Transferências, contratransferências e outras coisinhas mais
ou
Esquizoidia e narcisismo na clínica psicanalítica contemporânea
ou
A chamada pulsão de morte1

Luís Claudio Figueiredo2

Para
Chaim Samuel Katz e Flávio José de Lima Neves

Resumo
Os três títulos colocados como alternativas para o presente trabalho correspondem aos três aspectos focalizados. Em primeiro lugar, partindo-se da experiência clínica, sugere-se uma concepção das "relações terapêuticas" em que se articulam diversas modalidades ou dimensões do vínculo: a transferência, a identificação projetiva e o enactment. Em seguida, propõe-se uma correlação entre as formas dominantes do vínculo e os adoecimentos psíquicos - o das psiconeuroses (neuroses de transferência), o dos adoecimentos narcísicos e o dos adoecimentos esquizóides -, acentuando-se a relevância destes dois últimos para a clínica contemporânea. Finalmente, a esquizoidia e o narcisismo são considerados no plano metapsicológico como expressões da compulsão à repetição comandada pela chamada pulsão de morte que é, ela mesma, revisitada e diferenciada em seus diversos aspectos: o do desligamento e auto-extinção, o da constituição e preservação do próprio in extremis e o da procura reiterada de um objeto primordial.

Palavras-chave: esquizoidia, narcisismo, transferência, identificação projetiva, enactment, pulsão de morte.

Abstract
The three titles chosen to name the present paper correspond to its main subjects. First, I suggest that therapeutic relationships include different forms of linking: transference, projective identification and enactment. In second place, I trace a relationship between predominant forms of linking and different forms os psychic pathologies: psychoneuroses, narcissistic and schizoid diseases. Thirdly, schizoid and narcissistic diseases are consideded as expressions of the repetition compulsion ruled by the so called death instinct. At this moment the theory of the death instinct is revisited in order to reveal its various faces: unbinding and self extinction, constitution and self preservation and the recurrent search for a pimary object,

Key words: schizoid problems, narcissistic problems, transference, projective identification, enactment, death instinct.

...o modo como o psicanalista se coloca diante-de (Gegen) também constitui a possibilidade do psicanalisar" (Formação Freudiana, 2002)
O termo "contratransferência" refere-se a uma dimensão fundamental do modo do analista colocar-se diante - ou, melhor dizendo, deixar-se colocar diante - do analisando e ser por ele afetado. Embora, no nosso entendimento, o termo não contemple todas as possibilidades conceituais necessárias para pensarmos as diversas posições do analista em um processo terapêutico, ele não pode, como se verá logo mais, ser descartado em uma compreensão do psicanalisar. Contudo, infelizmente, este termo também pode nos levar a um equívoco, o de supor que a posição do analista é apenas da ordem de uma resposta e de uma reação às transferências de que é efetivamente alvo por parte do analisando.

Tentarei desenvolver neste trabalho a hipótese de que, aquém das contratransferências no sentido estrito, que são efetivamente respostas do analista às transferências do paciente e, nesta exata medida, um aspecto essencial da dinâmica do trabalho analítico - embora seja também uma fonte de impasses - há uma condição de possibilidade do psicanalisar - qualquer que seja a modalidade do trabalho clínico em curso - que se configura como uma contratransferência primordial, um deixar-se colocar diante do sofrimento antes mesmo de se saber do que e de quem se trata. Esta contratransferência primordial corresponde justamente à disponibilidade humana para funcionar como suporte de transferências e de outras modalidades de demandas afetivas e comportamentais profundas e primitivas, vindo a ser um deixar-se afetar e interpelar pelo sofrimento alheio no que tem de desmesurado e mesmo de incomensurável, não só desconhecido como incompreensível. Todo o psicanalisar, no que implica lidar com as transferências - e as outras coisinhas mais, que emergem e podem ser tratadas nestes processos - dependem, portanto, desta contratransferência primordial.

Quanto à natureza e origens desta contratransferência primordial, cabem algumas considerações. Assim como podemos supor (seguindo Ferenczi, 1909) que uma propensão ao estabelecimento de relações transferenciais faça parte do psiquismo humano em sua universalidade (sendo apenas mais acentuada entre os neuróticos), sugerimos que também seja universal e básica a nossa disposição a servir como suporte para as transferências alheias, como destinatário e depositário de seus afetos e como coadjuvante de suas encenações. Sugerimos, mais ainda, que esta disponibilidade esteja nas raízes de todos os processos de singularização. Vale dizer, é algo que já está presente em um recém-nascido e é um dos aspectos da nossa condição humana de desamparo, o que tanto acarreta uma vulnerabilidade extrema a toda sorte de abusos e traumatismos como, em contrapartida, é a base da constituição do psiquismo.

Encontramos em alguns filósofos e psicanalistas algumas idéias aparentadas. O filósofo Henry Maldiney (1991), por exemplo, nos fala da transpassibilidade - uma afetação pelo impossível, pelo que está fora do campo do que pode ser representado e interpretado. Embora ele trabalhe quase sempre a partir da experiência estética, sua suposição, que aqui fazemos nossa, é a de que é preciso admitir um nível de afetação pelo outro anterior à entrada deste outro em nosso mundo, onde ele se configura e pode ser nomeado. A contratransferência primordial de que estamos falando teria algo desta qualidade.

Uma segunda referência filosófica nos vem de Emmanuel Lévinas (1974), que nos aponta para uma passividade radical na base da constituição subjetiva. Esta passividade, anterior à própria separação entre passividade e atividade, coloca no outro e nos seus impactos a origem an-árquica do sujeito, sendo que a noção de an-arquia deve ser entendida na estrita oposição à de aut-arquia, propriedade do que tem em si mesmo seus princípios. Não só dependo do outro para vir a ser eu, como venho a ser como resposta a e responsabilidade pelo outro, este que me interpela desde sua própria condição de mortal e padecente. Nossa contratransferência primordial não se confunde mas se aproxima a esta concepção levinassiana, presente, por sinal, na teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche, com a ressalva importante que o outro em Laplanche padece não tanto de sua mortalidade como de sua condição de sujeito sexuado e cindido. De qualquer forma, mantém-se a hipótese de que, antes de mais nada, um bebê é o suporte para as transferências de seus pais, não apenas um objeto de seus cuidados desinteressados, e de que é a partir desta condição que uma subjetividade se organiza, na forma de uma resposta à transferência. Assim, a idéia de contratransferência primordial pode ser mais facilmente inscrita no campo da teoria psicanalítica como um aspecto atinente à constituição do psiquismo do sujeito. Rigorosamente falando, a contratransferência primordial é não só a condição do psicanalisar, mas do vir a ser sujeito, do existir como subjetividade.

No entanto, no campo da clínica da psicanálise, coube a Harold Searles em um de seus mais instigantes trabalhos (Searles, 1973) nos propor a hipótese ousada de que "entre as forças inatas mais poderosas que empurram o homem na direção de seus semelhantes, há, desde os primeiros anos e mesmo desde os primeiros meses de vida a tendência essencialmente psicoterapêutica". Se pensarmos em termos winnicottianos, seria como um concern pré-original, uma espécie de preocupação com o outro anterior à própria constituição do aparelho mental do indivíduo, anterior, portanto, à configuração de um próprio. Recordemos que Lévinas nos remete ao âmbito do pré-original como sendo o do que expõe uma subjetividade a outra antes mesmo de haver um sujeito, antes mesmo de que se tenha constituído um Eu, com seus atos, suas intenções e suas defesas. O pré-original é a exposição traumática à alteridade, um começo de mim antes de Eu ter começado e essa nos parece ser uma dimensão decisiva do que estamos denominando de contratransferência primordial. Como se verá adiante, não é necessário nem conveniente interpretar estes cuidados como emanando de alguma boa vontade intrínseca ao ser humano. Não se trata de samaritanismo, mas de sobrevivência em uma condição de desamparo em que a dependência em relação ao ambiente é extrema e em que a manutenção dos "objetos" em bom estado e em bom funcionamento é essencial ao indivíduo.

Para Searles, os abusos pelos pais desta função contratransferencial primária dos filhos3 e, principalmente, a incapacidade daqueles reconhecerem, admitirem e aceitarem a condição de serem "cuidados por seus bebês" - o que pode incluir tanto a educação como a cura de males físicos e mentais - figuram entre as mais importantes causas dos adoecimentos psíquicos. Há pais e mães, aliás, que reúnem os dois aspectos: exigem tudo dos filhos em termos de cuidados, mesmo quando são bebês, mas se mostram não educáveis e incuráveis. É o caso da "mãe morta" - vale dizer, deprimida - de que nos fala Green (1983). Trata-se, então, de uma forma ou de outra, de uma recusa ou invalidação destas "tendências psicoterapêuticas", que ficarão insatisfeitas, o que alimenta o ódio, a inveja e a rivalidade nos filhos. Ou seja, nestes casos, a abertura à alteridade da contratransferência primordial foi de alguma forma atacada e destruída ou teve de ser objeto de algum contra-investimento, seja pelo recalque, seja por outros mecanismos de defesa mais primitivos e radicais. Assim sendo, reunindo as propostas de Searles às de Winnicott, poderíamos supor que para estes indivíduos estaria dificultado ou interditado o acesso ao concern que é próprio da passagem da posição esquizoparanóide para a posição depressiva, ou, em termos winnicottianos, a passagem do amor voraz e cruel (ruthless love) para a preocupação (concern) e para a verdadeira capacidade de reparação. No seu lugar, as "tendências psicoterapêuticas" precoces ou não operariam (interditadas pelo ódio e pela inveja), ou operariam muito intensificadas assumindo a forma de reparações maníacas, pela via das formações reativas. Nos dois casos estariam comprometendo bastante a possibilidade do paciente, ele mesmo, ser cuidado pelo analista, que, por seu turno, se sentirá ameaçado em sua posição.

Voltemos agora a nosso tema.

Os maiores problemas na condução de um processo terapêutico surgem justamente quando algo da contratransferência primordial do analista parece ser atacado, na situação de análise, pelos chamados "pacientes difíceis", indivíduos que, provavelmente, tiveram eles mesmos sérios problemas em sua constituição subjetivas no que concernem os abusos e desperdícios de sua contratransferência primordial. Quando isso ocorre, tais pacientes exigirão do terapeuta uma determinação e uma habilidade excepcionais para se preservar em suas reservas anímicas. Nos casos da análise padrão, mesmo que aí também nenhum analisando seja propriamente "fácil", o trabalho analítico, desde que bem conduzido, tende a alimentar e a enriquecer a contratransferência primordial, ou seja, ele enriquece e consolida a posição do analista . Como afirma jocosamente Robert Caper em um texto que utilizaremos adiante, "uma das peculiaridades do trabalho de análise é que se o analista o fizer bem feito, mesmo que o paciente não melhore, o analista melhorará" (Caper, 1995, p. 74). Creio que esta "melhora" do analista corresponda à possibilidade que uma psicanálise lhe oferece de elaboração e enriquecimento da sua contratransferência primordial, o que é proporcionado pela condução de uma análise padrão e que se torna tão mais espinhoso (ou quase impossível) quanto mais perturbado for o paciente.4

Mas antes de chegarmos a esta tese, cabe refazer um certo trajeto bem conhecido de todos. Tentaremos fazê-lo da forma mais rápida e simples possível.

1- Um pouco de história

Relembremos com a maior brevidade os passos decisivos da descoberta freudiana que vão desde a percepção da transferência como uma "falsa conexão" e como um problema a ser enfrentado e contornado na relação do paciente com o médico, até a aceitação da transferência como o objeto essencial da análise (Freud,1912, 1914,1915, 1916-7). Embora a tendência a "viver" e atuar, ao invés de recordar, sempre vá ser também entendida como um fenômeno de resistência - um dispositivo para evitar o sofrimento psíquico e o contato com as experiências precoces de maior conflito - percebe-se que, além dos limites do que pode ser lembrado, está o passado que só poderá de fato comparecer na análise sob a forma de uma revivência e de uma atuação, seja ela fora do setting analítico - acting out - ou dentro dele - acting in. Ao menos no contexto do setting (mas também, em grande medida, fora dele, como será enfatizado por Melanie Klein [1952] e seus seguidores), os sentimentos, as emoções, idéias e atuações do paciente terão como alvo a figura do analista ou, mais propriamente, a figura do analista tal como constituída na transferência. A reserva do analista, sua discrição e sua "neutralidade" têm, entre outras funções, a de proporcionar as condições para que se estabeleçam ao longo do tratamento estas montagens transferenciais, conforme os recursos e possibilidades de cada analisando. Tanto os impulsos, como as representações e os afetos (amores, ódios, angústias...), como as defesas que organizam a dimensão do infantil no psiquismo do analisando serão mobilizados, acionados e irão se expressar de forma mais ou menos óbvia e direta na relação com o analista que irá ser configurado segundo os modelos das figuras mais significativas do passado afetivo do paciente.

Ao longo dos anos da prática clínica freudiana, mais importantes que as recordações e as narrativas acerca do passado, o que foi se impondo como objeto privilegiado de observação e análise são estas reedições dos velhos padrões impulsivos, e defensivos, tanto no âmbito dos afetos como no das representações. Além dos limites do rememorável, impõe-se, assim, o que se repete na relação com o analista e se apresenta como objeto vivo e atual de análise e de elaboração.

No entanto, além mesmo destas repetições que assumem as formas de reedições, emergem as repetições ainda mais radicais, as que se produzem além do princípio de prazer e sob o império da chamada "pulsão de morte", nome que dissimula o fato de que estas repetições correspondem ao mais pulsional das pulsões, à pulsionalidade propriamente dita em seu estado bruto de desligamento e em sua urgência à descarga (Freud, 1920)5. Embora o próprio Freud inclua as repetições transferenciais entre as manifestações da pulsão de morte, talvez, por razões que se irão expor adiante, não devêssemos incluir estas repetições no conceito de "transferência", embora, certamente, elas incidam fortemente sobre os processos relacionais em uma análise e de alguma forma se originem na história passada do indivíduo. Mais precisamente, se originam nas fraturas irremediáveis, nos impasses e nos fracassos desta história, se originem no que mais tarde denominarei de malogros na procura e no encontro de objetos primordiais. Ou seja, talvez pudéssemos reservar o conceito de "transferência" para as repetições que se mostram sob a forma de reedições dos padrões infantis e inconscientes - libidinais ou agressivos - que, em uma relação terapêutica, constituem o analista segundo os modelos do passado e no âmbito de operação do princípio de prazer e do princípio de realidade. Em contrapartida, procuraríamos outros nomes para as repetições movidas pela pulsionalidade em estado puro, em um regime de funcionamento que permanece além (aquém) do princípio de prazer. São processos que ainda não contam com um aparelho psíquico suficientemente estruturado para que nele vigore o princípio de prazer, ou que foi reduzido, pelo efeito, por exemplo, do trauma a um modo muito mais primitivo de operação que o de um psiquismo bem constituído, como o do neurótico. Repetições desta natureza são, justamente, as que atacam a põem à prova a contratransferência primordial do analista.

Mas esta distinção entre repetições transferenciais e repetições de outra ordem pode ser ajudada pelo recurso a algumas idéias de Ferenczi. Em um de seus primeiros e mais elucidativos textos - "Transferência e Introjeção", de 1909 - Ferenczi apresenta a tese de que o processo de introjeção em sua universalidade inclui a transferência, também ela universal, mas mais ativa e imperiosa nos neuróticos. A introjeção é o processo pelo qual os objetos do mundo são incluídos nas esferas de interesses do eu como alvos substitutos de impulsos e afetos. Quando o recalcamento incide sobre as experiências mais primitivas e intensas de prazer, seus objetos são remetidos ao inconsciente e cria-se uma quantidade de energia livre que precisa buscar novos alvos, procurando novos objetos que possam ocupar os lugares dos que foram vítimas do recalque. Aí se originam, entre outros, os processos de criação de novos objetos e de sublimação.

Vale aqui uma pequena digressão. Quanto mais intenso, radical e "neurotizante" o processo de recalcamento, maior a propensão a transferir, vale dizer, mais o processo normal de introjeção será acionado como forma de dirigir e procurar satisfazer pela via das reedições dos objetos arcaicos a energia libidinal (ou agressiva) sobrante e livre. Nestes casos, não só o indivíduo está efetivamente privado de inúmeras possibilidades de satisfação legítima para a expressão de seus impulsos e desejos, barrados pelo excesso de repressão, como boa parte do mundo será constituída como objeto de transferência, o que acarreta uma sobrecarga de afetos e fantasias em objetos que seriam mais bem considerados em suas propriedades meramente pragmáticas. Há, portanto, um duplo prejuízo, em termos de vida afetiva e sexual e em termos de adaptabilidade.

Mas retornando ao fio da meada, nos processos de constituição psíquica normais e neuróticos novos objetos de amor e de ódio são criados - e introjetados - na medida das necessidades impostas pelo recalcamento a uma mente que já funciona sob o regime do princípio de prazer e de sua forma modificada, como princípio de realidade. Nesta medida, os novos objetos, embora moldados pelos velhos padrões, são reconhecidos em sua relativa diferença e especificidade, como partes de uma realidade atual e presente. Eles são novos e velhos objetos simultaneamente.

Ao longo de seus trabalhos iniciais sobre questões da técnica, Ferenczi enfatizará a importância desta propensão à introjeção e à transferência no tratamento psicanalítico da neurose. É ela que confere ao analista o grande poder de intervir no psiquismo do paciente "desde dentro", ou seja, como um objeto incluído em suas esferas de interesses passionais e alvo de amores e ódios primitivos. Em acréscimo, é o que se reedita na relação com o analista que poderá ser observado e analisado como uma presentificação daquele passado que está na origem do adoecimento neurótico e inscrito em sua dinâmica.

No entanto, Ferenczi (1924, 1928, 1930) também percebe que a importância da atualidade da relação com o analista em muitos casos transcende o âmbito das reedições no sentido estrito. Os movimentos repetitivos podem então nos remeter a momentos da história passada que foram marcados por acontecimentos traumáticos ocorridos fora do âmbito do sentido e das fantasias de desejo e que nada devem ao processo de recalcamento no sentido próprio do termo. É o que o vai levar às propostas de elasticidade da técnica, de "relaxamento" ou "indulgência" - o "deixar rolar" do Nachgiebigkeit - e à neo-catarse como tentativas de acessar estes recantos profundos e mudos do psiquismo traumatizado. É assim que ele instaura a tradição clínica que elabora o conceito de "regressão terapêutica" que terá em Balint e em Winnicott seus maiores expoentes. Vale dizer, quanto mais o analista deve se haver com pacientes portadores do que, mais tarde o discípulo Balint (1968) denominará de "falha básica", mais o trabalho de recuperação das lembranças recalcadas pela via das associações livres, relatos de sonhos e interpretações cede espaço à atualização das experiências precoces na relação analítica, uma atualização que deve mais à compulsão à repetição do que à procura substitutiva do prazer interditado pelo recalque. Pacientes que repetem principalmente desta forma, ao contrário dos neuróticos, não sofrem de uma doença introjetiva, incrementando de modo ilimitado a propensão normal à introjeção e a procura de soluções de compromisso sintomáticas. Ao contrário, embora possam estabelecer relações aparentemente muito intensas e passionais e exigentes com o analista, têm uma dificuldade enorme em introjetar novos objetos de amor e de ódio. Ou bem neles se desenvolve um adoecimento projetivo - em que predominam fortes traços paranóides - ou bem o processo de introjeção é interrompido e convertido no que alguns autores (Abraham e Torok, 1987) vieram a chamar de "fantasia de incorporação". De qualquer forma, o analista é destituído do poder que o paciente neurótico normalmente lhe confere na transferência em sentido estrito.

2- Derivações do pensamento clínico sobre a transferência e seus impasses

Na história do pensamento sobre a técnica, a análise da transferência veio a se tornar uma prática sistemática e decisiva nas elaborações de James Strachey, mais precisamente, no seu texto "The nature of the therapeutic action of the Psycho-Analysis" de 1933-4. Para estas formulações, Strachey valia-se de seu bom conhecimento das obras de Freud e Ferenczi e de sua apreciação positiva da obra de Melanie Klein, ainda incipiente mas já muito inovadora no final da década de 20.

Um conceito sugerido por Strachey me parece particularmente esclarecedor para compreendermos a transferência na relação terapêutica e fora dela. Segundo ele, o analista na transferência tem o estatuto de um "objeto externo da fantasia". Uma forma de entendermos o alcance da proposta é relacionando-a à idéia winnicottiana de paradoxo quando aplicada ao objeto transicional. Este tanto é um elemento da fantasia na área da onipotência, como algo que já incorpora a condição de um objeto "não-eu". Winnicott (1962) o afirma claramente: o analista é tanto um objeto subjetivo como um suporte do princípio de realidade, convertendo-se em uma espécie de objeto transicional. Nesta medida, se entrelaçam sem grandes dificuldades para nossa compreensão as experiência de transferência, o brincar, o ato criativo e o relato do sonho, pois todos transitam neste espaço sui generis em que o subjetivo e o objetivo se acoplam sem coincidir, gerando uma realidade de nova espécie. Nesta realidade, os objetos são ao mesmo tempo inventados e descobertos e este é justamente o estatuto do analista na transferência. A realidade assim constituída é essencialmente o lugar em que transcorre a análise padrão no tratamento da neurose. Vale assinalar que é neste espaço que se pode constituir o uso da linguagem qua linguagem pois os símbolos são justamente o que pode mediar o subjetivo e o objetivo, incorporando dimensões de ambos mas sem se confundir com nenhum destes pólos.

É nesta realidade precária e heterogênea do espaço da transferência que vigora uma dimensão da temporalidade complexa e não-consistente marcada pela coincidência e não coincidência simultâneas entre o passado subjetivo do indivíduo e a atualidade das suas relações de objeto, criando o presente fraturado em que se pode verificar uma propensão para o acontecimento. Neste espaço, tanto o passado irrompe no atual, como o presente pode incidir sobre o passado, desconcertando-o e ressignificando-o. Há um verdadeiro acontecimento quando a trama do tempo domesticado, linear e progressivo é desfeita e rompida e este rompimento é tão mais provável quanto mais aquela trama já traz em si mesma as marcas de uma desconstrução. É bem isso o que se passa quando se instalam e cultivam as transferências, quando se ampliam os horizontes para as relações transferenciais com sua ambigüidade e não-consistência características.

É a partir destas condições que se pode entender a dinâmica e a eficácia das "interpretações mutativas", outro conceito fundamental do autor. Segundo Strachey, quando se dá a projeção sobre o analista do superego arcaico do paciente, (protetor/sedutor e persecutório), criam-se as condições para o exercício de seu poder, seja na forma de sugestão, seja na de análise.

Uma interpretação mutativa é a que efetua o golpe da discriminação entre o analista fantasiado e o novo objeto que ele pode vir a ser e, em parte, já está sendo, propiciando a introjeção do analista como superego normal e brando (realista), um superego em "mangas de camisa". Alguns autores (ex. Caper, 1995), seguindo nesta direção, chegam a sugerir que a meta da análise seria, eventualmente, a abolição do superego, e não apenas seu abrandamento, bem como, é claro, o esclarecimento dos mecanismos e origens históricas da neurose, objetivo já bem explicitado por Strachey..

Não entrarei no mérito do que diz Strachey sobre as outras formas de interpretação - não-mutativas - pois elas não têm a transferência como objeto, embora tenham sua força e eficácia nela baseada.

Importa, porém ressaltar que interpretações mutativas para Strachey não ocorrem contínua e freqüentemente, sendo que o seu foco e a sua oportunidade são dados pelo ponto de emergência da angústia do paciente na relação transferencial. Ora, este ponto de emergência da angústia deve ser acessado com acuidade pelo analista e nisso o que mais importa é sua sensibilidade contratransferencial. Assim sendo, uma inspeção cuidadosa do campo contratransferencial é indispensável para a detecção do quando e do como propiciar uma interpretação mutativa.

Em contraposição, é exatamente isso que pode acarretar as maiores dificuldades para a elaboração e oferta de interpretações mutativas. R. Caper (1995) mostra que, no jogo transferencial-contratransferencial, se o paciente deve projetar seu superego sobre o analista, este, por seu turno, caso introjete o superego arcaico do paciente e tenha seu próprio superego arcaico ativado (processos que são em parte inevitáveis), permitirá que se constituam fusões superegóicas, conluios e resistências contratransferenciais que interditarão as interpretações destinadas a desfazer o conluio. O conceito de "grupo de suposto básico", elaborado por Bion (1961), e os processos analisados por Freud (1921) no seu exame da psicologia das massas ajudam Caper a esclarecer o que se passa no campo das transferências e contratransferências quando o analista se deixa capturar pelo que poderia ser um jogo ou um sonho compartilhado, mas que, neste momento, muda de status e se converte em uma realidade alucinada pela dupla e a ser defendida pelo paciente e pelo analista com o recurso a mecanismos de defesa neuróticos e psicóticos. Recordemos que em um grupo de suposto básico, ao contrário do que ocorre em um grupo de trabalho, os membros se reúnem exclusivamente para manter o grupo e defendê-lo das forças externas ou internas de dissolução. Nada mais antagônico a essa modalidade de funcionamento grupal (ou dual) do que o efeito analítico e desconstrutivo que se espera das interpretações mutativas. Assim sendo, é a própria condição essencial da relação terapêutica, aquilo mesmo que a torna apta à análise da neurose, o que vem a ser a fonte dos maiores riscos de que o processo analítico se interrompa. Isso ocorre quando analista e paciente se unem para a defesa e manutenção de um conluio que tem, por sinal, um caráter mais psicótico do que neurótico, mesmo que analista e analisando sejam predominantemente neuróticos.

Um outro passo notável, mas igualmente perigoso, no desenvolvimento do pensamento clínico e técnico sobre a transferência deu-se com a proposta de Melanie Klein de tomar a transferência como situação total (Klein, 1952), conceito desenvolvido posteriormente por Betty Joseph em 1985.

Na tradição kleiniana, realmente, pensa-se a transferência como implicando a transferência de emoções, defesas e relações objetais do passado para o presente em um sentido bastante amplo. A premissa é a de que tudo que se traz para uma sessão e tudo que nela emerge tem a relação com o analista como causa e como eixo. Mais ainda, mesmo o que se passa fora de um setting analítico, ao longo de uma psicanálise, pode ser interpretado como referido à relação transferencial e assim interpretado. A esta ampliação do conceito de transferência correspondeu, por iniciativa de Paula Heimann (1950), uma ampliação e uma ênfase no conceito de contratransferência: ele deixa oficialmente de ser apenas um obstáculo e uma ameaça para ser reconhecido como condição, objeto e instrumento da análise.

O que penso, porém, é que esta ampliação conceitual do par "transferência-contratransferência", ao lado de seus efeitos positivos, que foram o de dar uma maior acuidade à escuta analítica e um maior alcance ao campo das interpretações mutativas, implicou também algumas imprecisões. A mais importante delas foi a de reunir sob um mesmo conceito os processos estritamente transferenciais no sentido freudo-ferencziano e os estudados e nomeados por Melanie Klein e seus seguidores como identificação projetiva (Klein, 1946, 1955) No primeiro caso, o recalcamento gera as condições mais propícias à formação de laços transferenciais, bem como às introjeções. No segundo, intervêm mecanismos de defesa mais primitivos, como a cisão e a idealização, entre os quais a identificação projetiva, que precedem ou colocam o recalcamento em segundo plano. A identificação projetiva é, em primeiro lugar, embora não se esgote necessariamente nisso, uma fantasia através da qual partes do psiquismo do paciente são expelidas e colocadas sobre e dentro de seus objetos. Isso pode ocorrer seja para colocar para fora as partes más e insuportáveis, seja, ao contrário, para colocar para fora as partes boas e ameaçadas de destruição no interior de um psiquismo muito perturbado pelo ódio, a inveja e a culpa. Em ambos os casos, forma-se uma confusão entre o sujeito e seus objetos de identificação projetiva, com os quais o indivíduo estabelece relações narcisistas muito primitivas e resistentes à análise. Além de suas funções defensivas, porém, a partir de Rosenfeld (1971) e de Bion (1962) foi-se tornando consensual o reconhecimento de uma função comunicativa na identificação projetiva. Além de ser uma fantasia e um mecanismo de defesa, ela passa a ser vista como um processo que mobiliza efetivamente os afetos do "objeto", principalmente quando este objeto é um ser humano6. Nestes casos, dá-se uma comunicação afetiva e inconsciente muito intensa e imediata entre o sujeito e o objeto que, a rigor, se mantêm narcisicamente entrelaçados.

A distinção entre os processos estudados por Freud e Ferenczi e os estudados pelos kleinianos foi bem explicitada por Kernberg (1998) quando contrapõe, por exemplo, a projeção em Freud à identificação projetiva em Melanie Klein. Diz ele: "Clinicamente, a projeção importa em atribuir a outro algo que está profundamente reprimido...A repressão opera e a projeção a complementa.No caso da identificação projetiva, há uma combinação primitiva de projeção, manutenção da empatia com o que é projetado, a necessidade de controlar o objeto e uma tendência inconsciente para induzir o que é projetado sobre o outro ou dentro dele... E isso parece indicar, a meu ver, uma ausência de repressão madura". ((p. 21)

Uma distinção desta natureza também está na base da diferença estabelecida por Bion (1965) entre as transformações em movimentos rígidos e as transformações projetivas. No primeiro caso, os padrões do passado recalcado modelam as transformações operadas pelo paciente sobre o material oferecido pelas suas relações atuais com o analista, configurando assim, de forma padronizada e regular seu campo de experiências e relações de objeto. No segundo, as transformações envolvem a projeção de afetos que o psiquismo do paciente não pode conter, controlar e muito menos simbolizar e pensar sobre a relação com o analista e sobre ele, sobre o setting e mesmo sobre os seus arredores.Trata-se de um psiquismo cuja capacidade de pensar e simbolizar está na verdade profundamente atrofiada. Em conseqüência, sua capacidade de configurar objetos e diferenciá-los está pouco desenvolvida e por isso há como que um esparrame de afetos sobre o analista, sobre tudo que o cerca e tudo com que ele pode ser associado, de forma indistinta.

É claro que em uma relação transferencial podem emergir aspectos marcados pelas transformações projetivas sem que, no entanto, perca sentido a distinção proposta por Bion. Transformações em movimentos rígidos são características de funcionamentos predominantemente neuróticos, enquanto as transformações projetivas e, mais ainda, as transformações em alucinose, de que falaremos adiante, são características de funcionamentos predominantemente psicóticos e borderline.

Uma outra dimensão do fenômeno transferencial, que veio mais tarde a ser reconhecida em termos mais condizentes com sua especificidade, é a que envolve o desempenho de papéis pelo analista e pelo paciente. Até onde sei, foi em um belo texto sobre a técnica ainda no final da década de 20 que a psicanalista inglesa Ella Sharpe (1930) pela primeira vez acentuou o fato de que, na transferência, o paciente oferece e exige papéis (roles) a serem desempenhados pelo analista em processos de encenação tanto nos planos da realidade como na fantasia, mesclando passado e presente. Na década de 70 Joseph Sandler (1976) chamou a atenção para esta dimensão comportamental da transferência: o role enactment do paciente e a role responsiveness requerida ao analista. Mesmo que este não chegue efetivamente a responder e a contracenar, a disponibilidade afetiva para captar e, eventualmente, responder de forma incipiente às encenações do paciente, seriam condições para o processo de análise caminhar. A role responsiveness seria uma dimensão importante da sensibilidade contratransferencial que, desde que bem utilizada e controlada, se converteria em um instrumento importante na condução de uma análise.

Diga-se de passagem que também na tradição kleiniana esta dimensão de role enactment veio a ser reconhecida como um dos aspectos da identificação projetiva sempre que esta consegue efetivamente induzir no receptor (o analista, sujeito a contra-identificações projetivas) os afetos, a postura e os comportamentos correspondentes e complementares. No entanto, predomina a convicção entre os kleinianos de que a identificação projetiva pode estar ocorrendo sem que se manifestem estas dimensões de enactment, o que corrobora a pertinência da distinção que estamos estabelecendo. É claro, por exemplo, que se o objeto da identificação projetiva for um animal de estimação ou uma parte inanimada do ambiente, ou, no caso de um humano, se este não se sentir de fato invadido pela fantasia do paciente, nem por isso vamos dizer que a identificação projetiva está ausente ou atenuada. Isto implica reconhecer que a tendência a atuar a fantasia projetada ou a responder a ela pode ser freqüente, mas não é essencial na caracterização da identificação projetiva (Bell, 2001).

A partir destes textos freudianos e kleinianos que nos chamaram a atenção para as encenações, e com base na obra de alguns autores americanos provenientes da tradição de uma interactional psychoanalysis, a literatura sobre enactment cresceu muito nas últimas décadas (cf. Jacobs, 1991; Elman e Moskowitz, 1998). Novamente aqui, porém, tal como ocorrera com a literatura sobre transferência e sobre identificação projetiva, os ganhos em termos de acuidade na escuta da transferência foram pagos com alguma imprecisão. Os conceitos de "transferência" e de "identificação projetiva" em parte enriqueceram-se, mas em parte perderam seus contornos com a introdução e com o uso irrestrito do conceito de enactment que, em alguns autores, tende a confundir-se no plano conceitual com o de transferência e mesmo a subsumir a identificação projetiva. Embora, como se verá adiante, estes diversos processos costumem combinar-se nas situações da clínica, acreditamos que a manutenção das diferenças conceituais pode nos ser muito vantajosa.

3- Repondo a questão: Uma proposta para a discriminação entre tipos e/ou dimensões da "relação terapêutica"

3.1 Proponho que se reserve o conceito de "transferência" ou "transformação em movimento rígido", e, correlativamente, o de "contratransferência", às situações em que, efetivamente, o analista constitui-se para o paciente e por ele como objeto externo da fantasia. Algumas dimensões ou características desta relação podem ser realçadas. Nela experimenta-se, de parte a parte, a linguagem como linguagem e abre-se, portanto, um espaço de sonho e um espaço de jogo em que são possíveis as associações livres, as interpretações, mutativas ou não, os insights, os acontecimentos, as ressignificações e ressubjetivações etc. É claro que os pacientes difíceis também são falantes. No entanto, como se verá mais tarde, o uso que fazem das palavras pode ser bem peculiar. As situações em que predominam a transferência e a fala como fala são aquelas em que se desenrola uma análise padrão - com os "pacientes fáceis" - e em que a contratransferência primordial constitutiva do psicanalisar é continuamente realimentada.

3.2. Já quando dominam, de parte do paciente, as identificações projetivas ou transformações projetivas, do lado do analista esperaríamos encontrar identificações introjetivas, continência e capacidade de rêverie, vale dizer, metabolização simbólica. Há, porém, é claro, a possibilidade das identificações projetivas produzirem no analista contra-indentificações projetivas, processo no qual o analista se defende devolvendo as projeções que lhe foram endereçadas em estado bruto ou enviando as suas próprias sobre o paciente.

Nas relações marcadas pela forte incidência de identificações projetivas, o analista não se institui como objeto externo da fantasia, mas pura e simplesmente como objeto da fantasia, destinatário e depositário de afetos sem mediação simbólica. O que se observa predominantemente nestes casos são as atuações, as evacuações, as alucinações e os delírios que caracterizam as transformações projetivas e, em estados mais radicais de psicotização, as transformações em alucinose em que a realidade é construída na medida das necessidades do paciente de forma a que este não chegue nem a experimentar a diferença, a falta e a frustração. Nesta medida, as falas não são linguagem como linguagem, mas meios de efetuação destas operações de defesa, eventualmente de comunicação, muito mais primitivas. As palavras não representam, elas são partes da vida psíquica e afetiva, são coisas. Por isso, aspectos não-verbais da fala e da voz, como timbre, entonação, melodia, ritmo, colorido semântico, estrutura gramatical, estilo retórico, clima e atmosfera do discurso (cf Ogden, 1998 e Figueiredo, 1998), bem como de toda a presença do paciente em termos de expressões faciais e corporais, são elementos decisivos nas operações das identificações projetivas e na sua recepção. Estas dimensões conseguem "transmitir" e provocar afetos de uma forma muito direta, instalando estados subjetivos nos eventuais receptores cujas causas e razões dificilmente podem ser postas em palavras, mesmo quando estão originalmente associadas à fala.

Como objeto da fantasia, a diferença do analista em relação ao paciente é negada e ele comparece como objeto narcísico (um self-objeto nos termos de Kohut) sendo, em uma certa medida, vítima de uma verdadeira "desobjetalização", tal como sugere Green (2002), o que retomaremos adiante. Quaisquer que sejam as funções da identificação projetiva, seja na ordem das defesas, seja no plano das comunicações, o que foi tão acentuado por Bion, a sua função primordial, conforme sublinha Betty Joseph (1987)7, é a de negar a separação, vale dizer, é uma recusa radical da diferença, o que efetivamente se observa tanto nos pacientes francamente psicóticos como na "psicose branca" dos chamados pacientes concretos. (cf Bass, 2000).

Nesta medida, quando prevalece a identificação projetiva como defesa e como forma de comunicação, ou seja, quando ocorre a identificação projetiva maciça nos pacientes narcisistas, verifica-se também uma ausência de transferência stricto sensu., o que confirma, em última análise, a posição de Freud. Cabe assinalar que muitos analistas kleinianos vieram a admitir o fato de que "interpretações da transferência" com pacientes muito narcisistas são contraproducentes e ineficazes, irritando-os e não produzindo transformações terapêuticas. Provavelmente, isso ocorre porque nestes casos, a rigor, não estamos lidando com relações transferenciais, transformações em movimentos rígidos, mas sim com transformações projetivas e identificações projetivas maciças ou transformações em alucinose. "Interpretações da transferência", portanto, não seriam apenas pouco oportunas nestas circunstâncias, mas, de fato, um equívoco técnico decorrente de uma falha na conceituação do que se passa na relação terapêutica.

Se empreendermos aqui um breve retorno a Ferenczi (1909) assumindo que a primeira relação objetal já implica uma transferência - no caso, a transferência da experiência auto-erótica sobre o primeiro objeto de amor e de ódio - poderíamos sugerir que estes pacientes ainda estão contínua e repetidamente tentando a passagem do auto-erotismo ao amor objetal e nela fracassando. Para tratá-los, o analista deve ser capaz de assisti-los no que pode ser concebido como a procura primordial de um objeto apto a propiciar a transição oferecendo ao paciente o apoio (holding) e um aparelho para a metabolização - ou simbolização - de suas sensações e impulsos. Creio que todas as considerações de Kohut (ex. Kohut 1968) sobre as chamadas "transferências narcisistas" (termo que teríamos preferido evitar para não criar confusão) com self-objetos especulares e idealizados podem nos ser muito úteis no acompanhamento destes casos, bem como, é claro, os conceitos de "continência" e de "rêverie" criados por Bion para descrever esta instalação primária de um "aparelho para pensar".

3.3. Finalmente, quando predominam os "enactments", espera-se e requer-se do analista alguma disponibilidade para os counterenactments, mesmo que toda a prudência seja necessária e, quase sempre, insuficiente, para lidar com estas situações. Nestes casos também, o analista não é constituído como objeto externo da fantasia em um espaço de jogo, mas existe como objeto externo com o qual uma parte do paciente "interage" continuamente nos planos inconsciente e consciente para produzir efeitos e manter distâncias (controlar), sem mediação simbólica. Aqui, novamente, o recurso à fala - e há pacientes que abusam dos enactments e são extremamente bem articulados no plano verbal, como tantos pacientes falso-self - não deve nos enganar quanto ao nível de funcionamento psíquico do indivíduo.

As encenações contínuas e a exigência de contraencenações são características dos pacientes esquizóides afetados pela falha básica (Balint), portadores do falso self (Winnicott), traumatizados e vítimas do que Shengold (1999) chamou de soul murder. A capacidade de sonhar e brincar estão seriamente afetados, pois não se constituiu um espaço potencial no qual o subjetivo e o objetivo, o eu e os outros possam se encontrar e se incorporar, paradoxalmente, a objetos transicionais. Igualmente, o uso das formas mais primitivas da comunicação emocional está interditado. Isso não significa uma ausência de vida interior, de vida de fantasia. Ao contrário, ela pode existir e ser muito poderosa, mas forma um sistema fechado e excludente, o que nos remete a Fairbairn (1958) e seu conceito de closed system, um aparelho cujo funcionamento deixa de fora os objetos do mundo real e compartilhado. Os objetos deste mundo exterior precisam ser mantidos sob controle e as encenações que impõem ao analista um papel e nele o tentam fixar, cumprem bem este objetivo.

O que, contudo, precisa ser continuamente reconhecido pelo analista é que estas encenações de presença, em que o paciente ocupa uma porção muito efetiva na "realidade" e chama o analista para ela de forma imperiosa e controladora, (ou seja, encenando-se aí formas excessivas de presentificação), escondem uma real ausência afetiva: trata-se da quase total inacessibilidade do mundo interno das fantasias e afetos nos pacientes "fora de alcance" (cf. Joseph, 1975). Há uma cisão entre a parte presente na encenação e a ausente - afetos enclausurados na fantasia e em estado de congelamento (Winnicott) - ao invés de, como ocorre na transferência, ausência e presença se sobreporem e coincidirem sem coincidência, ou seja, ao modo de um paradoxo. Apenas como exemplo: um paciente esquizóide quando está particularmente retraído chega à sessão e, em um arremedo do que seria uma sessão de análise (uma encenação de "análise"), conta-me uma seqüência de sonhos. Ele os apresenta como totalmente enigmáticos e não consegue oferecer nem uma única associação, como a me dizer que sua vida interior é muito densa a ponto de ser impenetrável. No entanto, e isto é o que transcorre no plano inconsciente do enactment, ele me atribui e me fixa na posição do "analista decifrador de sonhos", o que é, por sinal, uma posição de antemão fadada ao fracasso neste caso, inclusive porque não se trata efetivamente de análise o que ele está me propondo. E neste jogo de esconde-esconde pode decorrer toda uma sessão, ou mesmo fases inteiras do trabalho terapêutico, que não avança, mas também não se interrompe, ao menos na aparência.

Enquanto o paciente narcisista nega a diferença e a separação, o esquizóide aceita a diferença, levada inclusive a extremos, para controlar o diferente e, também assim, proteger-se de uma verdadeira separação; em acréscimo, nesta modalidade de recusa da separação, recusa-se simultaneamente a fusão com os objetos. Estes ficam sob controle, mas como externos, sem se confundirem com os objetos internos maus, sedutores e persecutórios, que continuam povoando a agitando a mente do paciente esquizóide.

Se diante do paciente que abusa de identificações projetivas, a dificuldade para o analista é a de ter alguma eficácia como objeto externo diferenciado, aqui a dificuldade é a de ocupar alguma posição como objeto interno no âmbito da fantasia, na área de onipotência. Daí a necessidade tão bem percebida e teorizada por Winnicott de reconhecer nestes casos os limites da interpretação. É certo que também as fantasias atuadas dos pacientes narcisistas requerem uma interpretação de novo tipo, muito mais apta a conter e a simbolizar os afetos do que propriamente ter acesso ao recalcado e a interpretá-lo, trazendo-o à consciência. Nos casos dos pacientes esquizóides, porém, os limites da fala interpretativa podem ser maiores, pois não faz sentido a tarefa de interpretar comportamentos dissociados de fantasias e afetos congelados. No entanto, creio que as interpretações podem ocorrer com a função de holding verbal, a serviço do manejo da regressão e da instalação da confiança como passos preliminares para o descongelamento afetivo, para a superação das cisões e dissociações, para o contato com o mundo dos afetos e das fantasias na regressão e para a instalação subseqüente da capacidade do sonho e do espaço de jogo.

3.4. Tudo o que foi dito até aqui, espero, deve ter indicado a importância que atribuo aos processos de identificação projetiva e de "enactment" na clínica contemporânea, e o valor diagnóstico destas modalidades de comunicação e relação terapêutica.

Retomando brevemente, identifico um pólo de adoecimento esquizóide com a ênfase nas separações, cisões e dissociações, com o objetivo de manutenção da onipotência infantil pela via da auto-suficiência, gerando freqüentemente os casos de pseudo-maturidade. O que se observa em geral são estados de retraimento, rigidez, intolerância (disfarçada, muitas vezes, em boa educação e polidez), senso de futilidade e tédio e, muitas vezes, uma depressão de caráter auto-protetivo, uma espécie de auto-anestesiamento. Trata-se, em poucas palavras, de um aparelho psíquico excessivamente fechado tanto para as comunicações com o mundo externo, com a alteridade externa, como, igualmente, para as comunicações entre suas partes dissociadas. O inconsciente parece emudecido. São casos em que o processo de introjeção foi obstruído, em que a incorporação traumática dos maus objetos "entupiu" os canais de comunicação, casos, portanto, em que, como nos aponta Bion (1959), as formas brandas, normais e saudáveis do contato afetivo pela via das identificações projetivas foram invalidadas. Este fechamento é, portanto, de natureza quase exclusivamente defensiva: muito pouco de Eros está operando.

No outro pólo, temos o adoecimento narcísico com a ênfase na unidade, na negação da diferença, na ausência de limites, na ausência de barreiras, com o objetivo de manutenção da onipotência infantil pela via da imersão fusional. O que observamos em geral é a voracidade e a impaciência (em relação ao self-objeto especular e ao idealizado), a projeção paranóide desenfreada, a fúria destrutiva como reação às feridas narcísicas e, diante dos fracassos e perdas irremediáveis, a melancolia. Nestes casos, é como se o aparelho psíquico não se houvesse "fechado" e constituído em termos de barreiras de contato capazes de produzir tanto diferenças como, também, mediações e trocas.

Aqui cabe uma pequena observação lateral: dada a proliferação atual do discurso acerca e dos procedimentos de controle da chamada "depressão", acho relevante chamar a atenção para as diferenças entre, de um lado, a depressão narcísica e melancólica e, de outro, a depressão esquizóide, a do tédio e da auto-anestesia. Creio que esta distinção deveria ser mais considerada, inclusive em termos medicamentosos, pois venho observando que os efeitos dos chamados antidepressivos talvez variem em função da qualidade e da natureza da "depressão" a ser tratada.

Finalmente, como venho sugerindo em diversos trabalhos (cf. Figueiredo, 2000), na interseção dos adoecimentos narcisistas e esquizóides, encontramos o paciente borderline, com suas angústias e defesas características e, principalmente, com as oscilações abruptas entre os pólos esquizóide e narcisista. Vale considerar, também, que estas oscilações podem ser tão rápidas e freqüentes que o analista se verá quase que simultaneamente engolfado e excluído diante da vida mental do paciente.

4- As desordens do caráter (patologias do self) e três hipóteses sobre a chamada pulsão de morte

O campo acima circunscrito é, grosso modo, o das desordens do caráter no qual as psicopatologias dispõem do corpo, seus comportamentos e processos, dos afetos e da linguagem de formas distintas do que se costuma encontrar nas psiconeuroses. Nestes distúrbios, o símbolo como mediador inter e intrapsíquico - mediando entre corpo e mente, entre afetos e sentido e entre um e outro, vale dizer, o símbolo como instrumento da Bindung em todas as suas dimensões, está em crise. Como se disse antes, não é a condição de falante que garante que é de linguagem que se trata quando um paciente abre a boca. Isso quer dizer também que nem sempre é a transferência no sentido estrito que teremos como objeto de análise e manejo. A crise da mediação simbólica, a crise da capacidade de ligação, seja na formação de laços sociais, seja na constituição de um aparelho psíquico capaz de mediação interna, de ligação e diferenciação é o que vai caracterizar a operação do psiquismo em um regime além ou aquém do princípio de prazer em que as funções de desligamento e desobjetalização operam com todo vigor e são as mais evidentes na compulsão à repetição. (Green, 2002), embora não sejam as únicas, como será sugerido adiante.

Chegando a este ponto de nossa trajetória, podemos ensaiar uma compreensão multifacetada destas manifestações da compulsão à repetição.

Sugerimos como primeira hipótese que a repetição, tanto nas identificações projetivas maciças como nos enactments contínuos, corresponde a manifestações da chamada "pulsão de morte", isto é, da pulsão em busca de descarga a qualquer preço por não ter encontrado nos objetos primários o apoio (holding) e a continência para o exercício das operações mais básicas de mediação, ligação e separação. Estas operações, efetuadas no início da vida pelos "objetos" que se dispõem a integrar os circuitos pulsionais, são as que permitem o efetivo desenvolvimento das funções simbólicas e da linguagem. Mais tarde, quando estas mesmas funções estiverem internalizadas, a dependência primária em relação aos objetos poderá ser atenuada sem que o psiquismo se veja lançado no modo de funcionamento mental que opera além do princípio de prazer. Isso é o que teria ficado faltando nos pacientes com adoecimentos narcisistas e esquizóides significativos. Neles, encontramos, por assim dizer, a pulsionalidade ela mesma aflorando, sempre lembrando que a chamada "pulsão de morte" já era identificada por Freud como o que de mais pulsional há na pulsão. O que estamos sugerindo é que esta pulsionalidade só se manifesta de forma nua e crua (sem ligação e sem representação possível), quando a pulsão não encontra em seus objetos a capacidade de exercer as funções primárias que são as bases de todos os processos de ligação e, portanto, as condições para a manifestação de Eros e para a vigência dos princípios de prazer e de realidade. Assim sendo, tendemos a concordar com Fairbairn (1958) e também com Green (2000) que vêem na chamada "pulsão de morte" uma espécie de malogro da procura de objeto pela pulsão. É só então que a tendência à descarga e à desobjetalização vem à tona.

No entanto - e esta é nossa segunda hipótese - não se deve perder de vista o fato de que, mesmo quando, diante das falhas ambientais precoces, o psiquismo parece preferir o desligamento, a destruição parcial ou total dos objetos (função desobjetalizante) e a própria morte (como na "criança mal acolhida" descrita por Ferenczi [1929], que se entrega à não-vida com extrema facilidade), nas repetições ainda se encontra uma vitalidade profunda. É o contrário do que se passa, por exemplo, na síndrome do hospitalismo descrita por Spitz (1965), em que predomina a apatia. Portanto, a repetição é também, mesmo quando reduzida à pulsionalidade mais primitiva, a testemunha de uma procura de afirmação do mesmo à revelia do outro; pode ser entendida como "narcisismo de morte" (Green, 1983), mas é, ainda assim, narcisismo, constituição do próprio. É claro que "a afirmação do mesmo à revelia do outro" passa pela destruição do outro - e as descargas têm também este sentido, além de serem formas de redução da tensão - sem que a desobjetalização seja a finalidade última do processo. No que pode aparecer apenas como auto-aniquilamento, há um próprio que se constitui na própria repetição do mesmo, sem que alguma diferença possa ser admitida, pois ela seria experimentada como pura desintegração. Onde não se admite diferença, nem eu nem outro , nem sujeito nem objeto se constituem e o paradoxal é que seja neste nível que o próprio deva se afirmar, uma auto-afirmação no limite.

Finalmente, vamos à terceira hipótese: se nas operações da pulsão de morte e nas repetições que se dão além do princípio de prazer há, certamente, "ataque aos elos de ligação", aos afetos (- L e - H) e ao conhecimento (-K), conforme nos ensina Bion (1959), há também aí a insistência da vida e mesmo a exacerbação daquela "tendência psicoterapêutica" que Searles identificava em seus pacientes graves e que pode ser agora reconhecida em sua verdadeira natureza: é a repetição como insistência (muitas vezes, desesperada) na procura de um objeto vivo e saudável e na restauração dos objetos danificados ou mortos. A dependência do indivíduo em relação ao ambiente - o extremo desamparo do indivíduo humano (não só no início da vida, mas sempre) - é o que o leva desde muito cedo a precisar cuidar de seus "objetos - curando-os e mesmo educando-os - para que eles possam assumir as funções decisivas na sua constituição psíquica e física. Bebês, e crianças ajudam os pais a serem pais e mães a serem mães, a segurá-los e a contê-los. O mesmo fazem os pacientes com seus terapeutas. Quando isso não é possível, seja porque se trata de objetos incuráveis e não educáveis, seja porque a capacidade de cuidado do bebê ou do paciente não é reconhecida, estes se fixarão patologicamente nas posições de inveja, ódio ou, por formação reativa, de reparadores maníacos, três grandes obstáculos ao processo terapêutico. Por isso, como sugere Searles, é preciso deixar-se curar por estes pacientes para que eles possam ser minimamente cuidados, pois, antes de mais nada, será apenas na condição de objetos vivificados ou ressuscitados por eles que poderemos tratá-los. Eles nos ensinam e curam para que possamos curá-los, inclusive curá-los, eventualmente, de sua fúria curativa. Talvez possamos, desde este vértice, entender a desobjetalização como uma tentativa canhestra de dissolução da "objetalidade" dos objetos para que os aspectos do ambiente capazes de proporcionar holding e continência possam ser recuperados em sua dimensão pré-objetal, condição na qual estas funções podem ser efetivamente exercidas8. Enfim, a desobjetalização pode ser entendida como a destruição do objeto, no sentido estrito, destinada a reconduzi-lo à condição de self-objeto.

Mas atenção: nossas três hipóteses não devem ser tomadas como alternativas mutuamente exclusivas, mas, ao contrário, como entrelaçadas segundo a lógica da suplementaridade (Figueiredo, 1999). A compulsão à repetição, comandada pela chamada pulsão de morte (1) reflete não só a tendência à descarga e ao zero de tensão, pela via da destruição das diferenças e da dissolução de si e do outro, como, ao invés disso, (2) uma afirmação e mesmo uma preservação in extremis do próprio; e não apenas isso, como, ao invés disso, (3) uma reiterada procura do objeto primordial, uma procura que passa, justamente, pela (1) destruição das diferenças e dissolução de si e do outro, e assim por diante... De sorte que o termo "pulsão de morte" acaba se revelando bem pouco adequado e muito restritivo para dar conta de tudo que está implicado - ainda que de forma contraditória - nos processos de repetição compulsiva. É, aliás, a conclusão a que chegara Ferenczi em uma nota recentemente descoberta. Dizia ele: "Nada além de instintos de vida. O instinto de morte, um erro (Pessimista)".

E a remissão a Ferenczi não é casual neste momento. Foi das leituras cruzadas de Além do princípio de prazer e de Thalassa (Figueiredo, 1999), fecundadas pelas observações clínicas, que pude chegar a propor esta concepção da chamada "pulsão de morte". Descobrir a vida pulsante nos estados de quase-morte, reconhecer nos estados-limite uma preservação paradoxal da vida, perceber a dialética entre desobjetalização e restauração do "objeto" primordial, creio eu, foi a grande lição que (intuitivamente) nos legou Ferenczi em seus últimos textos (Ferenczi, 1932-3/1985). A clínica winnicottiana com os pacientes esquizóides parece-me ser a grande herdeira desta tradição, com sua ênfase na capacidade de sobrevivência do analista às vicissitudes do processo que a análise deflagra e tem como responsabilidade própria sustentar quando se depara com indivíduos que até este momento se mantiveram vivos na mais absoluta precariedade, seja a do congelamento afetivo esquizóide, seja a da dissolução e da turbulência narcisista. Encontramos tanto em Ferenczi como em Winnicott um contraponto importante à ênfase na destrutividade e no ataque aos elos de ligação que tanto marcam os pensamentos de Klein e Bion. Creio que ao conceber a chamada "pulsão de morte" pelos três vértices acima mencionados, reconhecendo a dimensão da descarga, a do caráter mortífero do narcisismo, mas também a insistência da vida, abre-se um horizonte clínico muito mais promissor, sem que se caia, por outro lado, em um otimismo fácil, pois, não há dúvidas de que se trata de pacientes difíceis.

Na clínica psicanalítica contemporânea, vamos encontrar áreas reconhecidas como de ausência do pleno funcionamento dos dispositivos simbólicos, como no caso dos pacientes com "pensamento operatório" e psicossomáticos (cf. Smadja, 2001, que articula a tradição da escola psicossomática de Paris com a psicanálise de André Green). Talvez, sejam estes exemplos radicais de esquizoidia, embora em tais pacientes pareça mesmo não haver, nem mesmo em estado de dissociação e enquistada, uma vida afetiva e de fantasia. Contudo, sugiro como hipótese a vantagem de compreendermos estes casos a partir do paradigma da esquizoidia, posto que se trata, e quanto a isso não parece haver dúvidas, de uma patologia do self . Nesta condição, que engloba os adoecimentos narcisistas e os esquizóides, penso que os psicossomáticos se aproximam muito mais da descrição do paciente esquizóide, com sua mortífera estabilidade, (cf. Bromberg, 1998) do que do narcisista, com suas fúrias, dores e amores exaltados.

Mas também nos deparamos, com grande freqüência na clínica contemporânea, com os "maus usos dos símbolos" nos pacientes narcisistas e esquizóides em geral. Bion (1963) com sua Grade nos ensinou a distinguir entre o grau de elaboração de um pensamento e a modalidade funcional de seu uso. Símbolos muito sofisticados podem ser usados para tarefas muito pouco nobres, como a evacuação, ou muito perniciosas nos planos intra e interpsíquico, como o controle puro e simples da mente alheia: podem ser usados para matar e para morrer, embora continuem também servindo para manter a vida nos extremos e nos limites.

Quanto à incidência na contemporaneidade destas patologias do self, marcadas pelo não-encontro dos objetos em suas funções básicas - mais do que pela perda dos objetos de satisfação, o que é o característico das neuroses - cabe assinalar, de forma apenas sugestiva, a precariedade dos modos que a sociedade, as instituições e a família oferecem hoje em dia para proporcionar aos indivíduos este milagroso encontro da pulsão com os objetos primordiais, capazes de holding e continência. A proliferação de objetos excitantes e calmantes (entre os quais, mas não só, as drogas) dá o testemunho pelo avesso da ausência a que estamos aludindo. Trata-se de um universo cultural cada vez mais repleto de estímulos e cada vez menos apto a fazer ligação, efetuar separações, mediar e dar sentido (cf. Figueiredo, 2001) cada vez mais repleto de sexo e violência, por exemplo, e menos regido por Eros. Uma cultura do traumático.

5- Finalizando

Depois desta breve tentativa de discriminar as modalidades de relações terapêuticas em que corpo, afeto e linguagem ocupam posições muito diferentes, convém reafirmar o fato, tão facilmente observado na clínica, de que as identificações projetivas e os enactments podem ser entendidos como dimensões colaterais da transferência. É sempre bom que o analista cultive sua escuta e monitore suas intervenções levando em conta este conjunto de falas, afetos e manifestações corporais.

Mas é preciso ir além: quando as identificações projetivas e os enactments assumem uma certa proeminência, eles podem funcionar como obstruções à transferência stricto sensu. Seja quando as dimensões colaterais são muito fortes, gerando o que muitas vezes entendemos como "transferências intensas" - com a projeção de superego arcaico sobre o analista em neuroses de transferência graves - seja quando as identificações projetivas são maciças em pacientes narcisistas e os enactments são contínuos em pacientes esquizóides, ou ainda, o que é a situação mais difícil, quando identificações projetivas e enactments mostram-se alternados ou simultâneos em pacientes borderline, em todos estes casos verificamos e sentimos na pele e na alma os ataques à função analítica, sendo a psicanálise, afinal de contas, uma talking cure.

Sofremos como que ataques às reservas (Figueiredo, 2000a), à mente própria do analista (Caper, 1997), ou à sua linguagem (Fédida, 1992). Retomando o que dissemos na abertura, podemos sugerir que são, antes de mais nada, ameaças à contratransferência primordial: dificuldades imensas para a preservação e reposição da contratransferência primordial que pode, neste momento, ser concebida como uma "reserva de alma". Nesta reserva de alma residem nossas teorias, nossos desejos, nossa capacidade de pensar, falar, simbolizar e sonhar. Mas aí reside, fundamentalmente, nossa capacidade de ser afetado e interpelado pelo sofrimento. É, portanto, o que de mais precioso podemos oferecer e, como disse Caper, se conseguirmos preservar e oferecer esta condição em meio às vicissitudes e tempestades de uma análise difícil, mesmo que o paciente não melhore, não teremos existido em vão. Creio que se formos capazes de reconhecer o triplo sentido disto que, em um primeiro momento, sentimos como puro ataque, estaremos certamente mais capacitados a este trabalho. Assim, ao menos, é o que venho experimentando em minha atividade clínica e que, de uma forma certamente ainda muito tosca e carente de maiores desenvolvimentos, procurei transmitir a vocês como matéria para pensar.

Publicado no livro "Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea", São Paulo, Escuta, junho/2003, p. 127-158.


1 - As idéias apresentadas neste trabalho foram sendo elaboradas ao longo de diversas oportunidades durante o ano de 2002: na palestra de encerramento da Jornada da Formação Freudiana (junho, Rio de Janeiro), no VI Congresso de Psicopatologia Fundamental (setembro, Recife) e na palestra de abertura da jornada do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (setembro, Belo Horizonte). A presente versão é inédita e se beneficiou dos comentários, críticas e revisões efetuadas gentilmente por Elisa Ulhoa Cintra, Miriam Uchitel e Zeferino Rocha, a quem agradeço; Pedro Henrique Bernardes Rondon colocou à nossa disposição toda a sua capacidade de leitor e editor criterioso, pelo que sou particularmente agradecido. A presente versão contou, finalmente, com a leitura, sugestões e críticas de Elisa Ulhoa Cintra, Charles Lang, Mauro Meiches, Nelson Coelho Júnior, Octávio de Souza, Paulo Carvalho Ribeiro, Pedro de Santi, Sidnei Cazeto e Vera Lúcia Blum, reunidos para a discussão do trabalho em novembro de 2002. 2 - Psicanalista, professor da USP e da PUC-SP; autor de Ética e técnica em Psicanálise (em colaboração com Nelson Coelho Júnior), Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi e Escutar, recordar, dizer. Encontros heideggerianos com a clínica psicanalítica, entre outros livros e artigos em revistas especializadas. 3 - Por exemplo, mães narcisistas que atrelam seus bebês e filhos pequenos à própria necessidade de serem "cuidadas" por eles, explorando a propensão daqueles tratarem a psicose de suas mães. 4 - Deve ficar claro para o leitor que, ao colocar "melhora" entre aspas e ao acentuar o caráter jocoso da frase de Caper, não se está sugerindo que a evolução clínica do paciente não importe, desde que o analista se sinta satisfeito com o trabalho que realizou. Apenas se diz que em uma análise padrão a contratransferência primordial não é atacada como ocorre em uma análise difícil; ao contrário, pode ser desenvolvida. Mas se isso ocorrer, naturalmente, o analista ficará mais e não menos sensível ao sofrimento do analisando. Vale dizer, é o contrário do que resultaria de um fortalecimento do narcisismo patológico do terapeuta. Aqui, o que se sugere é que o analista seja capaz de se manter na posição de analista apesar da ferida narcísica que sofre em decorrência da continuidade do sofrimento de seu paciente e da sua própria incapacidade de salvá-lo deste sofrimento. 5 - Sobre a conveniência de se incluir a tendência à descarga como uma qualidade essencial da chamada "pulsão de morte", ver-se-á adiante (item 4) que isto só é parcialmente verdadeiro. 6 - Vale recordar, contudo, que pode ser um animal e mesmo um aspecto do ambiente inanimado, casos em que a identificação projetiva tem apenas o status de uma fantasia e só comporta a dimensão defensiva. 7 - "Na raiz mais primitiva da identificação projetiva está a tentativa de retornar ao objeto - tornar-se como que indiferenciado e sem mente para evitar toda a dor psíquica" (Joseph, 1987, p. 178) 8 - É nesta direção que nos parece ir a interpretação de Octávio Souza sobre certos efeitos do consumo de drogas, focalizando as situações em que elas produzem um movimento regressivo nas relações objetais e favorecem o restabelecimento de formas mais primitivas de relação com o ambiente. (Souza, 2002).

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