|
'A religião triunfará. A psicanálise sobreviverá, ou não." A drástica profecia é de Jacques Lacan, em célebre entrevista à imprensa italiana, em 1974, reproduzida em vários jornais europeus. Mal sabia ele (ou será que sabia?) que, em pleno 2001, ano do centenário de seu nascimento, o fantasma assombraria tanto seus discípulos quanto os puristas freudianos.
O suposto demônio que assusta a classe psicanalítica tem duas cabeças: uma é a do deputado e pastor evangélico Éber Silva, autor de projeto de Lei regulamentando a profissão de psicanalista (o que situaria o Brasil numa duvidosa vanguarda), contra o qual freudianos e lacanianos unem-se numa histórica aliança. Para ambas as correntes, a psicanálise transcende os limites de uma profissão, e as sociedades tradicionais (que chegam às dezenas só no Rio de Janeiro) são o fórum ideal para a formação e a fiscalização da prática. A outra cabeça é representada pela Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do Brasil (SPOB), que foi criada justamente com o objetivo de lutar pela regulamentação da profissão e cujos líderes, como o deputado, são pastores evangélicos.
A SPOB conseguiu a façanha de formar, em seis anos, um exército de 1.500 psicanalistas em todos os estados do país. Mais 2.200 estão em formação. Para se ter uma idéia do que isso representa, basta lembrar que a Associação Brasileira de Psicanálise (ABP) - ligada à International Psychoanalytical Association, fundada por Freud em 1910 - formou, em 49 anos de Brasil, apenas 980 analistas.
- Entendemos que psicanalise é saúde mental, não é brincadeira. O Estado precisa intervir, estruturando e definindo o processo de formação. Queremos a saúde do povo, não interessa no que este povo crê - diz o diretor-executivo da SPOB, o doutor Heitor A. Silva, que orgulha-se de conciliar a prática psicanalítica ortodoxa no consultório com práticas que beiram o exorcismo, no âmbito, segundo ele, "psiquiátrico". Num texto de Heitor que pode ser consultado no site da entidade, o visitante encontrar uma detalhada receita para diferenciar possessão demoníaca de esquizofrenia. Um trecho:
"Mande que o transtornado diga: 'O sangue de Jesus Cristo tem poder'. Em qualquer que seja o nível de possessão, não proferirá. Entretanto o doente mental, tão somente, pode articular, desde que a capacidade de expressão lhe esteja preservada. Neste caso (possessão) é bom ter cuidado. Se o interlocutor não tiver autoridade, poderá ser violentamente molestado pelo transtornado".
Também na internet, abaixo-assinados contra a lei proliferam. No congresso, onde os evangélicos - nem todos a favor do projeto - formam uma poderosa bancada, deputados como Sérgio Miranda, do PC do B de Minas, articulam-se para formar opinião e barrar a lei:
- Este projeto surge no leito de uma articulação mais ampla. É um grupo de pessoas que quer utilizar a expressão psicanalítica para ter credibilidade e prestígio social. Querem apossar-se do título através da regulamentação e favorecer as suas entidades, existindo sem nenhuma conexão com a sociedade psicanalítica organizada. Estamos produzindo argumentos para as lideranças. O projeto está tramitando na Comissão de Trabalho, mas consegui levá-lo para a Comissão de Seguridade Social, e nela tenho certeza de que ser desmantelado.
Autor do projeto, o deputado Éber Silva, ex-PDT, atualmente sem partido, com base em Campos (RJ), tem fé na empreitada:
- Seria uma pena se ele não fosse aprovado. É preciso dar dignidade a essa profissão. E, no terreno social, dar segurança aos clientes. Esta é a minha preocupação com a psicanálise - garante Éber, admitindo, em seguida, que considera a possibilidade de fazer análise como "investimento emocional".
- Meu processo de aconselhamento pastoral seria bastante enriquecido com isso - anima-se. Observador atento do processo, o psicanalista José Nazar, diretor da Escola Lacaniana de Psicanálise, calcula que, de alguma forma, são os membros da SPOB que estão possuídos por fenômenos complexos:
- Esse pessoal se assanha, promete a felicidade. Não sabem no que estão se fiando. Estão perdidos como religiosos, estão traindo a sua religião. O mais grave é que não estão tomados por sede de dinheiro nem de poder. É simplesmente um fenômeno da ordem da loucura, do non-sense. Eu diria, como Jesus: eles não sabem o que estão fazendo. Não sabem onde estão se metendo.
O doutor Heitor se defende:
- Estão querendo associar a SPOB aos evangélicos, numa atitude que beira o preconceito religioso. O curioso é que os opositores não discutem o texto do projeto, simplesmente recusam a hipótese .
A idéia de regulamentar a profissão (que é reconhecida por uma portaria do Ministério do Trabalho) não é de hoje. Em meados da década de 70, foi justamente no seio da tradicional ABP que nasceu um projeto semelhante, mais restritivo do que o que se discute atualmente.
- No período mais reacionário da associação, houve um movimento para se criar uma lei nesse sentido, que teve grande oposição da comunidade, mesmo de membros da ABP. O psicanalista Leon Carernitz estava à frente. Era a Lei Julianelli. A idéia era transformar a psicanálise numa profissão médica - recorda o psicanalista Joel Birman, diretor do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos e opositor do projeto.
|
|