A psicanálise e a estética do dizer inconsciente

Maria Inês França

RESUMO

O trabalho situa a psicanálise referida à dimensão social de um campo de significações como uma estética do dizer inconsciente. Uma definição que valoriza a teoria freudiana das pulsões e a experiência analítica como espaço criativo através do primado da estética, tornando "o belo efeito exemplar da estética do desejo", efeito causador do desejo. A função do belo perturba a estrutura desejante diante do enigmático e inacessível "Bem" e, desta forma, remete a uma experiência de indeterminação que representa, no campo do Outro, o traumático que constitui o sujeito. Aceitando um princípio de negatividade em relação a um defeito estrutural do discurso, o texto revela a estética como uma experiência de fragmentação acompanhada de uma estranheza inquietante, espaço que aprisiona e que também liberta para uma outra dimensão: a do acontecer psíquico na qual a criatividade se realiza como ato e símbolo.

RESUMÉ

Le travail place la psychanalyse en rapport à la dimension sociale d'un champ de significations comme une esthétique de le dire inconscient. Une définition qui met en valeur la théorie freudienne des pulsions et l'experience analytique comme espace criatif à travers du primat de l'esthétique, en faisant "le beau effet exemplaire de l'esthétique du désir"2, effet qui cause le désir. La fonction du beau trouble la structure désirante en face de l'énigmatique et de inaccessible "Bien", et, de cette façon, remet a une expérience d'indétermination qui represente, dans le champ de l'Autre, le traumatique qui constitue le sujet. En acceptant un principe de négativité en rapport à un défaut structurel du discours, le texte présente l'esthétique comme une "expérience de fragmentation" acompagnée d'une inquiétante étrangeté, espace qu'aprisionne et que liberte aussi pour une autre dimension: a de "l'occurrence psychique", dans laquelle la criativité se réalise comme acte et symbol.

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É a expressão literária e a poesia que mostram, de forma exemplar, a face transgressora e rebelde do belo, de onde jorra o seu fascínio. O belo, como o poema, não visa nem descreve objeto algum; sua função é deixar o desejo desvelado e a palavra nua no mesmo instante em que isso causa a infinita possibilidade de suas vestes.

Este valor transgressor do belo se torna um paradoxo para Freud, quando em sua referência a estética no texto sobre o "Mal-Estar na Civilização", diz que o belo é inútil, porém indispensável à cultura. A inutilidade do belo indica que ele suporta mal, no nosso mundo de civilização "eficiente", valores tais como os da clareza, da utilidade, ou as mensagens de cunho pragmático, e, por outro lado, aponta o indispensável da dimensão poética para a cultura. É a criação poética que nos permite a ênfase na forma expressiva de dizer referida à lógica do inconsciente.

O tema da estética aparece no discurso freudiano suscitado pelo impasse do familiar igual ao não familiar, ao qual ele dedica um texto, "Das Unheimliche", em 1919. No entanto, a dimensão estética freudiana está praticamente presente em todos os seus trabalhos, seja colocando os dizeres mais diversos de poetas, sendo o preferido Goethe, seja explicitamente dedicando artigos a mestres da arte, como Leonardo da Vinci e Michelângelo, ou, ainda, da literatura, como Shakespeare e Dostoievsky. Ao lançar mão dos poetas é como se Freud pressentisse que só a poesia suportaria o alcance transgressivo de suas idéias, pois só a palavra poética poderia carregar os desdobramentos possíveis contidos na riqueza não-dita dos seus ditos, ou seja, só a dimensão estética da palavra freudiana manteria seus leitores "en souffrance". Não é à toa que Freud recebe o Prêmio Goethe de literatura, pois seu estilo literário é uma "assinatura" original que se torna "causa de desejo" para outros sujeitos e de onde jorra o evento psicanalítico. Entendemos que a palavra freudiana porta o "belo causa de desejo" como um brilho que revela um duplo aspecto: ao pretender o fechamento da incompletude do ser ele opera uma abertura para a confrontação com a destruição do ser e, portanto, uma referência ao não-sentido. É a linguagem poética que nos mostra esta abertura e esta duplicidade, porque nela a palavra desvela e oculta ao mesmo tempo. Quando a palavra tem este potencial de movimento, revela-se a estética do desejo.

Por esta via, a estética em psicanálise se aproxima da arte, pois desde seu fundamento, o saber psicanalítico, provocado pela produção histérica, se colocou nos limites do não-sentido. Assim, não é permitida, nem ao psicanalista, nem ao artista, qualquer forma de burocratização, pois ela cortaria a possibilidade de presentificação de um radical desconhecimento e, portanto, aboliria a referência ao ato criativo. Desse modo, o efeito produzido na arte e na práxis psicanalítica é similar no sentido de não garantir a produção de um novo efeito. Ou seja, a obra criada é um efeito transitório, instantâneo, na medida em que o efeito é causado pelos tropeços no real, em uma origem perfeitamente desconhecida. Isto remete à dimensão estética da verdade, a partir da indicação do vazio, do real irredutível e que presentifica o "belo causa de desejo", enquanto brilho que revela, de acordo com Badiou, "que a verdade trabalha na retroação de um quase-nada e na antecipação de um quase-tudo", o que significa um ponto de tropeço absoluto, ponto inomeável pelo fato de não poder ser encontrado na ordem da linguagem. Para Badiou, só

o amor pelo inomeável é que permite sem desastre o amor pela verdade em seu real. Neste sentido, a dimensão estética da verdade é brilho, é clarão e não clareza, implicando em um exercício rebelde e angustiante para a estrutura conflituada do sujeito.

A psicanálise mostra seu pensamento transgressivo ao apresentar o sujeito do desejo, cuja verdade é sempre parcial, e ao operar trazendo para o centro do seu discurso o conceito de inconsciente e de pulsão e, ainda, ao apresentar sua fecunda forma argumentativa em torno de um sujeito desejante na sua relação com o real e com o objeto causa de desejo.

A ruptura promovida pela psicanálise enquanto saber nos permite, assim, perguntar em que ela e a estética mantêm uma relação de afinidade.

Esta afinidade se coloca diante da interrogação do tema do sujeito do desejo e da questão central da linguagem, remetendo a uma "experiência estética" como uma experiência de fragmentação, e não uma experiência totalizante do belo harmônico. A psicanálise, em sua perspectiva de uma estética do desejo e do dizer inconsciente, marca a constituição do sujeito fundada nas pulsões e nos seus destinos, registrada pelo testemunho da angústia, pois se trata de uma constituição fundamentada na perda e na separação, cujos jogos de dor, que daí decorrem, colocam o sujeito diante de um desamparo que é estrutural.

Sobre este desamparo Vital Brazil apresenta o enfoque do sujeito na modernidade, enquanto aquele que se reconhece como "função obediente" de uma estrutura ordenadora mais ampla e complexa, que passa a "fazer por ele o seu pensar e agir". O que se coloca é um sujeito fraturado e em desordem diante de um mundo auto-determinado e indiferente aos projetos dos próprios sujeitos. Neste sentido, o "modernismo" se apresenta como uma competição entre o "novo" cosmopolita e sem raiz e o "velho" das tradições provincianas e

antigas, algo como uma confusão de uma "super-estrutura" racional e globalizante com o mais "primitivo" dos sujeitos.

Sobre o sujeito na modernidade e sobre as afinidades entre psicanálise e estética, Eagleton comenta a visão de Benjamin e sua concepção de linguagem: "na visão de Benjamin, a humanidade decaiu do estado de felicidade para o instrumentalismo degradado da linguagem; e a linguagem, esvaziada de seus recursos expressivos e miméticos, reduziu-se à situação reificada do signo saussuriano. O significante alegórico é a terrível testemunha de nossa luta de após a queda, na qual não possuímos mais espontaneamente o objeto, mas somos forçados a fazer o caminho complicado e tateante de um signo a outro, buscando a significação entre os fragmentos de uma totalidade perdida".

Benjamin, na sua abordagem, toma a via oposta da reflexão moderna da teoria da linguagem e se dirige às concepções míticas, no sentido de refletir a partir do mito para demarcar a sua compreensão filosófica. É uma posição que se opõe a todo o tratamento dado à linguagem na época de Benjamin. Para ele é um paradoxo pedir que a linguagem e a escrita incitem à ação, pois a linguagem já é uma ação. Ela não serve aos objetivos nobres, ela é um ato, "um debruçar-se da linguagem sobre si própria".

A filosofia, para Benjamin, teria de abrigar idéias díspares - sim e não - abrigar a convivência das diferenças na idéia. Em Freud, a espirituosidade do chiste se afina com o pensamento de Benjamin no sentido de um conhecimento imediato, pois a palavra adquire seu valor pleno. Assim, como o chiste, a palavra poética reivindica encontros-surpresa, inesperados, achados. Benjamin concebe o ser como expressão constante e, portanto, tudo é linguagem. Desse modo, a expressão não se manifesta pela linguagem, ela está na linguagem. Isto permite dar ênfase à multiplicidade das diferenças e dos estranhamentos

dos vários níveis discursivos. Trata-se de evidenciar o aspecto fragmentário, a estranheza própria da língua, ou, ainda, trata-se de mostrar a língua se revelando como estranheza fundamental.

A concepção de linguagem em Benjamin se articula à nossa concepção sobre a estética do desejo, justo pelo viés do estranhamento que vem da experiência inexorável entre o dito e o que se quer dizer. Este espaço construtor de novas constelações de idéias poria em cena o caráter de fracasso da unidade e enfatizaria o fragmentário, uma estética cuja perspectiva para a psicanálise se vincula à idéia de subverter a pretensão de reunir o belo à harmonia, à totalidade e à aparência. A estética do desejo, que lemos implícita no pensamento freudiano, é uma negatividade, pois a dimensão da felicidade e da plenitude está fora da criação. Neste sentido, não há pensamento idealista que se sustente; o estranho habita em nós, não há como suprimi-lo.

A linguagem concebida, assim, de forma mais ampla, assume o lugar de condição das representações. A partir da segunda tópica freudiana, o transbordamento pulsional é uma forma de ultrapassagem do registro da representabilidade e é irredutível ao campo da simbolização. A idéia de estrutura psíquica passa, então, a conceber, além da ordem da inscrição, impressões sem sentido que não se encontram no espaço psíquico da circulação dos significados. São impressões que não passaram por uma codificação da linguagem. É dessa forma que o Isso, polo pulsional e lugar psíquico, ultrapassa o registro ordenado do inconsciente, permitindo a inclusão na realidade psíquica das impressões angustiantes dos "vazios de inscrição", ou seja, daquilo que se encontra marcado como trauma e que não foi inscrito e, ainda, que tem expressividade no discurso: impressão-expressão do dizer inconsciente.

Em 1900, Freud apresenta o sistema de expressão que o sonho constitui. A isso ele nomeou de "consideração à figurabilidade" (Rücksicht auf Darstellarbeit). São pensamentos representados em imagens e que figuram no sonho como elementos significativos. A sobredeterminação do fato psíquico em um "outro cenário" valoriza a presença das possibilidades dadas da representabilidade na "apresentação" (Darstellung). A expressão se refere à noção freudiana de Darstellung como as apresentações que nos remetem às impressões da exigência estrutural do sujeito.

A expressão, como o que se apresenta em um fora-do-discurso, representa o que há de enigmático no dizer, enfatizando o caráter polissêmico da palavra, que no contexto da descoberta interpretativa do para-além-do-enunciado vai nos referir à transgressão das regras do código lingüístico. É o como-dizer que enfatiza a diferença entre o sujeito interpretante e o eu fenomênico, pois ao marcar, através da forma, que o que se diz é sempre mais do que se quer dizer, solicita o lançamento do sujeito em um contexto de dizeres significativos.

É a expressão que permite entre-ver no enunciado o impacto da impressão afetiva, angústia que é lugar-testemunha da verdade parcial do desejo. É a impressão da angústia como afeto indizível e indeterminado que carrega a verdade do não-realizado, como ruído implicado no determinismo de uma estrutura ausente, ruído que ecoa expressivamente, na estrutura e na rede significante, a dinâmica da finitude diante da insistência pulsional.

Desse modo, a estética encontra sua afinidade com a psicanálise na estrutura afetiva, não só na expressão e na forma de dizer no discurso, mas no sentido fundante de um sujeito fraturado e incompleto, pois a verdade da dimensão estética em psicanálise é a revelação de um corpo inserido traumaticamente na linguagem.

A dimensão estética revela as impressões (Einchücken) do que é indizível no plano da consciência e que apresenta o contexto da linguagem para além da ordem, pois se abre para o discurso fragmentado e descontínuo, para a produção dos efeitos do belo que se situam entre percepção angustiante e fantasia. É um "instante Unheimliche", de angústia inquietante e estranheza que revela o que habita nos sujeitos desejantes como impossível de suprimir, que repete e insiste e que se manifesta diante do desmoronamento-surpresa de tudo o que é especular. Este movimento intenso demonstra o desejo em permanente deslocamento, sempre referido ao desejo de outra coisa.

Assim, o poder da impressão-expressão do dizer inconsciente é o poder de momentaneamente subverter o pensar e que, ao circular na transferência traz a revelação da inserção traumática do corpo na linguagem. A transferência é, neste sentido, a Darstellung deste corpo que transborda em expressão e nos coloca a questão de como pensar nossa prática associada a esta expressividade que é impressão de uma imagem-ação, impressão da mobilidade pulsional que é atravessada por imagens e que carrega as possibilidades polimorfas da imagem: fragmentar, deslocar, condensar e deformar o já organizado. É esta experiência de fragmentação na transferência que apresenta o contexto da pulsão. Isto quer

dizer que a pulsão não tem imagem, porém sua atividade acontece através das imagens, o que remete ao fora do discurso como lugar de intensidades indeterminadas que constantemente buscam expressão, exigindo um trabalho psíquico referido à alteridade.

Desde Freud, apreciamos uma "lógica" estética em seu pensamento, pois suas idéias sobre o prazer, o sonho, o mito, os símbolos e as fantasias estão implicadas na elaboração do conceito de inconsciente, cujo trabalho de condensação e deslocamento de imagens se produz em uma estrutura falha, que apresenta o sujeito humano como fissurado e incompleto. É neste sentido que o corpo nunca estará à vontade dentro da linguagem, devido à sua inserção traumática e, dessa forma, a cultura e o sujeito do desejo se encontram e se desencontram sempre em um contexto de conflito. Há um permanente estranhamento, que promove uma movimentação intensa no psiquismo, o qual, diante da insuficiência de elaboração pela linguagem, experimenta um confusionamento, um transbordamento da pulsão no plano do eu. O estranho que se mostra se refere ao desejo desconhecido, a algo radicalmente novo e imprevisível e que apresenta a quebra narcísica do estranho encontro do "Isso no Eu".

A experiência analítica revela o prazer estético ao colocar a direção da cura numa relação com o destino da sublimação e a destituição narcísica. Neste sentido, uma análise é terminável quando no lugar da demanda de felicidade se coloca uma "visada" do belo, "visada" erótica que faz laço social.

Esse esplendor que incita o desejo é o que expressa e revela eroticamente a impressão de engodo na apreensão da beleza. O erotismo que brilha é destacado do objeto, pois aí não há objeto apreendido. De fato, o prazer estético para a análise é o brilho da verdade com o qual analista e analisando se comprometem durante o processo ao se interpretar o engano que existe na demanda. O brilho do belo, enquanto guardião delicado do desejo na cultura, é esta "visada" estranha e fascinante, que desvela o engano e revela a verdade parcial que concerne ao desejo, demonstrando o saber que não se sabe. Assim, a partir de um desamparo primordial, enquanto efeito fundante do sujeito diante da radical inadequação entre corpo e símbolo, é que chegamos à dimensão estética para a psicanálise, onde a liberdade estética de recriar o saber se dá a partir de um penetrar no universo de dizeres significativos, de emoções, de erotismo.

Maria Inês França

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