O Significante. Uma contribuição ao pensamento psiquiátrico.

" Mas a ditadura metodológica da medida, que não é possível de ser contestada dentro de uma ciência experimental, conduz, ..., a seqüelas perigosas: da medida como método passa-se à medida como frenesi e do frenesi da medida passa-se ao frenesi da precisão (o "frenesi do racional" não é em si uma racionalidade). Por isso, sai-se, digamos, da ciência para passar para a ideologia e para os julgamentos de valores sobre os conhecimentos do exterior que podemos ter"

A. A. Moles (1)
As ciências do impreciso.

Resumo.

O autor discute a importância do conceito "significante", próprio às formulações lingüísticas, para a tarefa psiquiátrica de construção de diagnósticos. Para isso supõe que a crença no empirismo deva ser relativizada.

Unitermos: Psiquiatria, Psicopatologia, Pesquisa.

Introdução.

O campo psiquiátrico admitiu uma característica marcante: produzir trabalhos empíricos. Uma vista de olhos na literatura atual é demonstra o predomínio do sonho empirista. É uma evidência que vai ao chão pelo próprio peso. Difunde-se a crença de que o trabalho empírico é a fonte precípua, ubíqua, de saberes e conclusões válidas e confiáveis. Outra fonte qualquer de produção de saber é vista com desconfiança. A crença no empirismo e no verificacionismo, pelos psiquiatras, não considera a advertência crítica de Popper ao indutivismo. Popper introduz uma questão de ordem lógica, ao perguntar se o futuro é obrigatoriamente igual ao passado (2). Crer nesta imutabilidade é o fundamento das "crenças pragmaticamente fortes" (2) dos indutivistas, crença à qual Popper não evita declará-la irracional. A Psiquiatria está prenhe destas crenças pragmaticamente fortes, oriundas dos inúmeros trabalhos empíricos que repetem resultados monotonamente iguais ao anteriores.

Posto isto, o que será exposto adiante representa uma posição minoritária no campo psiquiátrico atual. No máximo ocupará um lugar na margem do saber, esperando que o paradigma predominante chegue ao limite e a aliança com as forças políticas e econômicas que colaboram para a manutenção da mão única de produção de saber calcada no empirismo se canse e, então, uma outra forma de relação entre as palavras e as coisas possa refletir algum destaque.

Falar-se-á do conceito de "significante". Uma concepção originada fora do campo psiquiátrico. O objetivo é situá-lo no contexto da semiologia psiquiátrica, com o intuito de trazer ao campo psiquiátrico uma contribuição. O significante lingüístico e/ou lacaniano, na medida em que define uma particular modalidade de associação entre a linguagem e os objetos por ela referidos, traz alguma conseqüência para pensar sobre o atual estilo empírico que grassa na Psiquiatria destes dias. Esta comunicação não é mais que isto: uma contribuição.

O ponto a seguir deveria ser estudado mais detidamente pelos historiadores da Psiquiatria. É o mal-entendido que vicejou em terras norte-americanas e que predominou até a década de 70: o englobamento do discurso psiquiátrico pelo discurso psicanalítico - por um mau discurso psicanalítico. Este estado de coisas, próprio à Psicanálise e à Psiquiatria nos Estados Unidos, propugnava que toda a Psiquiatria estaria subordinada aos princípios freudianos. Um engano. Dos anos 70 para cá, observa-se a reação. O discurso psiquiátrico, calcado em proposições biológicas, pretende englobar e calar o discurso psicanalítico repetindo o logro, engendrado por uma lógica de simples substituição. Não sem sentido lembrar que esta discussão secretou-se para além dos muros libertários e democráticos da ciência e caiu nos tribunais (3;4), quando se pretendeu transformar a Psicanálise em crime. Perpetuar este joguinho de poder é perpetuar o logro e não há interesse nisso.

Voltando, então, ao tema. Semiologia, no âmbito médico, é o estudo dos sinais e sintomas que constituem e diferenciam as diversas patologias. A versão psiquiátrica da semiologia inclui a psicopatologia descritiva e o exame psíquico. Situar-se-á aí o significante. Para isso, duas tarefas se impõe: uma delas é falar de algo que é prévio ao psíquico e condição do psíquico, pelo menos a partir das produções lingüísticas e psicanalíticas que guiam este texto; a outra é demonstrar que há lugar para esta concepção na Psiquiatria, apesar da trilha ideológica atual seguir direção oposta.

Dois Artigos de Literatura.

Para discutir o ponto aqui sugerido, discute-se dois artigos da literatura. O trabalho de Berrios e Chen, Recognizing psychiatric symptons: relevance to the diagnoses process, publicado no British Journal of Psychiatry (5) e o "paper" de Brown, Barlow e Liebowitz, The empirical basis of Generalized Anxiety Disorder, publicado no American Journal of Psychiatry (6).

No trabalho do jornal britânico, os autores apontam, em um tom crítico, que o modelo de diagnóstico sugerido pelo CID-10 e pelo DSM segue um esquema e um sentido unidirecional. Assim explicam-se. O esquema de diagnóstico vai do reconhecimento das unidades de análise ( os sintomas e sinais) até a síntese em um diagnóstico. Este estilo de organizar a atividade diagnóstica considera - aprioristicamente - que o reconhecimento dos sintomas é simples e transparente. Um ato anterior e, portanto, independente do momento sintético quando elabora-se o diagnóstico. São como dois estágios em série: o estágio I, onde os sintomas são reconhecidos como fatos objetivos e naturais; e o estágio II, quando a síntese diagnóstica é construída e os conceitos estabelecidos. Neste estilo lógico, são desprezíveis e secundárias as influências originadas da ordem conceitual. Não se crê que a ordem conceitual possa exercer um efeito retroativo que interfira no estágio I quando os sintomas são reconhecidos e, assim, participar da decisão diagnóstica. Acredita-se que o psiquiatra e/ou o pesquisador são capazes de aferir o fenômeno isentos de influências externas à observação. Berrios e Chen (5), desenvolvendo um salutar olhar crítico, sugerem que a ação diagnóstica, em verdade, não segue; ou, não deveria seguir este esquema. Pelo contrário, obedeceria a uma outra organização que os autores denominam "paralela". Assim, comentam que o momento do reconhecimento das unidades de análise e o momento da síntese interagem durante todo o processo de avaliação diagnóstica. Admite-se, portanto, a implícita participação dos fatores de ordem conceitual na orientação da observação e, evidentemente, na decisão do diagnóstico.. Desta forma, conferem ao ato de diagnosticar o caráter de uma construção mais do que de uma simples constatação da existência dos sintomas em estado natural. Isto torna o ato de diagnosticar uma atividade dialética com ações, interações e retroações, e não simplesmente a aplicação de um olhar sobre a natureza.

Um exemplo do uso do esquema criticado por Berrios e Chen encontra-se no trabalho publicado pelo jornal da APA. O artigo, já citado acima, denomina-se "The empirical basis of Generalized Anxiety Disorder" de Brown e colaboradores (6). Neste trabalho, os autores refletem uma preocupação própria aos formuladores das classificações psiquiátricas. Há ou não um traço que permita circunscrever o "Transtorno de Ansiedade Generalizada" como um quadro nosologicamente definido? O quê o distingue dos outros quadros ansiosos? Seguindo passo a passo o raciocínio que Berrios e Chen denunciam, Brown e colaboradores vão à cata de uma unidade de análise que delimite e diferencie de maneira inequívoca o "Transtorno de Ansiedade Generalizada" dos outros quadros do capítulo "Ansiedade" da classificação. E encontram: excessiva e/ou não realística preocupação que determina um estado de hipervigilância e expectativa ansiosa constante. Para que esta unidade de análise possa ser elevada à condição de sintoma definidor, outros passos são requisitados. Pesquisa-se o padrão de transmissão familiar, as relações com as outras patologias, a investigação da co-morbidade e a determinação da resposta ao tratamento. Um marcador biológico específico, pela via da neuroimagem por exemplo, consistiria no achado médico supremo, indicando, para além de qualquer dúvida, que a patologia exibe uma base anatomopatológica. Pronto: a uma característica clínica, atribui-se uma particularíssima neuroimagem, uma localização cerebral típica, um padrão de herança familiar e o diagnóstico é confirmado. É um quadro clínico existente no real natural, objetivo e indiscutível. Trata-se, sem dúvida, de mais uma doença. Acredita-se, nesta via, que o campo real da doença psiquiátrica é, ou pode ser, efetivamente coberto pelos conceitos construídos para defini-los de tal forma que a cada palavra, a cada definição corresponde um referente inequívoco. Esta maneira de encarar a questão é lógica e racionalmente possível, mas não é a única via. Pois, como salientam os autores britânicos, e este escrito defende, na perspectiva de Brown e colaboradores o conceito em si não é tema de discussão. Há uma espécie de crença pragmática não criticada que toma um conceito por um objeto real.

O Significante

A seguir, é feita uma sucinta discussão em torno do conceito, mais um conceito, de significante.

O significante da Lingüística e da Psicanálise pode ocupar um lugar em um esquema, em uma lógica, tal como propõem Berrios e Chen (5). No esquema lógico de Brown (6), a crença operante é que a relação entre a unidade de análise ( o sintoma) e o quadro clínico é invariável e empiricamente determinada, ou determinável, supondo que a relação entre as palavras e os referentes é também invariável e reiteradamente verificável. Não é essa situação que encontramos na Lingüística (estrutural) e na Psicanálise. Tanto a verificabilidade quanto a invariância são postas em questão.

O que se discute aqui não é, propriamente, um debate moderno. Os estóicos e os epicuristas defendiam propostas distintas no que se refere à vinculação entre as palavras, as coisas e a verdade (verdade: entendida como a função da palavra em representar o referente sem engano). Os estóicos exibiam a noção mais aproximada da que se introduz nesse debate. Cito um filósofo, Sexto (7). Este - na busca da qualificação do verdadeiro e do falso - indica que a linguagem cumpre um papel nesta qualificação. Assim, reconhece na linguagem a existência de três domínios: o significado, o signo e a coisa. Esta tripartição da linguagem é evidente, diziam os estóicos, quando a palavra é dirigida a quem não pertence à mesma comunidade lingüística do emissor. Por exemplo, é dita a palavra "kuon". O estrangeiro ouvirá o som, mas não saberá a que se refere. Não há decodificação. O estrangeiro pode reconhecer ali uma palavra e, portanto, que aquela refere-se a uma coisa mas não sabe qual é. Esta perspectiva envolve, assim, dois corpos - a palavra e a coisa - e um terceiro termo, incorpóreo e invisível, que corresponde ao significado. O significado pode ser verdadeiro ou falso e é decodificado apenas se o código lingüístico entra na cena. A propósito, "kuon" significa "cão". Como a referência esclarece, entre o objeto a ser designado e o instrumento existente para designá-lo - a linguagem - as relações não se passam sem alguma vacilação e sem uma referência ao código onde emissor e receptor estão imersos.

Modernamente, foi Ferdinand de Saussure (8) que reintroduziu esta questão ao inaugurar uma nova vertente no estudo da linguagem. Após Saussure, os estudos sobre a linguagem não mais se limitaram à comparação entre as gramáticas ou a estudos eruditos sobre a origem das palavras e a filiação entre as línguas. Saussure dirigiu o foco para o estudo da linguagem como um sistema.

Segundo Saussure, a unidade básica de onde deve partir a abordagem racional da linguagem é o signo. O signo é fracionado em "significado" e "significante". Sem aprofundar a discussão, confere-se ao significado o estatuto de conceito e ao significante a imagem acústica, a materialidade da palavra. A reunião destes dois termos na unidade "signo" é função de sua pertença a um código. Esta vinculação entre a imagem acústica e o conceito, na proposição de Saussure, não é obrigatória, nem natural e também não é motivada. Isto é, não há nada na imagem acústica "cão" que a obrigue e a motive naturalmente a significar o conceito "cão" e muito menor é a vinculação da imagem acústica "cão" ao referente cão, o animal em si mesmo. São, portanto, três domínios ao mesmo tempo inseparáveis e radicalmente distinguíveis: o significante, o significado e o referente.

Reina, então, no campo constituído pela linguagem e os referentes um estado de coisas que não é capturado por uma lógica biunívoca: a cada significante, um significado e um referente. A relação imotivada e arbitrária que rege a associação destes três campos permite, além da multiplicação de códigos lingüísticos, que cada um dos campos seja determinado por lógicas particulares que não se sobrepõem necessariamente.

No campo do significante, qual a lógica prevalente? É a lógica da diferença. Diz Saussure: "o significante não é constituído por sua substância material, mas unicamente por diferenças que separam sua imagem acústica da dos outros. O que os caracteriza não é, como se poderia crer, sua qualidade própria e positiva, mas simplesmente o fato de não confundirem-se entre si. São, antes de tudo, entidades opositivas, relativas e negativas" (8). Posto isto, como ocorre o jogo que permite a significação? Esta reposta é obtida recorrendo ao conceito de "valor". O valor de uma palavra é a significação que lhe confere a presença de todas as palavras do código como também, mais proximamente, a presença dos elementos constituintes de uma frase. A noção de valor leva a conceber a produção do sentido não como a correlação entre um significante e um significado, mas como um ato de corte vertical de duas massas amorfas, de dois campos em oposição: os conjuntos de significante e de significado possíveis em um determinado código. O sentido surge quando as duas massas são cortadas ao mesmo tempo. Assim, deduz-se que um significante só nada significa. Algo da ordem de um sentido, de uma significação, só pode brotar de um conjunto de significantes que não está isolado e nem é positivamente isolável do conjunto amplo e finito de possibilidades combinatórias. A significação, portanto, não é produzida sem a interferência dos significantes e sempre haverá algo que manca, que derrapa quando estas duas massas amorfas - de lógicas distintas - visam, em um ato intencional, um referente particular.

A ordem significante e a ordem humana.

Qual a relação entre a ordem significante e a ordem humana? Afinal de contas, é da ordem humana que se trata aqui. A resposta mais imediata é imaginar que, se há um senhor na linguagem, não é outro que não o Homem. Com certeza, o neurocientista já localizou a área cerebral da fala, já estudou o efeito deletério de certas lesões no tecido cerebral sobre a fala e já deve ter escrito que a propriedade de falar é um produto imanente da integridade de tal e qual área cerebral singular. Caso esta perspectiva baseie-se em uma filosofia essencialmente biologista, o que é desenvolvido neste artigo não é, efetivamente, de nenhuma serventia. É um bando de palavras vazias, de filosofia estéril, que se esboroa diante do Urutu biológico. Mas, a tarefa psiquiátrica não é tão simples e as repostas para a patologia mental estejam tão somente escritas entre os neurônios, giros cerebrais, proteínas, enzimas e neurotransmissores a mais ou a menos. Fala-se em uma outra direção. Uma direção não dualística e que não tem a finalidade de substituir o esquema biológico reducionista, calcado no empirismo ingênuo. Alerta-se, sim, para quem quiser considerar que a onipotência e a ditadura metodológica que cerca este procedimento não é assim tão perfeita.

No início deste texto, está escrita a frase: "falar de algo, o significante, que é prévio ao psíquico e condição do psíquico". Esta frase indica, se houver lugar para uma formulação não intrinsecamente biológica, como a ordem significante relaciona-se com a ordem humana: antecede-a. O que autoriza tal afirmação? Qualquer ente humano que vise pertencer a uma comunidade lingüística, com certeza, não vai poder adequá-la ao seu próprio desígnio. O contrário é mais provável de acontecer. A comunidade lingüística exige a sujeição do indivíduo à sua ordem. A linguagem é, talvez, a mais poderosa instância a exigir sujeição. Não há como pertencer a um grupo - em equivalência - sem esta qualidade: a de aceder à lógica da linguagem do grupo. Então, o ente humano antes de adequar a linguagem aos seus propósitos; adequar-se-á aos propósitos da linguagem. Dirige-se a um abismo pois dirige-se à discordância. A um reino tripartido que exerce o poder a partir do jogo automático dos significantes. Os acontecimentos e fenômenos psíquicos antes de obedecer à intencionalidade individual e estarem determinados pelos objetivos pessoais, estão ordenados pelas leis da linguagem e, portanto, são marcados pela arbitrariedade, pela imotivação e pela não naturalidade na produção da significação e na vinculação aos referentes. Exista ou não um centro cerebral para a linguagem passível de ser lesionado por um derrame de sangue. É possível construir, então, a seguinte ordenação de acontecimentos durante o processo de aquisição da linguagem. Um momento inaugural de absoluta sujeição, seguido de uma parcial posse, de um parcial domínio, dos atributos linguageiros que culminam na possibilidade de enunciados intencionais. Mas, de tal forma que este último patamar não anula o primeiro. Coexistem inapelavelmente. Não em função de uma incapacidade biológica do ente humano mas, sim, pela própria natureza da vinculação entre os três domínios da linguagem: o significante, o significado e o referente. Já que estes não são domínios complementares ou unívocos, mas lugares operados por lógicas distintas não superponíveis. E este instrumento, a linguagem, predestinado ao equívoco é fundamental não apenas quando da comunicação entre os seres mas também é o lugar onde os seres procuram os signos que melhor os definem e/ou definem seus estados de alma. E é com esta linguagem que se fala e se ouve os pacientes no dia a dia. E constitui um dos vértices do dilema psiquiátrico diante do diagnóstico e da classificação das doenças mentais.

Algumas conseqüências.

Os esforços nosológicos dos psiquiatras não cessam de não se escrever. De Kraepelin ao DSM-IV e ao CID-10. Talvez em 2415, o DSM-XC e o CID-96. Não há ponto de parada. Felizmente, dizem alguns. Infelizmente, dizem outros. Estes manterão a firme esperança de que a Ciência e o empirismo promoverão métodos de diagnóstico que, a cada vez, têm diminuída a falibilidade e sustentar-se-ão em marcadores biológicos tão definitivos que constituiriam o ponto final em qualquer discussão. A escritura definitiva. Curiosamente, acreditarão estar fora da linguagem. O fato dos pacientes falarem de seus sintomas e sofrimentos é evidentemente um problema. Constantemente, eles, os pacientes, não os falam "corretamente". Os primeiros, em uma posição menos cientificista, caso a linguagem e a fala continuem lugares fundamentais de referência ao humano, não esperam este final. Nem com a mais fantástica neuroimagem conjugada à infalível, confiável e validada escala para diagnóstico. Quem ouve e quem fala permanecerá imerso nestes três domínios. Em júbilo, quando a verdade parece estar ali (o doente fala o que é definido pela Psiquiatria como sua doença e evolui corretamente com a terapêutica); desorientado quando tal não ocorre e todo o edifício não parece mais que uma imagem construída obscuramente (lembro a alta freqüência de artigos na literatura sobre os "refratários" e as "co-morbidades).

Nisto que está sendo desenvolvido que não se veja uma posição anticientífica. Um lembrete de que o empirismo e o verificacionismo não resolve boa parcela dos problemas, sem dúvida é. Que a noção de significante - como desenvolvida aqui - pode colaborar de alguma forma para a construção de teorias ou de projetos metafísicos de pesquisa, no sentido que Popper (9) confere a esta expressão é uma pretensão deste texto.

Uma discussão

Voltemos ao início do texto. Foram apresentados dois "papers" recentes, de dois prestigiosos periódicos da Psiquiatria atual.

O artigo de Brown e colaboradores (6) não considera que a linguagem baila em torno de três domínios não superponíveis. O estilo com o qual abordam o campo dos referentes - as doenças mentais - pressupõem que é possível recortar significantes - no trabalho de Brown, a "preocupação não realística" - que tenham sempre o mesmo significado e sejam, assim, encontrados em estado natural no ser que fala ao psiquiatra. Estes autores, se eqüivalermos os sintomas aos significantes, a doença ao referente e a classificação ao código dos significados, crêem que estes campos se sobrepõem e constituem relações biunívocas. Um número limitado e igual de significados, significantes e referentes e, mais além, acreditam que a comunicação entre o médico e quem o procura é cristalina e desprovida de equívocos. Neste estilo, a crença é, saiba-se dela ou não, que qualquer significante solitário tem a propriedade de produzir, por imanência, o significado.

Se o texto é claro, não é difícil concluir a razão de declarar simpatia pelo "paper" de Berrios e Chen (5). O esquema paralelo de diagnóstico permite entrar em jogo um participante teórico próximo ao descrito neste escrito. Quando o paciente fala ao médico, no estilo Brown, dirige-se a alguém que é portador de um código que é proposto - ou suposto - como fixo. Este código fixo e invariável é aplicado ao que é dito pelo paciente. Isto é, deve haver um lugar onde a frase falada, a queixa, se encaixe de maneira harmônica e não discordante. O campo real da doença, do sofrimento, deve ser acolhido pelo campo do diagnóstico, pois este foi empiricamente desenhado. Na proposição de Berrios e Chen, quando é proposto que um fator da ordem do critério e da decisão diagnóstica intervém, fica implícito que não há esta harmonia e esta concordância ao avaliar e pretender catalogar o que se passa no momento do diagnóstico. Isto é, o campo real da doença e o campo dos enunciados diagnósticos possíveis não se coalescem automática e transparentemente. É necessário que quem escuta e emite um diagnóstico faça uma construção. Admite, portanto, que algo entre o discurso real e a codificação deste manque e derrape, tal como se passa na língua natural. A significação não se produz a partir de significantes especiais capazes de significarem-se a si próprios e a inteligência médica os teria isolado. É o conjunto de significantes e significados que torna possível o efeito de significação, mesmo que esta nunca configure-se definitivamente. A significação última é o impossível metafísico. Interessante é assistir aos empiristas - anti-metafísicas - debruçados sobre esta esperança.

Epílogo

Este texto ganha se for visto como um exercício. Não um exercício puro e descompromissado. Se houver conseqüências, tanto melhor. Pequenas conseqüências. Uma ligeira desconfiança a respeito de como estão sendo construídos os conceitos que norteiam a prática e a teoria na Psiquiatria atual, seria uma conseqüência agradável. Que apesar das neuroimagens e das escalas para o diagnóstico exercerem o fascínio que exercem nesses dias, não há como negar que o ponto de partida, o lugar onde todas as construções nascem, é a fala concreta de sujeitos que freqüentemente sofrem e outras vezes nem tanto. Estes sujeitos falam ao longo dos anos aos psiquiatras sendo determinados pelas condições operantes na linguagem. Condições nem sempre propícias à precisão, compromisso exclusivo das linguagens científicas que se escrevem e não necessariamente são faláveis.

Quem fala ao psiquiatra é o sujeito da ciência comum do cotidiano, um servo da linguagem, mesmo que diante do psiquiatra esteja o físico mais eminente do nosso tempo.

Durval Mazzei Nogueira Filho
Hospital do Servidor Público Estadual, HFMO.
Serviço de Psiquiatria e Psicologia Médica.
CEP: 04039-000, R. Pedro de Toledo, 1800.
São Paulo - SP, Brasil.
Email: drdurval@zipmail.com.br


Bibliografia.
1 Moles, AA - As Ciências do Impreciso. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1995.
2 Popper, KR - Conhecimento Objetivo. Belo Horizonte, Itatiaia/EDUSP, 1975.
3 Klerman, G - The psychiatric patients'rights to effective treatment. Am. J. Psychiatry, 147, 416-419, 1990
4 Stone, AA - Law, science and psychiatric malpractice: a response to Klerman's indictment of a psychoanalitic psychiatry. Am. J. Psychiatry, 147, 421-428, 1990.
5 Berrios, GE; Chen, EYH - Recognizing psychiatric symptons - Relevance to the diagnoses process. Bri. J. Psychiatry. 163, 308-314, 1993.
6 Brown, TA; Barlow, TH; Liebowitz, MR - The empirical basis of Generalized Anxiety Disorder. Am .J. Psychiatry. 151, 1272-1280, 1994.
7 Mondolfo, R - O Pensamento Antigo. Desde Aristóteles até os Neo-platônicos. Vol II. São Paulo, Editora Mestre Jou, 1965.
8 Saussure, F - Curso de Lingüística General. Buenos Aires, Ed. Losada, 1970.
9 Popper, KR; Eccles, JC - O Cérebro e o Pensamento. Campinas, Papirus Editora, 1992.

Summary.
The author discusses the importance of the "significant" concept, own to the linguistics formulations, to the psychiatric task of diagnoses construction. For that, supposes that the faith in the empiricism shoulb be relativized.

Uniterms: Psychiatry, Psychopathology, Research.