MOVIMENTOS DA PULSÃO DE MORTE EM "DANÇANDO NO ESCURO" DE LARS VON TRIER

Sérgio Telles

Parece-me surpreendente o sucesso que o filme "Dançando no Escuro" tem feito com a crítica e o público. É um filme extremamente desagradável, que beira o insuportável no desfiar do calvário de Selma, uma miserável imigrante checa nos Estados Unidos, personagem interpretado à perfeição pela cantora islandesa Bjorg.

Selma vive humildemente como operária. Está perdendo a visão e seu filho tem a mesma doença genética. Trabalha desesperadamente para poder pagar a operação que garantirá a visão ao filho. Não mede esforços frente a este objetivo, levando-o a extremos inimagináveis. Tem como único lenimento sua paixão pelos musicais norte-americanos, lugar onde, diz ela, "tudo sempre acaba bem". Cada vez que a realidade a confronta com graves impasses e limitações, escapa imaginariamente, transformando-os em situações de musical, onde tudo se equaciona de acordo com seu desejo.

Do ponto de vista cinematográfico, Lars von Trier subverte o gênero musical, pois ao contrário do que Selma diz a respeito deles, aqui tudo "acaba mal"; a música de Bjorg não é fácil, agradável, "cantabile"; as coreografias são ríspidas e duras. O efeito geral é o oposto do encantamento distante da realidade produzido pelos grandes clássicos do musical. Aqui é enfatizada a aspereza dos destinos humanos, com suas misérias e suas sofridas vitórias.

Embora tenha sido alardeada a novidade do uso de câmaras digitais, que permitem, devido a seu baixo custo, filmagens simultâneas (na cena do trem, mais de 100 delas teriam sido usadas), possibilitando novos regimes de filmagem e montagem final, penso que nada disso transparece visualmente para o espectador médio.

Como um filme tão ríspido pode atrair a platéia e a crítica ?

Poder-se-ia evocar uma interpretação sociológica. O fato de Selma ser uma operária checa que vai para os Estados Unidos em busca de um mundo melhor e ali encontra seu martírio, poderia ser entendido como a desilusão do operariado, representando toda a humanidade, frente ao fracasso das promessas de um mundo melhor feitas pela revolução socialista e da injustiça social produzida pelo capitalismo que, mesmo no centro do império norte-americano, produz seus miseráveis.

Selma está ficando cega, metaforicamente não tem perspectivas, não vê saídas para seu impasse. É verdade que essa desilusão não leva inteiramente ao desespero, alude-se a uma esperança para as futuras gerações: mesmo às custas de um sacrifício supremo, a elas deve ser assegurado o direito de ver.

A interpretação psicanalítica acrescenta importantes sub-tons a essa configuração. Selma suporta todas provações com paciência e bonomia, jamais se permitindo qualquer revolta, qualquer sentimento agressivo. Seu comportamento pareceria, para um observador externo, apático e inteiramente passivo, não opondo qualquer resistência aos reveses que a acometem. Mas sabemos de atrás de sua aparente fraqueza está uma férrea resolução - a de proporcionar a operação do filho.

Sua atitude com o filho, ao contrário da relação que tem com todos, é de uma dureza incomum. Mostra-se intransigente, exigente, impaciente com suas pequenas faltas escolares. Quando o drama está totalmente instalado, recusa-se terminantemente a atender seu pedido de vê-la.

Essa atitude de máxima severidade com o filho baseia-se na presunção de que o melhor para ele é ter garantida a própria visão. Garantir-lhe isso é a máxima expressão de amor materno. Tudo deve estar submetido a esse princípio. Não importa que, para tanto, possa assumir atitudes de aparente rejeição e indiferença. "Mais vale que ele tenha a própria visão que ter uma mãe viva e cega", diz corajosa e corretamente Selma.

Em linhas gerais, embora severa, essa é uma grande verdade, do ponto de vista analítico. O maior amor que os pais podem ter pelos filhos e deixá-los crescer e partir, é ajudá-los a ter autonomia própria, a prescindir deles mesmos, pais. Isso, que parece uma obviedade, está longe de sê-lo. Muitos pais narcisisticamente desejam manter os filhos ligados, não tolerando qualquer movimento de independência.

Por outro lado, o desejo de Selma de tornar autônomo o filho, independente dela, ou seja dos pais, a forma inflexível com a qual o exerce, poderia revelar outros aspectos de seu psiquismo. Sabemos que Selma não teve pai, nada é dito sobre sua mãe. Cria imaginariamente um pai que justifique suas idiossincrasias, como o amor pelos musicais. A falta deste pai idelizado, que a protegeria e amaria, fica patente nas cenas finais. O filho de Selma também não tem pai.

Sua dureza para com o filho, seu desejo de fazê-lo autônomo, tendo sua própria visão, sem depender de mãe ou pai, furtando-se ela mesmo a ter uma atitude mais compassiva e carinhosa com o filho, pareceria mostrar que muito sofreu com o abandono e quer poupar tal sofrimento ao filho, forjando-o independente. Mas ao fazê-lo, termina por infligir a ele a carência que sofreu e da qual queria protegê-lo.

Mas nada disso justifica a postura que Selma assume para executar seu plano de salvar o filho, garantindo-lhe a operação. Metida em inúmeras complicações, Selma nunca se defende, tem uma passividade bovina, mantem em segredo o motivo de suas ações, não pede ajuda aos amigos e a recusa quando estes querem protegê-la . A justificativa dada no filme - o filho não pode saber que tem uma doença na vista, pois isso o angustiaria, o que agravaria o problema - mostra-se inconsistente, pois as consequências do obstinado silêncio de Selma e sua recusa em ser ajudada desencaderiam muito mais angústias no filho do que o conhecimento de sua doença.

A atitude de Selma - seu abandono, seu não defender-se, sua indiferença para consigo mesma - parece apontar para um inconsciente desejo de morte, uma raiz profundamente melancólica. Ela confessa ter um intenso sentimento de culpa frente ao filho, sente uma necessidade de punição por considerar-se responsável pela doença dele. Censura-se pelo egoismo de ter desejado a gravidez, mesmo sabendo que transmitiria ao filho sua doença.

Considera-se, pois, uma má mãe e se pune por isso.

É possível que ao sentir-se desta forma, esteja identificada com a imagem odiada e destruída do pai que a abandonou, ou de uma mãe que sequer é mencionada, o que possibilita supormos um mau relacionamento entre as duas. Ao invés de dizer "tive um mau pai (e uma má mãe) e o(s) odeio por isso", por identificação diz, "sou uma má mãe, me odeio por isso e por isso me castigo". Ou seja, identificada com este pai odiado (e essa mãe), ao se punir, está punindo o pai (e a mãe).

Ao se deixar morrer, mata o pai internalizado (e a mãe) com os quais está identificada. Também ao não se defender, porta-se como uma criancinha indefesa e abandonada, atitude com a qual acusa os pais de abandono.

Em outras palavras, a atitude de Selma parece ilustrar bem o masoquismo e a melancolia enquanto expressões da pulsão de morte voltada sobre o próprio sujeito.

Como Freud mostrou, há três tipos de masoquismo, o moral, o femenino e o erógeno. Este último é o mais conhecido, envolve práticas sexuais onde a dor e a passividade de um dos parceiros envolvem o comportamento complementar sádico por parte do outro. O masoquismo feminino, para Freud, seria um dos avatares da sexualidade feminina e o masoquismo moral é aquele onde impossibilidade de defletir para o exterior a pulsão de morte, sob a forma de agressão, faz com que ela rertorne ao próprio sujeito, alimentando o sadismo do próprio super-ego. Na melancolia, diz Freud, vemos uma cultura pura da pulsão de morte, na medida em que a agressão está voltada para um objeto que se internaliza ( o que faz com que a agressão retorne para o interior do sujeito) e ao mesmo tempo, a culpa pela agressão a este objeto internalizado reforça o rigor sádico do superego. O resultado é fatal, levando frequentemente ao suicídio.

Selma é incapaz de voltar a agressão para o exterior que a agride. Volta a agressividade contra si mesma, internalizando-a como um super-ego sádico que a impede de cuidar de si mesmo e preservar a própria vida, deixando-se matar.

Assim, é curioso, pois apesar de todo o aparato repressor do Estado se levantar contra Selma com a pena máxima, no fundo Selma se suicida.

Se o masoquismo de Selma é predominantemente moral, tem também alguns traços eróticos. Sua relação com o proprietário que lhe aluga o lugar onde mora deixa transparecer algum erotismo. Selma submete-se inteiramente ao desejo deste, não esboça nenhuma reação frente a suas investidas, organizando um bom modelo de relacionamento sádico-masoquista.

Assim, uma explicação para a aceitação de "Dançando na Chuva" residiria na capacidade que tem de tocar profundos aspectos masoquistas da platéia, que tem ali uma oportunidade de ver de forma sublimada numa obra de arte, os movimentos sombrios da pulsão de morte.

Sérgio Telles é psicanalista do Depto. de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e escritor, autor de MERGULHADOR DE ACAPULCO (Imago - Rio - 1992)