Apenas mais um artigo sobre O Mal-Estar na Civilização/Cultura: A comunicação (im-possível?) entre Eros/Thânatos e Civilização/Cultura
A sutileza da clínica entre Eros/Thânatos e Civilização/Cultura

Virginia Portas

Através da mitologia das pulsões - Eros e Thânatos - acompanho o texto freudiano, "O Mal-Estar na Civilização/Cultura", escrito em 1930, quando Freud denuncia toda a extensão do desamparo humano, retirando qualquer garantia de superá-lo, seja por meio da arte, da religião ou da ciência. Nele não há lugar para qualquer tipo de futuro de uma ilusão. Contudo, paradoxalmente, ao devolver aos homens a possibilidade de pensar sua orfandade, afirma um permanente movimento de recriar-se: a vida como aventura. Nela não há desamparo, há imprevistos.

Palavras-chave: paradoxo psíquico, mitologia das pulsões, civilização/cultura.

Based on the mythology of the drives - Eros e Thanatos - I discuss Freud's "Civilization and its dinscontets", written in 1930. In this article, Freud describes and analyzes the extent of human helplessness and abandon, rejecting any hope of overcoming this state, whether through art, religion or science. For Freud, there is no place for any kind of future of any ilusion . Paradoxically, however, as Freud restores to humans the possibility of recognizing their state of orphanhood, he asserts their unceasing efforts to re-create, to see life as an adventure. There there is no helplesnes here, but only the unexpected.

key words: Mental paradox, mythology of thr drives, civilization/culture.

Amor e Morte na visão de Freud aparecem indissociavelmente ligados, já que as duas pulsões, de vida e de morte - Eros e Thânatos - raramente trabalham uma sem a outra, salvo em algumas ocasiões em que a pulsão de morte trabalha sozinha, pura violência:

... não posso mais entender como foi que pudemos ter desprezado a ubiqüidade da agressividade e da destrutividade não eróticas e falhado em conceder-lhe o devido lugar em nossa interpretação da vida. (p.142).

Freud alerta que por conta do narcisismo, o homem rejeita ou tem dificuldade em aceitar

...quando se fala na inata inclinação humana para a 'ruindade', a agressividade, a destrutividade, e também para a crueldade" (...). "Recordo minha própria atitude defensiva quanto a idéia de uma pulsão de destruição surgiu pela primeira vez na literatura psicanalítica, e quanto tempo levou até que eu me tornasse receptivo a ela." (p.142).

Mas, a mitologia freudiana começa com essa afirmação: "A morte é companheira do amor. Juntos, eles governam o mundo. Essa é a mensagem do meu livro, 'Além do Princípio de Prazer'" (p.92), texto em que, mesmo afirmando ter dado rédeas livres à especulação por tanto tempo reprimida, ele provoca uma revolução teórica, ao introduzir a presença de uma força silenciosa como fator clínico importante, que se expressa fora de todas as ordens do discurso humano, mas que permeia todas elas clandestinamente, "desorganizando-as", mas ajudando novas composições. Com isso ele desvela um aquém que se fala para além, com uma constância e insistência também para além de qualquer sistema ou princípio, seja ele de prazer ou de realidade.

Desde o ponto de vista econômico, Freud afirma a existência de forças que circulam em liberdade entre a ordem da natureza e a ordem da cultura, transgredindo seus destinos "psicanalíticos" previsíveis dos processos de subjetivação: recalque, sublimação, retorno sobre a própria pessoa e passagem do ativo ao passivo, não se inscrevendo, portanto, nas formulações dos sistemas psíquicos de representação, pelo contrário, des-significam esses sistemas, ou melhor, se falam para além deles.

Quando ele aponta para a existência de algo no registro do corpo pulsional, que não se inscreve como sujeito, ele quase que destitui a idéia de sujeito, ficando este situado como um ser em devir a ser permanentemente recriado por conta da desarmonia constitutiva deste corpo pulsional, marcando permanentemente sua diferença por relação a outros corpos, em eterno confronto consigo, com o outro e com o mundo.

Este algo da ordem de uma insubordinação, de um aquém para além, retira o homem do drama para situá-lo no âmago da tragédia desta mitologia freudiana: antes de um sujeito poder se constituir como tal, algo indomável e imprevisível permanece atuante, não se submetendo à "incondicionalidade" previsível dos processos de subjetivação.

Ou seja, ainda que consideremos um sujeito do inconsciente constituído pelas leis da cultura/civilização, existe algo atuante no homem que não se harmoniza com elas, colocando-o e colocando-as em permanente movimento e desassossego. Esse algo não se encontra no registro do sujeito do inconsciente, mas no registro das pulsões.

A grande questão, é que essas duas formas de força pulsional - Eros e Thânatos - apesar de trabalharem juntas, "amalgamadas", na expressão de Freud, não funcionam com a mesma intensidade e nem com a mesma quantidade: variáveis por natureza. Dependendo do modo como elas se encontram, e de como esse conflito de forças se estabelece, podem provocar uma desarmonia fundamental por relação aos processos de constituição e subjetivação civilizatórios, já anunciando um diálogo da ordem do impossível, pois imprevisível, considerando a dinâmica de uma relação de forças e seus elementos disjuntivos: inconstância, imprevisibilidade e instabilidade.

Freud chega a apelar a Deus ao dizer que por conta dessa desarmonia fundamental, o poder terapêutico e profilático da psicanálise, passaria a depender de considerações quantitativas submetidas à leis precisas de distribuição de afetos, sugerindo

..."que o desfecho final da luta em que nos empenhamos depende de relações quantitativas da cota de energia que podemos mobilizar no paciente, em nosso favor, comparada à soma de energia das forças que trabalham contra nós. Aqui, mais uma vez, deus acha-se do lado dos grandes batalhões." (p.209).

A metáfora da guerra é perfeita para o seu argumento!

Ora, se aceitarmos como verdade que existe algo no psiquismo que resiste radicalmente à completa absorção do sujeito pela civilização/cultura, esse algo estranho, ficando à parte desse diálogo, se configura como o proto-representante da radicalidade e irracionalidade do ser humano. É esse algo que pode conduzir o homem tanto aos limites da loucura, do desatino e da paixão, como também, paradoxalmente, pode conduzi-lo às fronteiras da arte, da criação e da singularidade, se destacando da massa e afirmando-se na radical diferença, pois como também afirma Freud:

"Não parece que qualquer influência possa induzir o homem a transformar sua natureza na de uma térmita. Indubitavelmente, ele sempre defenderá sua reivindicação à liberdade individual contra a vontade do grupo " (p.116).

Se acreditarmos ainda, que toda a vez em que há um processo de ligação há também um processo de desligamento, daquilo que não se organiza, que não é ligável, mas que permanece insistindo, e se considerarmos a afirmação de que "todo laço libidinal, por mais respeitoso que seja, comporta uma intenção de posse, de anexação - que no limite máximo, tenta anular a alteridade" (N.Z. p. 63), entramos no terreno da positividade de Thânatos, sem que o entendamos como força destrutiva, negativa, reafirmando ainda como são difusas as fronteiras e dinâmica desse processo.

Esta estreita ligação entre Eros e Thânatos, nos leva para longe da possibilidade dos regimes de causalidade ou dialética. Ou seja, qualquer tipo de "otimismo", no sentido de poder se estabelecer uma síntese ou previsibilidade do que "acontece" nas fronteiras entre Eros e Thânatos. Contudo, com certeza fica configurado um campo de indeterminação e de complexidade, mas também de negociação. Nesse sentido, por exemplo, ainda que os produtos sociais tragam a chancela de um-bem-estar-ao-ser-humano aferido por Eros, estes sempre portam o selo da irracionalidade de Thânatos, e o remédio que cura pode ser o remédio que mata. Sempre.

Para Freud, civilização

..."descreve a soma integral de realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas de nossos antepassados animais, e que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar seus relacionamentos mútuos" (p.109).

Porém, para ele, além da civilização não cumprir com a sua finalidade, a distinção entre o homem civilizado e os "nossos antepassados animais" (ibid.) indica uma inversão qualitativa desses termos, que se revertem ao contrário do postulado, reforçando, assim, a indicação de um regime paradoxal, destituído de qualquer relação de causalidade que o sustente, e o que é selvagem pode ser o mais "civilizado", e vice-versa.

Considerando que a ligação entre Eros e Thânatos é sutil e complexa, configura-se aí o destino trágico do homem, situado nesse ponto de inserção, no entre daquilo que se constituem os processos intercambiáveis e interligados de humanização e de civilização. Estes dois processos incidem sobre o ser prematuro, constituindo-o e situando-o entre forças incontroláveis, segundo Freud.

Como vimos, apesar dessas forças serem "amalgamadas", o horizonte dos seus destinos são contraditórios por serem forças que não se sintetizam, andam juntas, afirmando-se paradoxalmente. Ou seja, no limite, tanto essa ligação entre Eros e Thânatos pode aumentar o grau de insubmetimento do indivíduo como pode assujeitá-lo e/ou transformá-lo num instrumento social.

Continua Freud:

"A pulsão de destruição, moderada e domada, e, por assim dizer, inibida em sua finalidade, deve quando dirigido para objetos, proporcionar ao eu a satisfação de suas necessidades vitais e o controle sobre a natureza".(p.144)

Contudo, Eros se constitui entre duas premências básicas: egoísta, felicidade pessoal, e

altruísta, união com outros seres humanos, já estabelecendo por aí, um conflito na sua própria economia libidinal, reguladora da distribuição da libido entre o eu e os objetos do mundo. Na origem, o amor de Eros, quando expandido do objeto exclusivo em direção à formação de laços sociais mais amplos, ou melhor dizendo, ao transformar suas pulsões em sentimentos inibidos para que a civilização possa se constituir, subverte sua qualidade a-social, primordial, que caracteriza todos os relacionamentos sexuais. Eros se imbrica nas malhas expansionista de Thânatos se encontrando com a indomabilidade das suas forças anarquistas.

Esse estar aí, a guerra de um confronto sempre presente e prestes a eclodir se insinua como pura violência: a violência de um processo que antecede a tudo. Portanto, "... a questão fatídica para a espécie humana parece-me saber, e até que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de uma vida comunal causada pela pulsão humana de agressão e autodestruição " (p.170), que oscila entre apoderamento e expansão, pólos de tensão dessas forças.

Se a guerra fica configurada como um estar aí permanente, permeando as relações humanas, fica marcado desde sempre o permanente desequilíbrio das relações sociais, e Freud se pergunta se é esta insubordinação pulsional quem responde pela situação desconfortável que coloca o homem como instrumento de destruição dos outros homens e de si próprio. Vimos que, para ele, civilização é sinônimo de controle da natureza - seja ela pulsional ou a que nos cerca (neste texto ele despreza a diferença entre civilização/cultura).

Se o processo de civilização é tão drástico e freqüentemente tão perverso, como afirma Freud, ele geraria também um tipo de violência tão requintado, inimaginável mesmo no reino dos animais mais selvagens:

... "os animais são muito mais simples. Eles não sofrem de personalidade dividida ou desintegração do eu, problemas que surgem da tentativa do homem de se adaptar a padrões de civilização que são sofisticados demais para o seu mecanismo intelectual e psíquico" (p.94)

Ou seja, um indivíduo permanentemente pressionado a freqüente inibição pulsional, fragilizado em sua potência criativa, torna-se matéria prima de fácil modelagem, que pode direcioná-lo para descartável situação de instrumento de assujeitamento e de morte: dos outros, de si mesmo e do seu ambiente.

Freud já formulara a pobreza psicológica das massas quando estas se dirigem para a abolição das diferenças para a sua formação. Ora, se os vínculos sociais são constituídos pelas identificações dos seus membros uns com os outros, em torno de um referencial balizador destas identificações, seja ele visível ou invisível, real ou fantasmático, no limite, criam civilizações de massas homogêneas, homogeneizadas e homogeneizáveis, podendo sempre sucumbir aos desatinos de um líder, que vai assegurar uma referência de ideal, para o bem ou para o mal. Portanto, mesmo grupos libidinalmente constituídos, fabricam, criam e precisam de inimigos para combater a fim de exteriorizar suas pulsões agressivas e reforçar "civilizadamente" os laços identificatórios com seus membros, caso contrário, a violência da tensão interna do grupo, volta-se contra seus próprios elementos. Portanto, mesmo que os inimigos desaparecessem e a humanidade pudesse se reconciliar

consigo mesma, a violência agressiva/sexual - Eros e Thânatos - sempre presentes, buscariam um novo lugar de expressão.

Essa mitologia freudiana indica que Eros porta em sua essência egoísta, perigosos elementos de posse e absorção do outro. O amor possessivo é tão insidioso quanto a violência, já que em sua potência máxima leva os seres à fusão amorosa, indiferenciação, desprezo pela alteridade: perda de referências sociais, morte social. Por outro lado, ao expandir seus laços libidinais, apoiados na insurbosdinação de Thânatos, no limite também, favorece a ligação de massas indutoras de identificações narcísicas e do fascínio amoroso.

Se acreditarmos - e é difícil não fazê-lo seguindo Freud neste texto - que o próprio homem é criado - nos dois sentidos deste termo - e cria uma civilização que, no limite, pode destruí-lo, vamos situá-lo como um ser intelectual e psiquicamente desamparado, permanentemente infantil e indefeso contra forças poderosas que, independem dele mas partem dele, já que há um processo que o antecede ao qual ele tenta se adequar.

Pelo viés desta mitologia freudiana, uma civilização tecnocrata, por exemplo, unida pela ação agregadora de Eros, impulsionada e liderando tecnologias cada vez mais sofisticadas, emblema das forças insubordinadas de Thânatos, caminha aceleradamente por um atalho tortuoso, porém fatal, sem qualquer possibilidade de conciliação. Esse é o discurso.

A questão que Freud nos oferece: como conciliar Eros e Thânatos e os processos de civilização/cultura, se ambas as forças em seus limites máximos, representam elementos contra o processo civilizatório? Ora, se o processo de civilização pressupõe e impõe

formações homogêneas em detrimento daquilo que é heterogêneo, reforçando a massificação que pressupõe o fascínio amoroso e a identificação narcísica, que leva à indiferenciação e, consequentemente, à massificação, o que está em questão é a progressiva anulação de espaços que acolham o imprevisto, a paixão, o perturbador, a singularidade, o estranho e a diferença, que possam desligar um círculo vicioso macabro.

Por outro lado, impossível não pensar nos interstícios dessa relação paradoxal através das sutilezas que este texto evoca, e nos perguntarmos, e já respondendo, porque não somos sempre tão infelizes e desamparados na nossa aventura da vida, apesar desse insofismável argumento freudiano que acompanhamos até aqui?

Parece que é na dinâmica dos imprevistos desse processo que se configura tal espaço de negociação. Entender essa mitologia freudiana pelas contradições que ela afirma, nos leva ao que se engendra nesse entre virtual de dois sentidos opostos que se afirmam e cuja potência "não consiste absolutamente em seguir uma ou outra direção, mas em mostrar que o sentido toma sempre os dois sentidos ao mesmo tempo, as duas direções ao mesmo tempo...". (G.D. p .77). Ou seja, um sentido se cria, não se descobre.

Trazendo esse argumento para a clínica, escutar esse engendramento é fundamental para entendermos os caminhos sinuosos do psiquismo que esse mito freudiano deixa ecoando no entre dessa fronteira paradoxal entre Eros e Thanatos, para além de uma relação de causalidade.

Essa mitologia freudiana nos indica um outro tipo de racionalidade, uma des-razão que

afirma a aventura e dá circularidade e positividade a um permanente estar-aí que permeia e se engendra com o que está por vir, desvelado nos movimentos errantes e nos fragmentos desprendidos que se produziram e se produzem no encontro dessas forças, nessa dinâmica para além de uma relação de causalidade, síntese ou previsibilidade.

Entender essa mitologia freudiana através das contradições que ela afirma, nos leva ao que se engendra nesse entre virtual de tensão e complexidade: detalhes, fragmentos que se ligam e desligam nas errâncias dos sinuosos caminhos desse encontro entre Eros e Thanatos, mito freudiano que ressoa no entre-nós dessa fronteira paradoxal, para além de uma relação de causalidade, cujos murmúrios só podem ser escutados através de um estado de disposição para, que, na clínica, pode se estabelecer na dinâmica do jogo transferencial.

Na denúncia e nos interstícios que permeiam este extraordinário texto, e através desta extraordinária mitologia freudiana das pulsões, podemos ir além da metáfora da guerra como conclusão "do desfecho final da luta em que nos empenhamos", dependentes "de relações quantitativas da cota de energia que podemos mobilizar (...) comparada à soma de energia das forças que trabalham contra nós." (p.209). Não existe Deus para apelar nem grandes batalhões a enfrentar: a metáfora não é da guerra, é a do encontro imprevisível de forças.

Autora: Virginia Portas, psicanalista, membro titular e coordenadora de ensino da Formação Freudiana.
Endereço: Rua Visconde de Pirajá no. 111 sala 410
Ipanema
Rio de Janeiro-Cep 22410 001
Telefones: (0XX21) 2287-9433; (0XX21) 2267-0588; Telefax (0XX21) 2522-2533
E-mail: virginiaportas@terra.com.br
Referências bibliográficas
Altman, Fábio (org.). A arte da entrevista. Uma antologia de 1823 aos nossos dias. Rio de Janeiro: Scritta, 1995.
Deleuze, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974.
Enriquez, Enrique. Da horda ao estado. Psicanálise do vínculo social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
Freud, S. (1915). As pulsões e suas vicissitudes. E.S.B. Rio de Janeiro: Imago, 1974. vol. XIV.
______. (1920). Além do princípio de prazer. Op. cit. v. XVIII.
______. (1921). Psicologia de grupo e análise do ego. Op. cit. v. XVIII
______. (1930). O mal-estar na civilização. Op. cit. v. XXI
______. (1940). Esboço de psicanálise. Op. cit. v. XXIII.
Zaltzman, Nathalie. A pulsão anarquista. São Paulo: Escuta, 1993.