Resposta em forma de carta
À proposição de criar uma ordem de psicanalistas

Meu caro Leclaire,

Permito-me felicitá-lo por sua preocupação: evitar que uma legislação européia imponha aos psicanalistas seu modo de qualificação, de organização e finalmente sua prática. A constituição ao cuidado dela de uma ordem encarregada destas responsabilidades poderia ser a melhor demonstração da harmonização autoritária das legislações que se anunciariam.

O texto entretanto apela ressalvas que, a título de contribuição, desejo trazer.

A primeira concerne ao que se nomeia, "a extraterritorialidade" da qual se beneficiariam até hoje os psicanalistas e isto sem serem advertidos de seu próximo fim. Na realidade, é evidente que os psicanalistas são cidadãos como os outros e com os quais compartilham responsabilidades. Assim, por exemplo, não escapam à confrontação com a justiça diante da qual queixas são depositadas contra eles e podem prejudicá-los, os juízes, cidadãos não menos informados e cultos, deram regularmente prova em relação a eles de tato na medida da especificidade da prática colocada em causa na ocasião. Pode-se dizer assim que os psicanalistas fazem parte integrante da Cidade e que esta, liberal, os trata com uma justa discrição. Não conheço em todo caso psicanalista mártir.

Em revanche, é claro que sua prática se deve à extraterritorialidade; visto que a tarefa da Cidade é de fixar o contrato que regula as trocas entre cidadãos e que lhes garante uma justa retribuição, enquanto que o tratamento é o lugar para o sujeito colocar em causa todos os seus contratos, inclusive em relação ao analista. Tal questionamento é a condição de um acesso pelo sujeito ao contrato mais próprio com o seu desejo.

É por isto que uma legislação da prática - sua formalização contratual - não deixa de entravar e tornar o analista estúpido ou delinqüente quando não favorece a perversão. Isto vale também para a legislação escrita pelos próprios analistas e que não poderia ser melhor que qualquer outra. Ora, a dificuldade provocada por seu texto é que - Ordem de Psicanalistas obriga - se é levado a dizer o que seria a verdade sobre a psicanálise e sobre os psicanalistas: o trabalho do inconsciente não é então mais possível senão à margem das recomendações, boas ou não, que são prescritas e a análise da transferência, da contra-transferência, as supervisões tornam-se simples álibis, uma conformidade que não engaja. Você sabe bem que não digo aqui nada de original e que contrarie nossa experiência.

Isto quer dizer que não está em poder de ninguém dizer o que é a psicanálise: já que de chofre seria outra. Lacan era mais modesto mas preciso quando dizia que uma psicanálise é o que se espera de um psicanalista.

É preciso dizer que apresentando nossa prática como "uma disciplina do conflito e da contradição" você dá uma definição tão extensa que deixa todo lugar necessário à invenção, bastante evocada por você. Mas, se uma definição deve ser a do real próprio a um campo, a sua é infelizmente aproximativa demais - a polemologia não pode aqui ser suficiente - visto que cala o objeto próprio ao nosso campo e que é a causa do conflito: o objeto a. Outros além de mim foram sensíveis a depuração que você opera e que corre o risco de tornar obsceno no que molhamos a mão o dia todo.

Pode-se também lastimar a insistência concedida à "escuta do inaudível" - ou na "interpretação como operação de desligamento de elementos imaginários, pulsionais e de linguagem". "O inaudível" não poderia de fato se confundir com o inconsciente que é ele ouvido sem cessar, sem que o falante e seus interlocutores o saibam. "O inaudível" hoje, seria precisamente o que se daria a ouvir como não vindo do inconsciente. Quanto à interpretação, se se pode defini-la como acima, é difícil dizer que ela é "o ato essencial da prática" se é exato que a responsabilidade do analista não pára com ela e sua pertinência; pode-se também dizer que "o ato essencial" começa onde a interpretação, justa no entanto, se revela sem efeito.

Mas não hesitemos já que é evidente que você se obriga a inventar um denominador comum para reunir analistas de formação e inspiração muito diferentes. No entanto, não sem riscos, como se vê, e pode-se perguntar se a famosa interface da qual a Ordem se encarregaria de realizar para permitir uma comunicação entre a linguagem dos psicanalistas e a do meio social não volte já contra você, obrigando-o a renunciar a um discurso que se pode pensar que lhe é caro.

Ouço daqui uma eventual resposta: trata-se de tática e não de estratégia. O azar quer no entanto que a renúncia aos princípios, crua maligna, se volte regularmente contra o esperto e tenha conseqüências estratégicas: em todo o caso é o que a psicanálise nos ensina.

O paradoxo é que os princípios assim dissimulados sejam precisamente os que suscitam em todo lugar um interesse renovado. Não é colocando na frente o nome de Lacan - para denunciá-lo - que o responsável de uma Sociedade tradicional - que perece precisamente por causa de sua legislação - consegue encher uma sala que suas próprias teses teriam desencorajado?

Nesta Europa que vai talvez se fazer, há um domínio cultural onde o pensamento francês é prevalente: a psicanálise. É surpreendente e emocionante ao mesmo tempo encontrar apertados num colóquio de psicanalistas alemães que entendem o francês por causa de Lacan e se dedicam, sozinhos, ao estudo de seus textos.

Não seria a indicação do que se espera de nós que seja proposto aos governantes uma legislação, se era inevitável, que se apóie nos princípios: formação e reconhecimento do psicanalista pela associação do qual ele deriva, independência de sua prática no quadro das elaborações teóricas que a fundam, reconhecimento dos analistas não-médicos nem psicólogos, responsabilidade civil aliás.

Não é pelo respeito destes princípios que em 1953, D. Lagache, J. Favez-Boutonnier, F. Dolto, J. Lacan se demitiram da Sociedade Psicanalítica de Paris, seguidos pelos melhores alunos entre os quais um tal de Serge Leclaire?

Mas, um elemento de seu texto choca: seu a-historicismo radical. Nenhuma referência de fato aos trabalhos antigos sobre estas questões (como se a psicanálise saísse bem armada do puro conflito) nem à nossa realidade: o olhar é fixado sobre o horizonte de 1993.

Eis os prejuízos da fecundação in vitro e de concepções sem pai. Mas ironizo. O que, em revanche, não é brincadeira é a crença que a Europa se fará pela renúncia de cada um a sua história e o triunfo maníaco dos filhos que descobrem que o Outro é acéfalo; a excitação deles faz parte da pequena história e é apenas tentativa, como você diria talvez, de colmatar o conflito. Esta crença, em todo caso, é falsa, creio poder avançá-la. A história de cada um não será nunca tão viva quanto no momento em que será chamada a desaparecer: as querelas de escola assim como de nações estão diante de nós.

Não duvido que procure prevenir, após apelo ao poder lançado por F. Roustang no Express, e do show anti-lacaniano de Green, as pressões que se exercem sobre o governo a fim de que ponha ordem no meio apresentado com complacência como anárquico, até mesmo irresponsável.

Quem acreditará no entanto que o meio dos matemáticos, físicos, biólogos, lingüistas, antropólogos, etc. todos especialistas das ciências exatas entretanto, é menos fragmentado que o nosso?

Quando tem fundamento, a disputa faz parte da vida intelectual, de seus progressos, e será que caberia ao governo dizer a opinião verdadeira?

Mas talvez tal ou tal grupo procure a oportunidade de fazer triunfar suas próprias teses em nome, como é de costume, do interesse geral.

Creio que seu procedimento é fiel ao que você inaugurou em 1962, creio, em Edimbourg com a tentativa de estabelecer diálogo e respeito entre analistas de formação diferente: sem sucesso, então.

Como você talvez saiba, tento hoje com nossos meios favorecer a troca de idéias, como por exemplo no Colóquio franco-brasileiro do verão passado do qual você era entre outros convidado, impedido ao nosso pesar de vir.

Seria desejável, seguramente, restabelecer um clima de tolerância e de compreensão entre os que partilham a mesma prática afirmando cada um habitado pela verdadeira inspiração.

Mas não estou seguro que a tabula rasa seja o melhor meio de fazer comensais; uma instância ordinal corre bem o risco de nos preparar para os cardinais.

Você me sabe seu devoto,

Ch. Melman
9 de janeiro de 1990
Tradução de Mirian Giannella
Outubro de 2001