Para os 100 anos de Lacan

Chaim Samuel Katz

Para o que nos concerne aqui, a obra psicanalítica de Lacan se inicia desde uma dupla visada. Da perspectiva teórica, ele empreendeu uma crítica importante à dispersão dos conceitos freudianos e propôs um "retorno a Freud". Questionou acerca do que seria específico à Psicanálise, o que poderia ser uma abordagem pertinente para uma "leitura" contemporânea, uma teoria onde os conhecimentos e fazeres psicanalíticos não se reduzissem aos regimes da adaptação social e do biologismo.

Segundo Lacan, imperava na época, nas sociedades psicanalíticas ligadas à IPA, o que ele chamou de "psicologia do ego". Com efeito, na tradução inglesa dos textos freudianos, o Ich, o Eu enquanto instância, se transformou numa substância psicológica. Tal ego (termo também usado na tradução standard brasileira) é diretamente articulado com os processos especificamente inconscientes, e se tratava de possibilitar sua maior autonomia. Afirmava-se a existência de uma continuidade entre as representações conscientes e o sistema inconsciente e postulava-se que o regime de cura consistia em tornar conscientes as representações inconscientes, ampliando e preservando a "parte sã" do ego. Ou seja, nada a ver com Freud.

Assim, a cura dos sofrimentos psíquicos era pensada como uma tarefa do ego, de se adaptar ao bem-estar social e cultural, mesmo que ressalvadas suas diferenças (como no Culturalismo norte-americano). Os sujeitos se constituiriam em torno de uma "personalidade de base" comum e esta variaria de acordo com as culturas.

Desde a perspectiva clínica, Lacan tratou de mostrar que as técnicas desta "Ego Psychology" se referiam à reprodução de um modelo socialmente adaptativo e que se manifestava de modo análogo na clínica, através de uma técnica, com modalidades de interpretação previamente dadas. Havia, e ainda há, entre muitos psicanalistas a noção de que para curar-se psicanaliticamente, diminuir sua angústia a minorar seus sintomas, o analisando deveria se identificar superegoicamente com seu psicanalista e suas assertivas. O psicanalista seria um modelo optimal para as partes sadias do Eu, do mesmo modo que a hierarquia superegóica e os discursos ideológicos normativos das sociedades psicanalíticas seriam o melhor modelo para a formação dos psicanalistas.

Lacan recusou, com vigor e verdade, a técnica reprodutiva, espécie de molde pronto e decorado para esperar as falas dos analisandos. Estabelece a sua primeira elaboração da Psicanálise de acordo (especialmente) com dois saberes fortes na época: a Lingüística saussuriana e a filosofia da intersubjetividade de Hegel (que chega à França através do criativo pensador russo, Kojève, quase desconhecido entre nós). Criticando o relativismo cultural, afirmou que, ao invés da linguagem se fazer nas culturas, o inconsciente é estruturado como linguagem e as representações conscientes só ganham seu lugar verdadeiro desde sua estruturação linguageira.

Tal inconsciente como estrutura não se move de acordo com idéias ou representações advindas das experiências empíricas "pessoais" ou culturais, mas obedece a um mecanismo específico. Lacan distingue dois planos de sua constituição, do significante e do significado. Deu primazia ao significante (que para Saussure era constituído como cadeia fônica, elemento acústico), sobre o significado (que corresponde às idéias ou conceitos), mostrando que o significante só se relaciona com outros significantes. Se o sentido insiste no significante, a cadeia significante não consiste num sentido dado num certo momento, pois nunca se reduz a um significado. Ele mostra como isto se aproxima da concepção freudiana dos processos primários, onde estes não se reduzem aos significados e ao tempo linear.

Contudo, a linguagem em Freud considera também suas intensidades, os afetos em sua irrupção primordial, seus ritmos, alternâncias, métrica, dissonâncias etc. Muitos de nós aprendemos que a Linguagem insepara corpo e espírito, corporais e incorporais, de modo similar ao que se elabora na teorização sobre Poética na obra do lingüista Roman Jákobson, de quem Lacan muito se serviu. Se o inconsciente se produz desde uma combinação de significantes, isto faz com que Lacan recuse também uma técnica reprodutiva. O que se expressa nos significantes é sempre desconhecido pelo próprio sujeito; aquilo que o sujeito diz deveria seu valor apenas ao modo de se fazer termo na cadeia significante, não se relaciona aos dados históricos constituídos (método diacrônico) ou à consciência do dito. Desconfiar das evidências, esta será a regra básica, pois a lei de sua verdade não está nas manifestações explícitas e conscientes do sujeito. Recusar a Selbstverständlichkeit, o que é auto-compreensível, evidente, segundo Heidegger, pois a Verdade só se encontra na essência do Ser. Mas, ensinou Freud, definitivamente para os psicanalistas e longe de um empirismo ingênuo, a evidência não é redutível à ordem sensorial, pois é também o que se impõe pulsionalmente.

Por aí se instala uma questão técnica ou de método, que é a desautorização do discurso do analisando, cuja verdade só se conteria na e desde a teoria do seu psicanalista. O que valoriza especialmente os ditos teorizantes do psicanalista e que se desenha teoricamente na dicotomia entre fala plena e fala vazia ou no método das manobras, onde se pede ao analisando para falar "outra coisa" ou "acerca de outra coisa", na direção "adequada" da produção da cadeia significante. O que, como sabemos à exaustão, impede a emergência do regime regrediente da pulsão, quer obrigar unicamente a sua atividade. Como sabemos, as vias do Espírito Absoluto hegeliano jamais aceitam a regressão (isto ficará para outra ou nenhuma resenha).

Portanto, estamos já muito distantes da transferência como aderência superegóica ao analista. Lacan mostrará, de modo importante e elaborado, que existe um "lugar do analista" nesta cadeia inconsciente dos significantes (o chamado objeto "a"). Sua primeira noção de Desejo vem de Hegel (die Begierde), do encontro intersubjetivo e do reconhecimento entre dois que lutam; e onde somente o que enfrenta a morte se impõe desejantemente. Traz novas concepções que nos interessam, mas tal Desejo é bem distinto do Wunsch freudiano, que obedece à dinâmica e economia das pulsões, entre corporais e incorporais. A partir de 1959, sob o impacto da obra de Heidegger, Lacan estabelece uma nova noção de Desejo, distinta daquela que resultava da intersubjetividade. Postula a existência de um Outro, lugar discursivo da existência dos significantes, onde se constitui o sujeito. Sua premissa, se posso resumi-la, afirma que o indivíduo só se assujeita desde sua inscrição no conjunto de termos significantes. Assim, as pulsões - que para Freud são um processo que se faz entre somático e psíquico - serão objeto de captura pela grande ordem do Desejo, e só no Outro terão seu estatuto verdadeiro. Se o somático só é enquanto capturado pelo Outro, tem-se um saber que desconsidera o corpo vivente, que pensa o erotismo e os processos vitais apenas enquanto ordem simbólica, sem intensidades.

O sujeito se coloca na cadeia significante, mas esta cadeia tem um termo inacessível, um termo central que não se representa, mas que faz movimentar os significantes. Para tanto, Lacan segue o pensamento de Heidegger (neste caso preciso, o texto Das Ding, de 1954), mas encontra este termo, também indicado como das Ding, na própria obra freudiana (Projeto para uma psicologia científica), como uma organização que consiste (beisammenbleit) e se sustenta sem a ingerência do juízo, que é independente da memória.

Apoiado na necessidade da vida, das Ding diz respeito ao real e não às representações, não é referenciável às Sachen (as coisas) ou às Gegenstände (objetos da experiência empírica), mas à Falta Absoluta que daria abertura ao Simbólico. Disto, Lacan conclui que a Psicanálise é uma Ética, constituída em torno de das Ding e não um Saber ou Fazer a ser investido, pois no seu cerne está O Desejo universal, que não depende de poderes e das práticas desejantes múltiplas, é um vazio constitutivo dos sujeitos. Assim, e muito distintamente de uma concepção freudiana de vazio, que é sentido-investido (besetzt) e permanentemente reinvestido pelo indivíduo desde a necessidade da vida, Lacan faz um deslocamento para postular uma unidade ideal e cêntrica dos vazios, desde o lugar que os constituiria absolutamente: o Outro e a Falta, sua reguladora. Mas esta Ética se concluirá com o pensamento de que só é psicanalista aquele que seguir a teoria lacaniana. Mesmo quando Lacan dizia que ele próprio era freudiano (e era apenas uma "boutade" de um homem sábio, claro), o Freud de que se tratava era aquele que Lacan achava o único correto. As exclusões dos diferentes se fariam e ainda se fazem no modo incisivo, de profunda desconsideração com os outros. Como foi o caso, por exemplo, de Serge Leclaire, considerado um dos maiores psicanalistas clínicos, que tendo enunciado que existem letras que não se inscrevem na cadeia significante (o que se mostrou, teoricamente, inteiramente correto), foi publicamente tratado por Lacan, juntamente com Jean Laplanche, como nulidade (nullité) e desclassificado enquanto psicanalista.

Assim se abandonarão os regimes psíquicos que não se inscreverem no campo do Outro, através da castração. Bem como se desinteressa da noção de cura, alegando que ela é religiosa ou médica. A cura aparece como algo que pode ou não vir com o processo psicanalítico, mas sua aleatoriedade se estabelece teoricamente. Isto coloca os psicanalistas longe de uma ética por relação aos seus demandantes, afirma-se um desinteresse pelos ditos dos analisandos, pois só seria ético o que respeitasse a transformação do Real em Simbólico. Na verdade, esta deveria ser a única demanda correta, que os analisandos deveriam aprender a fazer, dirigidos à fala plena.

Por relação a isto, temos que pensar se o chamado apoliticismo, a dita neutralidade do movimento lacaniano, a postulação da Ética como afirmação de um Absoluto inalcançável e um conseqüente não-fazer, não foram constitutivos importantes para a expansão de seu movimento no período das ditaduras militares do Brasil e da Argentina. O que fez escola, entre os discípulos lacanianos. Quando Helena Vianna publicou seu livro na França, sobre as atividades de um psicanalista brasileiro com a tortura da ditadura militar, um psicanalista lacaniano francês, Jean Allouch, escreveu um livro defendendo o psicanalista torturador, "mostrando" que a autora "etificava" a Psicanálise. Seu texto não contém referências aos acontecimentos narrados, mas gira em torno de dasdinguizar a psicanalista brasileira. Tal primor de pensamento "apolítico" foi traduzido e publicado por uma editora lacaniana, sem nenhuma introdução ou comentário: ciência pura...

Na psicose, se dirá que algo está definitivamente ausente no indivíduo (não há sujeito, assim pensando) e que ele não mais constrói seu complexo de Édipo. Assim, o que resta é colocar os psicóticos para desfilar nos asilos, diante de um sábio analista que aponta, na direção das falas dos "desfilantes": "isto é simbólico", "isto é real"... Muito ético, sem dúvida.

Nos afetos excessivos, algo escapou do Outro: "de fato, é por não se possuir a si mesmo que um sujeito pode ser capturado por uma paixão que, se transborda os limites do Eu, ou o leva à expansão narcísica ou o ameaça de dissolução". Para tentar capturar paixões ou afetos não-inscritíveis, criou-se uma noção, prêt-à-porter para tudo que não se inscreve: o gozo. Tal realidade é mal vista pelos seus enunciadores teóricos, que dizem a um analisando que ele goza, como equivalente a uma reprimenda, por um ato perverso que deve ser eliminado. E é ainda pior elaborada por eles, pois pertence ao regime estético do sujeito, diz ou experimenta dizer o que não se inscreve em cadeias simbólicas. Pois, se há Real, quem não goza?

Mata-se o pai primitivo da horda, que gozava com todas as mulheres e também com as proibições excessivas aos seus filhos, para que ele se transforme em Nome-do-Pai, distribuidor universal da Lei. Logo, teoricamente, "conclui-se" que meninos de rua não obedecem à Lei que regula o Simbólico, porque gozam em qualquer lugar (acreditem ou não, está publicado). Nômades urbanos e deslocantes não têm lugar na teoria. Mas, e a INCAL, goza onde? Ainda não conhecemos nenhum escrito teórico sobre o gozo dos "adultos superprotegidos" do poder central.

O corpo será dividido em três regimes de domínios, mas só na última fase de seu pensamento Lacan reconhecerá o que ele chama de "corpo real". Separado do Simbólico, nada pode. "Carne morta" ou "carniça"(sic), que só deveria sua existência ao Simbólico. Mas os psicanalistas outros temos que pensar como se fabrica carne assujeitada.

Vivemos numa época onde se dá o que eu denomino de "desnaturalização crescente do corpo", pela artificialização exacerbada na/da produção dos corpos, o que leva à produção de novos registros imaginários. Como se aprende com um filósofo que sofreu um transplante de coração: "Se a técnica, saída da natureza, se volta sobre a natureza para transformá-la e até com o risco de destruí-la completamente, ela pode também produzir outra natureza, outro estado de coisas da natureza" (Jean-Luc Nancy).

No plano institucional, Lacan teve que sair de sua afirmativa inicial de que o "psicanalista só se autoriza por si mesmo", para, na medida em que o interesse (decididamente merecido) por seu saber crescia, afirmar que "mesmo se autorizando apenas por si mesmo, o psicanalista não pode deixar de fazê-lo também através dos outros". Cresce a massa de clientes, mudam os significantes e sua efetividade, como em qualquer mecanismo de saber-poder. E como poder e dinheiro sempre marcam permanentemente a teoria e a clínica psicanalíticas, a mudança se observou também no tempo da sessão de análise.

Assim se passou com o chamado "tempo lógico", que se pretendia um tempo baseado nas modulações inconscientes, do ver, entender e antecipar (dos sentidos ao Espírito Absoluto, seguindo Hegel). Que, com o aumento do número de clientes, se transformou em tempo breve, tempo cronológico cada vez mais curto das sessões, que escutava e avaliava o discurso dos analisandos juntamente com a massa de analisandos na sala de espera. Tempo este que, no regime teórico, deveria se estender eternamente, pois não aceitando a idéia de dissolução de transferência, Lacan postulou a perenidade do processo psicanalítico.

Contudo, a obra de Lacan apontou para uma exigência de rigor nas suas construções (rigor não é exatidão; e por isto me é impossível aceitar os matemas), um cuidado com os chamados do pensamento e suas organizações, que nos colocam, a todos os psicanalistas que necessitamos permanentemente de referências teóricas para nosso exercício, como tributários de suas idéias. A introdução da Lingüística como saber referencial para a Psicanálise, possibilitou o distanciamento das Psicologias e Biologias. Não é qualquer psicanalista que merece que nos diferenciemos dele e Lacan conduziu os psicanalistas para repensar e reavaliar toda a obra de Freud e as diversas implicações da Psicanálise com outros saberes contemporâneos de ponta.

Nesta época de transformação das psicopatologias, de altas velocidades e novas exigências aos corpos, em que a depressão parece caminhar maciçamente e não através de indivíduos isolados, onde a tristeza, o não-fazer e a acídia se tornaram impossíveis de compartilhar e se transformaram em doença, em que os analisandos já não vêm para um grande número de sessões semanais, as férias não se fazem mais transferencialmente, o método lacaniano possibilitou a abertura de uma clínica psicanalítica diferenciada, em locais geográficos e com tempos inteiramente variados, permitindo a sustentação da psicanálise em lugares distantes dos grandes centros urbanos. Mas, ao mesmo tempo, perdeu o antigo rigor teórico e, especialmente, o entusiasmo que reunia os psicanalistas lacanianos.

Repetir palavras de ordem e dogmas, no modo de um cantochão, se torna um pouco chato, por vezes. Não seja por isto: leiam e releiam os textos do próprio Lacan, que, além de erudito e provocativo, é um pensador muito divertido.

Chaim Samuel Katz. psicanalista (membro da Formação Freudiana) e escritor

xaim@alternex.com.br