Anorexia, Uma Cega Tenacidade

Daisy Justus

As psicopatologias da contemporaneidade têm uma proposta de abordagem no Seminário 4, quando Lacan, ao enfatizar que o pai simbólico é exatamente o Nome do Pai, aponta-o como elemento mediador essencial do mundo simbólico e de sua estruturação. Prossegue afirmando que essa função faz-se tão essencial quanto o desmame primitivo, através do qual a criança se liberta da forte interação com a onipotência materna. Porém, o sujeito só vai realizar inteiramente o complexo de castração, se o pai real participar deste processo, assumindo o papel de pai castrador, ou seja, vivendo o personagem do pai primordial em sua versão tirânica (Lacan, 1995: 374).

Logo, a castração envolve ambas as figuras parentais. Existe uma anterioridade da castração materna, e a paterna vem se colocar como seu substituto. A observação seguinte é pontual: a castração paterna "talvez, não seja menos terrível, mas é certamente mais favorável que a outra, porque é suscetível de desenvolvimento, o que não é o caso do engolimento e devoração pela mãe" (grifo nosso) (idem: 377).

São exatamente essas experiências fundamentais de ruptura e de falta, tais como a separação do nascimento, o desmame, o afastamento da mãe e a castração, que vão dar possibilidades ao sujeito de elaborar sua subjetividade. Ela será articulada através do espaço vazio deixado pela perda do objeto primordial. A carência dessa interioridade tem por conseqüência nociva, por vezes até mortífera, a exclusão da atividade libidinal da cadeia simbólica. A relação com a mãe torna-se uma relação "tranqüilizante", sendo um facilitador para a compulsão, numa tentativa de suplência da falta.

Merleau-Ponty afirma que toda visão é narcísica, ao mesmo tempo que sustenta que "somos seres olhados no espetáculo do mundo". A questão fica exaltada na sociedade atual, qualificada como a sociedade do espetáculo segundo o estudo de Débors e/ou como a cultura do narcisismo, no enfoque de Christopher Lasch. A psicopatologia da pós-modernidade torna explícito que a economia narcísica da individualidade é valorizada e incrementada ao máximo, interessando apenas "as gesticulações performáticas na cena espetaculosa do mundo" (Birman, 1999: 246). Deste modo, a existência do sujeito se constitui pelo eixo de sua estetização. A inflação egóica define as novas relações entre o sujeito e o outro, e neste universo as noções éticas de alteridade e reconhecimento da diferença correm o risco do desaparecimento.

O ideal de nossos dias é de corresponder a padrões. Vivemos atualmente uma cultura de construção de imagens, que, através do privilégio da boa forma, naturaliza a construção perversa, abafando a circulação do Discurso do Analista, tentando fazer da Psicanálise, a clínica do gozo. Na medida que as sociedades ocidentais têm uma expectativa de que o corpo bem sucedido seja longilíneo, um corpo magro, o resultado é que esse imaginário social, por falta de elaboração, propicia, direta e indiretamente, a manifestação de distúrbios da oralidade, tais como, a anorexia e a bulimia.

A anorexia é uma das traduções da impossibilidade, ou da tentativa fracassada, do sujeito atual se inserir virtualmente na cena do espetáculo. Paul Laurent Assoun, em Freud e a Mulher, vê a anorexia como uma síndrome histérica que expressa enfaticamente algo de característico da feminilidade. A anoréxica "apresenta um espetáculo que responde à perplexidade de Freud, já que, em sua pretensão fantasística, ela é aquela que, por excelência, sabe o que quer". Porém, o que ela ignora é que esse querer determinado sustenta uma negação do desejo. Deste modo essa estrutura neurótica traz um traço de perversão na marca mesma de uma Verleunung (renegação). "O querer garante a presunção do saber absoluto, mas esse corpo subjugado constitui uma barreira para algo que não quer se expressar, que é o desejo pelo outro" (Assoun, 1993: 118). Renegação da sedução: desencanto e ausência de sexualidade. "Se a histérica, na sua paródia enganadora do convite sexual, com sua dança aliciadora, debate-se com a sedução e a utiliza como uma armadilha para submeter os homens, a anoréxica recusa-se a isso" (Bidau, 1998: 75).

Como resultado de um deficiente exercício da paternidade, um dos paradigmas do mal estar contemporâneo, na anorexia o par mãe-filha faz uma sólida união, formando como que uma liga, "uma cilada narcísica" (Bidaud, 1998: 87). O olhar do pai traz sinais de ausência de desejo, e a mãe, "em crise", exibe um olhar que traz a marca do excesso. Este tipo de discurso paterno, em vez de consolidar o processo identificatório da filha, consegue empobrecê-lo, já que ela irá ouví-lo como que dirigido a uma morta.

Na adolescência, momento em que a jovem se volta para o pai com a intenção de alcançar sua feminilidade, complementando o corte com o vínculo materno, é especialmente um certo olhar que ela requer da instância paterna. É o momento em que este olhar não pode faltar. Trata-se de uma demanda muda, aquela que envolve uma certa discrição, num ponto de hesitação simbólica, entre a pulsão oral (voz) e a pulsão escópica (olhar).

Assim, dois objetos pulsionais têm seus destinos relacionados entre si, nesta metamorfose que vai elaborar a abertura para a feminilidade: momento de obter o reconhecimento, de consolidar a identificação, momento de ser vista.

Freud em Por uma Introdução ao Narcisismo já havia destacado que na puberdade feminina, com o amadurecimento dos órgãos sexuais, até então latentes, há um aumento do narcisismo originário que é desfavorável à formação de um amor comum (Freud, 1974, v. XIV: 105). "Trata-se de fazer-se ver pelo pai, de buscar um sinal do que significa para ele que ela esteja em vias de tornar-se uma mulher. A questão urgente passa a ser: "com que olho ele me vê?" (Assoun, 1999:184).

A adolescente é demandante de olhar. A ausência de olhar, o olhar vazio abre a dialética: comer/ser comido, olhar/ser olhado. O ódio pela mãe fornece a energia a esta demanda totalitária. Medo de ser comida (devorada) pelo olhar da mãe e "vontade" de ser comida (com os olhos) pelo pai. Em carta à Marie Bonaparte (em 30/4/1932) Freud frisou que "a situação do incesto é exatamente semelhante à do canibalismo".

Examinemos melhor essa questão. Com relação à figura materna, podemos dizer que diante do temor de ser devorada pelo olhar desse outro claramente determinado, sua mãe, a saída que a anoréxica encontra é tentar, ela própria, devorar o olhar de sua mãe, colocando-se a serviço de uma "fantasmática de devoração". Porém, apesar de sua tenacidade, de seu superinvestimento, sustentando uma fantasia de onipotência, que até pode vir a se expressar narcísicamente através de ideais éticos e estéticos, de perfeição física e moral, o resultado dessa estratégia será sempre o fracasso (Schevach: 105).

Para romper o laço com a mãe, aparece a demanda frente à relação com a figura paterna - é preciso eleger um pai ou fazer-se eleger por ele. E o que ela espera do pai? Muito: que ele lhe prometa que a amará, que lhe "fará" um filho e que ela será uma mulher (e que sua mãe não será obstáculo a nenhum dos 3 desejos). Olhar, uma estranha e complexa condição de existência.

Mas como se reconhecer, se em sua tenacidade a anoréxica é tomada pela cegueira? Aos seu olhos, o sexo do Outro é apenas uma falha, revelada ou por uma potência excessiva ou por uma fraqueza demasiada. Freud afirmou que o olho cego da histérica não via na consciência, mas via no inconsciente o encanto erótico do outro amado. Podemos afirmar que a anoréxica se vê colocada frente a frente sua cegueira ao desejo, por aquele que não é nem viril nem feminino, mas falho ou onipotente: seu pai (Nasio, 1991: 142).

No Seminário 11 vamos encontrar a proposta de um laço entre o olhar, a fascinação e o sacrifício do desejo puro, quando Lacan enfatiza que o que se solicita é o próprio olhar, e não a visão. Há que se manter a distância entre esse ponto de onde o sujeito se vê passível de ser amado e um outro, aquele em que "se vê causado como falta pelo objeto a e onde o a vem arrolhar a hiância constituída pela divisão inaugural do sujeito". Essa hiância nunca é atravessada pelo objeto a, e é assim que lidamos com sua função com valor de olhar (Lacan, 1979: 255).

Temos aqui, mais uma vez, uma interessante articulação entre a pulsão escópica e a oral, até mesmo nas próprias palavras utilizadas por Lacan: "esse "a" se apresenta, justamente, no campo da mensagem da função narcísica do desejo, como objeto indeglutível, se assim podemos dizer, que resta atravessado na garganta do significante. É nesse ponto de falta que o sujeito tem de se reconhecer" (grifo nosso) (idem).

Essa questão se faz explícita, se concretiza no próprio corpo da anoréxica, uma vez que atingir ao corpo ideal corresponderia a um padrão que, ao mesmo tempo, a identifica e a faz perder sua identidade subjetiva. Um corpo uni-forme, que devora a diferença, que não sustenta a bissexualidade psíquica constitutiva do sujeito. A cega determinação em negar a questão da falta se articula com a construção da imagem de um corpo ideal que lhe é particularmente conveniente.

Promove ainda a construção de uma nova identidade através de um "sou anoréxica" ou "sou bulímica", ou ainda, posiciona-se pela palavra dos familiares: "Tenho uma filha anoréxica". Solução de posicionamento subjetivo, de localização do gozo. Em outras palavras, nomeia-se através do padecimento.

Por não conseguir situar o outro na sua liberdade de sujeito desejante, a anoréxica tenta uma frágil sustentação ignorando o outro como tal. Ela se isola do desejo dos homens e inscreve em seu corpo a marca de sua estranheza. Apaga de seu corpo todo sinal exterior de feminilidade, disfarçando as saliências de seu sexo, ou então, oferecendo, através do sua aparência trágica, sua versão grotesca.

A anorexia nos coloca diante do ponto culminante atingido pelo olhar no cenário do mundo, até além desse cenário, no ponto em que o sujeito é reduzido a uma pura e simples castração, ou a mero valor de mercado, numa sociedade inteiramente voltada para o consumo.

Sabemos que, na análise, o sujeito deverá ganhar em desejo o que ele perde em gozo. Dominado pelo componente narcísico que, como indicou Freud, pode dispensar um objetivo sexual, a anoréxica não alcança um corpo de prazer. O prazer fracassa em cumprir sua função de limite ao gozo.

Importante lembrar que Freud marcou uma diferença quando apontou em O eu e o isso (Freud, 1969, v. XIX: 40) que "o eu é, primeiro e acima de tudo, um eu corporal", afirmativa que se tornou fundamental quando se trata de qualquer articulação em torno da noção de corpo em Psicanálise. Anteriormente, já tendo definido a pulsão como um conceito limite entre o somático e o psíquico, Freud nos possibilitou construir o conceito de um corpo engendrado na trama dos destinos pulsionais, constituído pelo campo das pulsões.

A clínica da contemporaneidade parece apontar para uma ausência de corpo, no sentido até de uma descarga maciça das forças pulsionais. A análise, neste caso, através do vigor do desejo do analista, vai permitir o remanejamento através do Outro e o retorno da força pulsional sobre o próprio sujeito, isto é, sua libidinização, para que possa nomear seus objetos de desejo, em lugar de sofrer de tanto gozo. Dito de outro modo, a análise buscará a construção da referida corporalidade do eu através da transformação das forças pulsionais a partir da inserção do sujeito na cadeia significante.

Estamos afirmando que o referido mal estar contemporâneo, em sua vertente dos distúrbios alimentares, porta a marca do pulsional. Caberá à Psicanálise dar conta, através da escuta estabelecida pela relação transferencial, da compulsão à repetição, da impulsividade irrefreável de certos atos, etc. Na anorexia o sujeito fica fora da cadeia significante, fazendo-se escravo do seu não-dizer e, por fim, da pura mudez pulsional. Marcelo Hekier lembra que etimologicamente, "adicto" significa escravo, mas também pode significar não-dito, e é a partir dessa leitura que a Psicanálise vai poder escutar o corpo da anoréxica (Hekier, 1996: 14). Falar do corporal significa, fundamentalmente, apontar, por um lado, para as descrições corporais próprias de alguns fenômenos pulsionais, e, por outro, para o caráter unitário do psíquico e do somático.

A pulsão traz em si a indeterminação e variabilidade dos objetos e fins da sexualidade humana. Porque o sujeito é pulsional, seus caminhos não são previamente fixados, o que o joga (o sujeito) no desamparo de ter que criar sempre novas trilhas, contingentes e incertas, na busca de sua satisfação... inalcançável. Ou seja, não basta ter recebido a Nomeação Paterna. O Nome do Pai exige em si mesmo um constante trabalho de reedição, um trabalho de artesão, de artesania: faz-se imperioso nomear sempre que a ele, sujeito, falta. O pulsional aponta para a imprevisibilidade da vida psíquica, não determinada por nenhuma lei ou regra que pertença a sua natureza intrínseca, mas pelos jogos da linguagem simbolicamente constituídos e reconstituídos, sempre.

Finalizamos com Hekier, enfatizando que, quanto às psicopatologias da contemporaneidade, o psicanalista, ao ser convocado, não deve fazer desses posicionamentos subjetivos, uma categoria clínica, mas sim, escutá-los como uma demanda de questionamento constante da teoria, a fim de podermos fazer de nossa prática um movimento sempre reflexivo e permanentemente aberto.

daisy.justus@infolink.com.br

BIBLIOGRAFIA
ASSOUN, Paul-Laurent, 1993. Freud e a Mulher Rio de Janeiro: Jorge Zahar
________, Paul-Lauren, 1999. O Olhar e a Voz Companhia de Freud, Rio de Janeiro
BIDAU, Eric, 1998. Anorexia mental, ascese, mística Rio de Janeiro: Companhia de Freud
BIRMAN, Joel, 1999. Mal-estar na atualidade Rio de Janeiro: Civilização Brasileira
FREUD, Sigmund, 1979 Por uma Introdução ao Narcisismo, v. XIV, Rio de Janeiro: Imago
______, Sigmund, 1969 O Eu e o Isso, v. XIX, Rio de Janeiro: Imago
LACAN, Jacques, 1979 O Seminário, Livro 11 Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise Rio de Janeiro: Zahar
______, Jacques, 1995 - O Seminário, Livro 4 - A relação de objeto Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
HEKIER, Marcelo e MILLER, Celina, 1996. Anorexia-Bulimia: Deseo de Nada Buenos Aires: Paidós
MERLEAU-PONTY, Maurice O Visível e o Invisível São Paulo: Perspectiva
NASIO, Juan-David, 1991 A Histeria Rio de Janeiro: Jorge Zahar
SCHEINKMAN, Daniela, 1995- Da Pulsão Escópica ao Olhar Rio de Janeiro: Imago
SCHEVACH, Judith, 1999. Idéias de Bernard Brusset in BRUSSET, Bernard (org.). Anorexia e Bulimia São Paulo: Escuta