar que nessa guerra - e este só pode ser o termo - a suspeita de am-bos os lados de que qualquer reconhecimento de falhas vai armar o adversário. Este é o emperro ainda in-transponível para o enfrentamento leal do estudo da controvérsia propriamente dita. Nos dias de hoje, muitas mudanças já se deram na SPRJ - com exceção naturalmente dos grupos que se fecharam-. Há colegas que consideram desprezada a história da nossa sociedade, levantada pelo Grupo de História e que consideram que a segunda comissão tomou partido a favor do Pró-Ética dispondo-se a sacrificar todos os demais membros. E ignoraram o trabalho desse grupo.

A mesma atitude tem sido tomada em relação à proposta de René Major que se efetivou em Paris, em julho passado. Nenhuma das sociedades psicanalíticas, tanto as da IPA quanto da Escola Lacaniana, dispôs-se a estudar os trabalhos e sublinhar a importância do evento que foi "Os estados gerais da psicanálise". Isto não significa que alguns lacaniandos como Antônio Quinet e colegas não venham se empenhando em valorizar a importância desse evento. Teve este a virtude de revelar dramaticamente, no enorme palco que é o Grande Anfiteatro da Sorbone, em que estado institucional se encontram os analistas. É o estado de exaustão da repe-tição maquinal dos modelos esterilizantes num estado de superprodução de psicanalistas e de trabalhos que ficam encalhados e ociosos. As diversas instituições se formam como células neoplásicas imaturas que au-mentam em número cada vez maior perdendo cada vez mais a sua eficácia e função restituitória do vigor da psicanálise.

Essa avalanche atropela a necessária serenidade para a interlocução. Precisaríamos ponderar a cada momento a diferença entre o que cada um está exprimindo e o entendimento que o outro tem do que foi transmitido.

O verdadeiro diálogo é raro e só chega a ser possível se for reconhecida a onipresença da ambigüi-dade. A palavra só pode ser a fonte da poesia porque dela se goza e dela se padece.

O que eu proponho, dentro do espírito da clínica psicanalítica é que se s substitua o processo de jul-gamento inquisitorial pelo de elucidar os mal-entendidos. Exigir retratações é colocar o outro no banco dos réus. Isto para mim é incompatível com o sentido da psicanálise. Para a visão que temos da condição huma-na, todos somos inocentes e todos somos culpados.

Tomada de posição PESSOAL

Aos psicanalistas de qualquer facção é mister inalienável não ser tão inocente que se considere livre de qualquer culpa nem tão culpado que aceite qualquer acusação. Aliás essa é uma das vigas mestras de um processo psicanalítico. De qualquer maneira, o julgamento dos outros só pode ter alguma consistência se resultar num benefício da comunidade e estiver precedido do julgamento de nós próprios. Em não havendo esse cuidado naquele que acusa, comete-se mais um crime que se soma ao crime que denunciamos. O crime que cometemos é o de usar o outro, mesmo ele tenha cometido um crime, como recipiente de descarga de tudo que não suportamos em nós ou de tudo que tememos ser descoberto e denunciado em nós. Infelizmente essa postura tem sido confundida em larga escala com a condescendência cúmplice. Esta é também uma ma-nobra para evitar a autocrítica, cegando-se para as próprias falhas.

Envio este texto para os coordenadores da SPRJ, do Pró-Ética e para vários colegas e para ficar à disposição de quem quiser no Portal dos Estados Gerais. Faço-o sustentando-me no princípio da incerteza de Bion, que de resto permanece a atitude fecunda de todo empenho de conhecimento, assim como a não adesão à prática das instituições que disputam o poder, que é a prática de ocultar aspectos que possam ser "inconve-nientes" para a versão corrente dos fatos.

É com assumida incerteza que ofereço esse texto. Os destinos que ele pode seguir, suponho que pos-sam ser muitos. Há sem dúvida quem o leia como uma traição, apesar de ter sido sempre essa a minha posição desde os primeiros números da publicação "Destacamento", pode também ser considerado um golpe político para subir ao poder. Pode ainda ser olhado como um delírio messiânico de salvar a psicanálise da praga pulve-rizante. Ou ainda um meio publicitário de chamar a atenção para mim. Não faltará quem leia, se o texto che-gar a ser lido, como sintoma de um exibicionismo perverso. Neste sentido pode ser considerado "diletante" que significa etimologicamente o que é feito para atrair e seduzir, pretextando fazer um trabalho necessário.

Pode ser também que este texto possa ser filtrado como a consciência de um dever de um colega mais velho, grato à psicanálise e às suas instituições que tanto lhe deram e que não quer se omitir, procurando participar do drama que vivemos com a sua experiência pessoal e com a sua prática de estudo.

Todas estas considerações não me aprazem como um "hobby". Elas conduzem a uma prática: a prá-tica do convívio como via de possibilidade de desfazer o medo que ambas as facções têm uma da outra. E como é muito angustiante ter medo, tende-se a querer intimidar o outro para se vingar de ter se sentido intimi-dado e aliviar-se ao perceber a intimidação do outro.

Nunca deixando o princípio da incerteza, penso que seria agora a hora de aceitar e fazer propostas de interlocução serena e respeitosa, com a finalidade de tentar responder porque e para que afinal de contas estamos lutando. Aí hão de entrar os membros da SPRJ, a direção da ABP, o grupo História e o Pró-Ética.

Não há luta gloriosa. A luta é em si uma proposta inglória, pois sempre ambos os lados perdem. Se a luta está cerrada, no que concordo, é preciso saber de que modo ambos a acirram. Ao contrário da luta, o empenho de conhecimento favorece que ambas as partes ganhem. Como é possível sair dessa espécie da ato-leiro se não conseguimos pelo menos nos libertarmos da parte que nos cabe em agravá-lo?.

A luta que eu prezo é a que eu travo comigo mesmo, para diminuir no que puder, a minha ignorância tentando entender se efetivamente há motivos para a truculência com que os grupos se tratam.

Quando eu aderi e me empenhei até onde me deixaram à causa do Pró-Ética foi com a finalidade de nos constituirmos como um destacamento, que segundo o Aurélio é: "Grupamento de unidades, ou de partes de unidades, sob comando único, com atuação independente, em caráter temporário e missão tática definida." Por este motivo, por respeitar o comando único - da IPA - e o caráter temporário e com uma missão e com uma tática definida, segui escrevendo até quando me foi permitido, ponderando os dois lados da balança e advertindo dos riscos de ficarmos no lugar de bodes expiatórios da situação grave em que está a psicanálise, atualmente. O evento de Paris mostrou até a saciedade que os modelos que têm sido usados na institucionali-zação da psicanálise estão esgotados. Mas isso não invalida os enormes proveitos que deixaram. Promover uma reestruturação limitada ao nosso grupo é criar mais uma instituição, não mais um grupo destacado, mas um novo grupo concorrente, isolado do seu solo:a SPRJ e a IPA. Nunca me dispus a renegar a SPRJ nem a IPA. Criticar em profundidade não é renegar, é ser grato, é oferecer contribuições à melhoria de uma conjun-tura que vem sendo, nos últimos tempos e com as mudanças drásticas da sociedade, maléfica para o nosso ofício. Sou assertivo quando afirmo os meus direitos de pensar com a minha cabeça, de considerar legítima a minha pertença tanto à SPRJ quanto ao Pró-Ética e de, como me ensinou Freud, ser pacifista e propor sempre a tirania da razão. É preciso não esquecer as guerras ao longo de toda a história da humanidade, e como mos-trou Freud ao a desilusão que a elas se segue.

Não temos ainda a coragem de reconhecer que essa guerra até agora o Pró-Ética ganhou. Fomos re-conhecidos internacionalmente.

O que está faltando, é não renunciar ao pacto contrato. Essa renúncia é que é entregar a vitória aos adversários.

Eu não proponho que fiquemos só estudando. Todo estudo que é para valer, traz como conseqüência natural atos. É o estudo da situação que me move a insistir no direito que temos ao pacto contrato. Isto é, o direito que temos de nos defrontar com a ala da SPRJ que o encerrou com a ausência e requerer da Comissão atual que encareça a necessidade de continuar o que estava sendo frutífero.

Precisamos de convivência e de comunicação. Os que hoje estão como adversários também preci-sam. A minha proposta é de comparecer ao que interessar na SPRJ, e há muitas coisas que importam, como por exemplo como está trabalhando a nova comissão. Comparecer é um direito nosso. Se na minha casa os demais donos fazem armações das quais discordo e eu saio para tomar providências, não há nenhuma humi-lhação em voltar e entrar pela porta da frente, depois de ter-me instruído bem a respeito da situação e do meu lugar nessa casa.

Nesse isolamento em que estamos, perdemos o contato vital com os membros da SPRJ e estamos constantemente criando versões, que não sabemos se são imaginárias ou reais, do que estão fazendo.

Nossas versões quase que chegam, por vezes, a ser delirantes. O delirante é fundamentalmente um excluído. Ele tem de criar o mundo que lhe foi subtraído pelo ressentimento.

Insisto que graças à nossa participação destacada, a SPRJ tem mudado muito. O que ela não tem ain-da é reconhecido suficientemente a nossa contribuição. Mas nós também não. Tratamo-la como se ela fosse a mesma de cinco anos atrás.

A nossa luta tem sido "inglória" porque estamos todos contra todos. Estamos caindo na armadilha da sociedade mais ampla, para a qual a psicanálise sempre foi e continua a ser indesejável como o são as prostitutas, às quais a sociedade nunca dispensou.

30/08/2000

wchebabi@ax.ibase.org.br