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Clínica Psicanalítica : um ponto secreto entre a anedota da vida e o aforismo do pensamento.
Miguel CALMON du Pin e Almeida
"Si vous voulez, pour un classique, toujours en très gros, jugement analytique a priori, ça voulait dire quelque chose; jugement synthétique a posteriori, ça voulait dire quelque chose; mais jugement synthétique a priori, c'est véritablement un monstre!"
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao Comitê Organizador dos Estados Gerais o convite para participar desta mesa; a René Major, em particular, pelo entusiasmo e generosidade com que atendeu ao nosso chamado em 1998 para divulgar a convocação deste evento. A quantidade e a qualidade dos trabalhos enviados por brasileiros para a discussão dos temas propostos são evidência disso. Ser-me-ia impossível deixar de mencionar também a dedicação de Helena Besserman Vianna e Maria Cristina Rios Magalhães na organização e preparo deste encontro entre nós do Brasil.
E aproveito os agradecimentos para introduzir o primeiro elemento da minha reflexão: a convocação dos Estados Gerais trouxe de volta muitos amigos que eu tinha perdido ao longo da vida. O grupo que Fernando Coutinho e eu temos a satisfação de coordenar no Rio de Janeiro, surgiu da necessidade de viabilizar e promover a visita de René Major a nossa cidade. Pessoas queridas que a vida institucional afastou, instituições de orientações diferentes da nossa, e quem mais se dispusesse a ajudar individualmente foram contatadas por nós, e, no prazo de dois dias já tínhamos um grupo considerável empenhado no evento. Devo dizer que nos espantamos com a aceitação do convite por muitos deles, pois até então não sabíamos que havia uma urgência semelhante por um lugar descomprometido das instituições, onde cada um pudesse falar em nome próprio e discutir livremente suas questões mais cotidianas. Tal era a proposição que Major nos levava sob o nome de "Estados Gerais da Psicanálise". Terminado o encontro, e ainda como resultado da surpresa que nossas afinidades nos trouxe, manifestou-se no grupo o desejo de manter aquele espaço aberto. Estabelecemos apenas local e hora e nossas presenças para receber todos os que quisessem discutir sobre psicanálise. A rigor, nós não somos um grupo; somos uma reunião. Não nos reunimos para estudar um autor ou um novo livro (por mais que estas discussões aconteçam entre nós). Reunímo-nos para falar daquilo que enfrentamos de mais infame em nossa clínica, para falar do que frequentemente está ausente dos trabalhos que levamos para os congressos. Eu concordo com Jean Pontalis, olhando a questão por sua "Fenêtres" , que as palavras congresso e análise se contradizem. Ele escreve:
"A análise: a experiência a mais íntima, a mais insólita, a mais difícil de transmitir e mesmo de dizer, (...), a mais reticente a todo saber, a todo o discurso conhecido. Uma experiência que permanece frequentemente opaca àqueles mesmos que a ela se submetem , analista e paciente."
"Um congresso: na melhor das hipóteses, uma reunião de especialistas que vêm comunicar informações que devem ser objetivas , controladas, submetidas à comprovação; na pior das hipóteses, uma feira onde cada um exalta seus produtos."
A leitura dos trabalhos encaminhados para os Estados Gerais, assim como a experiência ao longo dos anos com meus colegas, levam-me a pensar que muitas das maneiras de lidar com as questões que nos deparamos incessantemente em nossa clínica permanecem longe de nossas reuniões oficiais, condenadas à bastardia. A criatividade e ousadia dos analistas é significativamente maior na "hora do cafezinho" e nos intervalos das reuniões científicas e dos congressos. E por aqui encontro o segundo efeito da convocação dos Estados Gerais sobre mim : dignificar a "hora do cafezinho". Elevá-la à condição de reunião científica, ainda que faltem outros ingredientes para tanto. A possibilidade do testemunho de cada um de nós sobre sua experiência e a oportunidade de nos deixar estranhar pela escuta dos outros colegas, criam as condições mínimas para compartir nossa perplexidade e não nos deixar aprisionar pela observância à rigidez dos modelos pré-estabelecidos. Uma anedota: a sociedade a que pertenço estava sob intervenção da IPA e recebe um comitê de visita. Durante as discussões em uma das assembléias, um dos interventores, no esforço de valorizar os standards mínimos de formação analítica, diz que um analista da IPA tem que ser reconhecido em qualquer lugar do mundo assim como o é a Coca-Cola. Certamente que a IPA não se reduz a esta anedota, mas esta anedota tem a ver com a IPA e seus modos de transmissão.
Tomarei o caminho da feira para fazer um elogio da infâmia, isto é, do que se põe à margem do que se espera de um psicanalista, pois, se, por um lado este é o pior caminho , por outro creio que seja o único que nos caiba para discutir a clínica psicanalítica. Desde o começo, dois aspectos me fascinaram na proposta dos Estados Gerais: ser uma feira onde cada qual exponha seu produto. Expor e não exaltar seu produto. Será possível? Conseguiremos? Expor meu produto significa falar a partir de um certo lugar que confira visibilidade a minha fala. E o segundo aspecto, a curiosidade pelo dia seguinte à conclusão da nossa reunião. Será que os Estados Gerais se dissolvem no dia seguinte a seu término? Teremos que esperá-lo.
Em A lógica do sentido , Gilles Deleuze descreve o método inventado por Nietzsche para o problema da orientação do pensamento: "não devemos nos contentar nem com biografia nem com bibliografia, é preciso atingir um ponto secreto em que a mesma coisa é anedota da vida e aforismo do pensamento."
Creio que qualquer forma dos analistas se encontrarem toca a anedota. Lembremos que a palavra anedota tem um duplo sentido: tanto designa uma "particularidade histórica, pequeno fato curioso cujo relato pode esclarecer o que está sob as coisas, a psicologia dos homens" ou "relato de um fato curioso ou pitoresco, historieta", assim como "detalhe ou aspecto secundário, sem generalização e sem alcance" . Imbrica, portanto, acontecimento e personagem e banalidade, e nos deixa sempre perto da possibilidade de rir de nós mesmos. Nem biografia nem bibliografia, mas um ponto secreto que corta estes dois eixos. Esta me parece uma boa aproximação para a questão da clínica psicanalítica, uma vez que ela não se esgota na singularidade do acontecimento de cada sessão e nem se reduz ao conjunto articulado de conceitos que pretende dar inteligibilidade ao psiquismo humano. O ponto definido por este entrecruzamento, apesar de vazio, é capaz de prodígios, na medida em que desloca o sujeito do determinismo da empiria ou da razão e o convoca para a indeterminação do campo criado pela pulsão , fazendo-o trabalhar. Parafraseando a aula que me serve de epígrafe: a clínica psicanalítica é verdadeiramente um monstro! Um monstro capaz de prodígios na medida da exigência de novos conceitos. Luiz Augusto Celes em seu trabalho Da psicanálise à metapsicologia: uma reflexão metodológica, nos diz que: "O convite que Freud faz ao leitor da Interpretação dos sonhos , não é o de que revelem os aspectos particulares de sua vida, mas, ao contrário, que mergulhem nas particularidades de sua vida pessoal para que a interpretação de seus sonhos tenha alguma significância. Coincide novamente o trabalho de busca do desejo realizado no sonho com o trabalho que faz teoria, isto é, o trabalho investigativo. Abra-se mão do desejo particular do sonhador e não será possível a construção metapsicológica. O fundamento da metapsicologia é subjetivo, ainda que ela mesma não o seja. Numa psicanálise que se passa entre analista e analisando, a subjetividade implicada se revela no termo transferência. Ao mesmo tempo, a transferência distancia a psicanálise do subjetivismo."
A psicanálise nos conduz ao problema do paradoxo, isto é, ao acontecimento no qual não se pode estabelecer que as coisas tenham um só caminho. As coisas têm um duplo e simultâneo caminho. Por isso a clínica psicanalítica nos defronta com o que não há saída, com o que não há solução e onde a questão do verdadeiro e do falso perde sua importância. Nem a saída da ascese platônica, estabelecendo o ideal a partir do qual as cópias serão avaliadas; nem a busca da essência, da origem, a partir de onde tudo se explica por meio das relações de causa e efeito, justificando assim os intervencionismos e estratégias de abreviação do processo psicanalítico.
Em Análise terminável e interminável, Freud critica a postulação da teoria do trauma do nascimento de Otto Rank como lugar de origem do adoecer psíquico, utilizando a metáfora do bombeiro que se satisfaria em retirar da casa em chamas a lamparina que originou o incêndio. Qualquer tentativa de livrar a psicanálise desta condição paradoxal condena-a à violação de sua especificidade, seja por meio do cientificismo seja pela submissão à religião.
Mas a história do movimento psicanalítico nos mostra que, ao mesmo tempo, não nos cansamos de querer espantar de nós e da psicanálise os paradoxos. Estamos frequentemente assediados pela questão da origem e seu desdobramento explicativo imediato, recuando cada vez mais na escala do tempo; pela questão da localização psíquica; pela questão da substancialização do inconsciente. Por mais que tenhamos discutido o estatuto da psicanálise, algo das práticas médicas permanece aderido aos nossos consultórios através das idéias de sofrimento e dor como desvio da normalidade, e, consequentemente, de cura e de possibilidade de nexos explicativos que meçam a eficácia do fármaco (interpretação) sobre o sintoma. Quantas vezes não nos deparamos com interpretações da máxima freudiana ("Wo Es war soll Ich werden") apontadas para a idéia de melhoramento, para a idéia de progresso, de que caminhamos do menos perfeito para o mais perfeito, oferecendo, deste modo, suporte para fantasia de perfeição ao término de uma análise?
Tomar a psicanálise como "a experiência a mais íntima, a mais insólita, a mais difícil de transmitir e mesmo dizer(...), a mais reticente a todo saber...", significa dizer que nela não há nada de natural. Este é corte radical implícito no conceito de pulsão, entendida como limite entre o psíquico e o somático, nem psíquica nem somática, fonte de exigência contínua de trabalho. Não há uma coisa a partir do que se fazem as representações. O que a coisa fornece são os elementos sensíveis da experiência, imagens visuais, acústicas, que articuladas às representações-palavra, formarão o objeto, isto é, somente adquirirão unidade de objeto a partir da linguagem . Não há identidade com o real e apenas relações de força podem recortar dentro da história de um sujeito outros sentidos, novas possibilidades de ligações.
Assim, se produzir sentido implica poder e poder implica em dar nomes , podemos nos perguntar de que sujeito estamos tratando em nossos consultórios, uma vez que ele se determina historicamente. Creio que todos os autores que encaminharam seus trabalhos para os Estados Gerais concordam que não tratamos dos mesmos pacientes que Freud tratou no início de nosso século. Fala-se de fim dos tempos, fim de milênio, fim da história, fim do paradigma das ciências, fim das ideologias, fim das utopias, e fim da psicanálise. Robert Musil, em O homem sem qualidades, nos enreda na busca da Ação Paralela enquanto se engendra, na cena ao lado, sem que se perceba, o horror da Guerra Mundial. Estaremos, nós aqui nos Estados Gerais, excitados na procura de uma tal ação que afirme a psicanálise e desestimule seus opositores? Que outra cena se trama a nosso lado sem que possamos saber? Mas, seja lá como for, já não somos os mesmos e nem a psicanálise o é.
Destaco algumas questões para nossa discussão.
O modelo de subjetividade que Freud tomou para estabelecer sua metapsicologia foi retirado da histeria e, consequentemente, operado pelos conceitos de castração e recalque. Este modelo de aparelho psíquico não tem dado conta das patologias narcísicas, cada vez mais frequentes em nossos consultórios. Esta insuficiência tem produzido várias tentativas de ordenar novas maneiras de teorização metapsicológica a partir das referências do narcisismo, privilegiando o que da palavra é corpo, isto é, seu gosto, seu cheiro, sua cor, seu tamanho , seus ritmos e intensidades. O mundo das representações pouco nos serve nestas ocasiões. Trata-se de recolher as pegadas do sujeito deixadas pelo caminho, reconhecê-las, nomeá-las e , desta forma, atestar-lhe sua existência. Interpretar , nestes casos , é correr o risco de rasgar o fino tecido que protege a intimidade destes pacientes, deixando-lhes o vazio do ser à mostra. A luta que se dá aqui não é por significados, mas por sobrevivência psíquica. Isto implica uma mudança na posição do analista frente a este sujeito para que possibilite as condições necessárias para a estruturação do mundo das representações e das trocas simbólicas.
Esta é a proposição de Teresa Pinheiro em A castração: do interdito ao desamparo, onde afirma que: "Sob o caldo da histeria Freud construiu um arcabouço teórico que articula conceitos que dão conta de qualquer forma de ordenação do aparelho, seja ele neurótico, psicótico ou perverso." Um aparelho psíquico construído sobre a base da histeria e a partir do qual todos os conceitos fundamentais da psicanálise foram elaborados não seria suficiente para dar conta das questões que estas novas formas de subjetivação nos propõe.
Enaide Bezerra Barros, em Melancolia e verdade, se serve da freqüência com que a melancolia tem visitado nossos consultórios para nos propor uma reflexão instigante: "A melancolia é a identificação com o objeto real porque esse objeto como pura exterioridade sempre está à disposição de um super-investimento narcísico, um investimento que funciona como uma "hemorragia libidinal" que converte toda a libido em libido do Eu, reforçando a onipotência do único modo sempre resistente: a do dejeto, do resto." O sujeito é nada e leva ao limite o alcance da palavra. Supor um modelo de clínica centrado nas interpretações de conteúdo, é deixar escapar o problema que nos afeta ao escutarmos estes pacientes.
Maria Helena Fernandes, em seu trabalho A hipocondria do sonho e o silêncio dos órgãos: uma leitura metapsicológica afirma que: "Esses pacientes (somatizantes), entre alguns outros, colocam em evidência a limitação da escuta do analista se esta tenta se guiar pelo modelo clássico, em que o trabalho analítico visa desvendar os sentidos ocultos do sintoma. Esses pacientes parecem necessitar que o analista os acompanhe na busca das palavras capazes de acolher os detalhes os mais fortuitos da sua fala e colocá-los em relação com o que se passa no seu corpo, permitindo, desta forma, que um sistema simbólico possa ir lentamente se estabelecendo em torno do evento somático".
A escolha por estas questões está marcada e marcando o problema da constituição de novas formas de subjetivação e de sua relação com a contemporaneidade. Os pacientes "sem queixas" que parecem não fazer representação de seu sofrimento, os estados-limites, a melancolia e os pacientes somatizantes encarnam alguns destes desafios da clínica psicanalítica.
Tendo exposto meu produto na feira , vamos agora discutir. Quarta feira, minha outra curiosidade começará a ser satisfeita: o que será o dia seguinte aos Estados Gerais da Psicanálise? Apenas uma reunião onde se colhem testemunhos para reflexão? a Ação Paralela? a Revolução Francesa? ou mais uma instituição?
Rio de Janeiro , 25 de maio de 2000
Miguel CALMON du Pin e Almeida
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