|
Fala, Escuta e Campo Terapêutico Em Psicanálise
Considerações sobre a Situação Analítica
Nelson Coelho Junior
Sumário
FALA, ESCUTA E CAMPO TERAPÊUTICO EM PSICANÁLISE : CONSIDERAÇÕES SOBRE A SITUAÇÃO ANALÍTICA*
NELSON COELHO JUNIOR**
Ora, se expulsarmos do espírito a idéia de um texto original, do qual a linguagem seria a tradução ou versão cifrada, veremos que a idéia de uma expressão completa é um contra-senso, que toda linguagem é indireta ou alusiva e, se quisermos, silêncio. (Merleau-Ponty, Signes, Paris: Gallimard, 1960, p. 54)
ABERTURA
Cem anos após a publicação de A Interpretação dos Sonhos a psicanálise mantém forte vitalidade em suas contribuições críticas à compreensão das diferentes formas de subjetividade e de expressões sociais vigentes nesta nova virada de século. Como há cem anos, existem opositores, detratores e adversários. Especialmente na esfera terapêutica, a psicanálise é criticada: "o método não é mais adequado ( ou nunca foi); uma análise é longa, cara e ineficiente em muitos casos; a psicanálise já foi claramente suplantada pelas terapêuticas medicamentosas tanto nos casos mais crônicos de neuroses como nos casos de psicoses ", são as afirmações mais comuns. Em oposição a este movimento de descrédito com relação à eficácia da clínica psicanalítica muitos psicanalistas contemporâneos têm procurado valorizar a importância da psicanálise como terapia através da exposição de suas concepções sobre o método e a prática clínica. Diversos autores como Baranger, Baranger e Mom (1983), Atwood e Storolow (1984), Robert Langs (1988), Cristopher Bollas (1992, 1995), Thomas Ogden (1996 a, 1996 b), John Steiner, (1997) e Antonino Ferro (1998), para citar apenas alguns, com diferentes perspectivas e finalidades têm, em suas elaborações pessoais, a preocupação comum de partir das concepções freudianas sobre a técnica, sem recusá-las ou supô-las ultrapassadas.
É a partir deste contexto que procuro apresentar neste artigo algumas considerações a respeito da especificidade da escuta analítica e de sua presença em um campo transferencial- contratransferencial que caracteriza a situação analítica.
Parto da constatação de que a prática clínica revela a complexidade de uma situação que produz e é ao mesmo tempo produzida por um conhecimento que não se mostra claramente a não ser que optemos por transformá-lo em tese, isolando-o, recortando-o da experiência vivida. Há aqui a nebulosidade própria da relação do homem com o mundo e das relações intersubjetivas.
Não se trata, é claro, da impossibilidade seja da construção de um conhecimento, seja do reconhecimento de um saber que se estabelece a partir de uma prática vivida, mas sim, de tornar evidente que a intervenção de um pensamento que se dá desde fora (como se isso fosse possível) da própria situação vivida, correrá sempre o risco de constituir-se a partir de si mesmo, ou seja, de encontrar no mundo o que nele já havia colocado. É a partir destas considerações que me parece ser possível pensar a questão "técnica" de uma Atenção Igualmente Flutuante tal qual Freud propôs. Mas entendo, também, que é possível situar esta recomendação freudiana a partir de uma investigação mais detalhada do campo transferencial- contratransferencial que se constitui através da situação analítica e que simultaneamente é elemento constituinte desta mesma situação. Para realizar essa investigação tomo como referência central a obra freudiana e recorro também a autores da psicologia e da filosofia, especialmente da fenomenologia, que desenvolveram concepções e descrições da experiência vivida que em grande medida dialogam com muitas das conceituações psicanalíticas.
SITUAÇÃO, CAMPO, PERCEPÇÃO E SENTIDO
Há um plano onde a situação analítica se mostra em sua complexidade vivida e onde as teorias analíticas têm sempre mostrado dificuldade em estabelecer construções generalizáveis. É o campo propriamente transferencial- contratransferencial onde predominam as articulações pré- reflexivas, onde prevalece o estabelecimento de uma situação que não é da ordem do entendimento racional mas que, nem por isso, precisa tornar-se propriedade de um irracionalismo. A experiência da escuta em análise, de uma atenção igualmente flutuante e a exploração do campo transferencial- contratransferencial em sua riqueza intersubjetiva fazem parte deste plano característico da situação analítica sobre o qual procurarei expor algumas reflexões.
Gostaria de propor, de início, breves considerações e definições do vocabulário que estarei usando no decorrer deste texto.
Situação: de forma geral pode ser entendida como o que nos coloca irremediavelmente no mundo com os outros e não na "consciência", esta nossa hipotética sede produtora de soluções e decisões absolutas. É muitas vezes desta forma que a noção aparece em diferentes autores da tradição fenomenológica, e principalmente em Sartre (1943), para quem "a situação é o sujeito todo, inteiro; ele não é nada a não ser a sua situação."(p.634). Situação, que para a tradição fenomenológico- existencial é quase como um sinônimo da noção de existência, carregada do sentido de que o homem não deve ser compreendido fundamentalmente a partir de sua essência ou do Cogito, como no cartesianismo, mas sim, a partir de uma experiência total, concretamente vivida.
Na obra de Merleau-Ponty, na maioria das vezes, a noção de situação aparece vinculada à sua concepção de corpo vivido, corpo fenomênico em oposição à concepção fisiologista, mecanicista, do corpo objetivo. Essa vinculação aparece em passagens como a que se segue: "E, com efeito, sua [do corpo] espacialidade não é como a dos objetos exteriores ou como das "sensações espaciais", uma espacialidade de posição, mas sim uma espacialidade de situação ."( Merleau-Ponty, M. (1945), Phénoménologie de la Perception, Paris, Gallimard, p. 116).
Não tratar o corpo como objeto, como mera soma de órgãos, não tratar a existência como mera posição no espaço e no tempo, mas sim como situação vivida. Ser um corpo no mundo assume, na filosofia de Merleau-Ponty, a intensidade de uma vinculação que não nos permite mais conceber a existência humana como liberdade absoluta, desconectada do fato estarmos sempre em situação: "Estamos misturados ao mundo e aos outros numa confusão inextrincável. A idéia de situação exclui a liberdade absoluta na origem de nossos engajamentos, a excluindo igualmente em seu fim". (1945, p. 518)
Mas, para além do uso intensivo em Sartre, onde situação implica simultaneamente em obrigação e liberdade, ou de seu uso mais matizado em Merleau-Ponty, interessa aqui pensar a situação analítica, situação que remete ao campo da intersubjetividade ou transubjetividade, como propôs Figueiredo .
A noção de situação refere- se às condições momentâneas, imediatas ( não mediadas), mas também passadas e futuras de uma determinada experiência. Escolhi explorar o conceito de situação justamente por este trazer em si a característica de ser simultaneamente presente e móvel. A situação não é nem absolutamente estável, nem muito menos definitiva. Está a se fazer a cada instante, ainda que nos faça penetrar em uma ampla história de situações semelhantes. Há movimento e presença. É momento presente, e ao mesmo tempo é retenção de vivências passadas e protenção de situações futuras. Situação refere-se também a uma certa condição espacial. A um lugar que é simultaneamente fixo e móvel, um aqui específico e simultaneamente os lugares do imaginário.
Portanto, situação talvez tenha que ser sempre compreendida no plural, já que a simultaneidade de experiências tende a recusar qualquer unidade apressada e apaziguadora. Mas a pluralidade encontra também alguma unidade. Estando já colocado na situação, em uma atmosfera predominantemente pré-reflexiva, vivencia-se a possível articulação de um campo, que em alguma medida é um campo comum, como sugere Merleau-Ponty:
Então é mesmo verdade que os "mundos privados" comunicam-se, que cada um deles se dá ao seu titular como variante de um mundo comum. A comunicação transforma-nos em testemunhas de um mundo único, como a sinergia de nossos olhos os detém numa única coisa. Mas tanto num caso como no outro, a certeza, ainda que irresistível, permanece absolutamente obscura; podemos vivê-la, não podemos nem pensá-la, nem formulá-la nem erigi-la em tese. Toda tentativa de elucidação reenvia-nos aos dilemas.
Ora, essa certeza injustificável de um mundo sensível comum a todos nós é, em nós, o ponto de apoio da verdade. (Merleau-Ponty, M. (1964) Le Visible et l'Invisible, Paris: Gallimard, , p. 27) .
Campo Comum : o problema da noção de campo comum é exatamente o que é colocado por Merleau-Ponty na citação acima. Há campo comum, podemos vivê-lo, mas não podemos nem pensá-lo, nem formulá-lo, nem erigi-lo em tese. Mas algo talvez possa ser escrito.
Costuma-se falar em "comunicação de inconsciente a inconsciente " (como o fez, não sem certa reticência, o próprio Freud), em "empatia", ou, com algumas outras conotações, em "encontro". Estas noções foram muitas vezes elevadas à condição de fundamento de uma vivência intersubjetiva e consideradas essenciais para o estabelecimento da transmissão de compreensões ocorridas no âmbito de uma análise. Empatia e encontro, duas noções problemáticas, no mais das vezes carregadas de "esperanças espiritualóides", que surgiriam para explicar, quase que magicamente, algo que de fato pode se dar, ou seja, a compreensão sensível e vivida entre duas existências distintas, a partir das múltiplas possibilidades projetivas e introjetivas que nos ensinam tanto sobre o outro, como, fundamentalmente, sobre nós mesmos como analistas .
A noção de campo comum insere-se na continuidade de algumas proposições já realizadas na Psicologia e na Psicanálise. Assim, a noção de campo está longe de ser novidade, seja em psicologia, seja no âmbito mais restrito da psicanálise. E mais especificamente, também não é novidade a utilização das noções de campo dos gestaltistas e de Merleau-Ponty por psicanalistas, visando um aprofundamento da compreensão e descrição da situação analítica .
Como se sabe, foram os psicólogos da Gestalt que importaram para a psicologia o conceito de campo então bastante utilizado na física, em noções como a de campo elétrico e campo magnético. É desta forma que Kurt Koffka apresenta a noção de campo e sua relação com o comportamento, em seu livro Princípios de Psicologia da Gestalt :
Assim, o campo e o comportamento de um corpo são correlativos. Como o campo determina o comportamento dos corpos, esse comportamento pode ser usado como indicador das propriedades do campo. O comportamento do corpo, para completar nosso argumento, significa não só seu movimento em relação ao campo, mas refere-se igualmente às mudanças que o corpo sofrerá, por exemplo, um pedaço de ferro ficará magnetizado se for colocado num campo magnético. ( Koffka, K. (1975), Princípios de Psicologia da Gestalt, São Paulo, Cultrix/EDUSP).
Koffka introduz ainda as noções específicas de campo psicológico e campo psicofísico.
É com Kurt Lewin que a noção de campo assume um papel ainda mais importante na psicologia. Ele propõe uma teoria do campo total. Avançando nas pesquisas de Koffka, Lewin busca demonstrar com suas experiências no âmbito da psicologia social a interdependência dos sujeitos entre si, considerados então a partir de uma configuração de conjunto, num campo total, que englobaria o todo.
Já na psicanálise convém lembrar que Lacan nomeou o relato que apresentou no Congresso de Roma, em 1953, "Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise". Ele se refere a "campo da linguagem" (Lacan, J.,1966 , p. 117) e ao mencionar as funções da fala como fundamentais em psicanálise as denomina "esse campo central" (p119). Lacan, no mesmo texto, dá como título ao segundo capítulo "Símbolo e Linguagem como estrutura e Limite do Campo Psicanalítico" (p.144). Mais recentemente, a partir dos trabalhos do casal Baranger, já citados, e de Bion, o psicanalista italiano Antonino Ferro (1998) procura recolocar os problemas e vantagens da compreensão da situação analítica a partir da concepção de um campo transferencial- contratransferencial. No desenvolvimento de seus argumentos ele relembra que "o conceito de campo tem precedentes na psicologia da Gestalt e será reelaborado por Merleau-Ponty com a intenção de fundar uma psicologia do homem "em situação", capaz de observar e compreender os fatos psíquicos pelo seu sentido no contexto das relações intersubjetivas."(p.85)
No Brasil, Fábio Herrmann se utiliza do conceito campo como elemento central na construção de sua reflexão teórico- metodológica.
Por analogia com o campo em que uma discussão se trava, em que faz sentido, chamei a isto: "campo". A investigação sobre o Campo Psicanalítico conduziu-nos a refletir acerca da situação analítica e das características da verdade que ela comporta. Não poderia ser diferente o caminho, já que o campo psicanalítico é a um tempo aquele em que as asserções da psicanálise fazem sentido (são verdadeiras, menos verdadeiras, falsas) e também aquele em que o saber que as fundamenta é criado e exerce eficiência terapêutica" . ( Herrmann, F. (1979) Andaimes do Real - uma revisão crítica do método da Psicanálise, São Paulo, E.P.U., p.29).
Diante dessas utilizações da noção de campo cabe perguntar qual a especificidade da concepção de campo comum que proponho. O primeiro aspecto importante a se frisar é que a noção de campo comum que proponho não se caracteriza pela eliminação das diferenças na relação psicanalítica. Penso em campo comum no sentido de uma situação perceptiva e pré- reflexiva compartilhada, de um espaço vivido, de um tempo vivido compartilhado. Há encontro e desencontro em um campo comum. Há união e desunião, convergência e divergência. É um campo ambíguo, mas nem por isso ambivalente. Deslizamos constantemente do mundo comum para o particular e do particular para o comum. Há porosidade e imbricamento no plano pré-reflexivo e não polaridades irreconciliáveis. Considero a noção de campo comum como algo que caracteriza uma vivência que se dá em um plano anterior àquele que é estabelecido categoricamente pela distinção entre sujeito e objeto, entre o que seria interior e o que seria exterior; anterior, portanto, à distinção rígida entre duas existências ou duas subjetividades. Vivência que se dá em um plano anterior mas que temporalmente aparece de forma simultânea à experiência da distância evidente que possibilita a constituição de duas subjetividades diversas uma da outra. Em uma nota de trabalho de O Visível e o Invisível Merleau-Ponty considera:
Fala-se sempre do problema do "outro", de "intersubjetividade ", etc...
Na realidade, o que se deve compreender é, além das "pessoas", os existenciais segundo os quais nós as compreendemos e que são o sentido sedimentado de todas as nossas experiências voluntárias e involuntárias. Este inconsciente a ser procurado, não no fundo de nós mesmos, atrás das costas de nossa "consciência", mas diante de nós como articulações de nosso campo. ... Está entre eles (objetos) como o intervalo das árvores entre as árvores, ou como seu nível comum. É a Urgemeinschaftung [formação de uma comunidade originária] de nossa vida intencional, o Ineinander [um no outro] dos outros em nós e de nós neles..." (Merleau-Ponty, M., Le Visible et l'Invisible,, pp. 233-234. )
Nota riquíssima, onde muitos aspectos mereceriam destaque e discussão pormenorizada. Ressaltarei apenas o que vem de encontro com as concepções que busco estabelecer como possíveis elementos presentes na descrição da situação analítica. Merleau-Ponty se refere a "articulações de nosso campo", "nível comum" e "formação de uma comunidade originária de nossa vida intencional, e um-no-outro dos outros em nós e de nós neles". Descreve com estes termos o que considera o plano de base onde se dá a relação intencional eu-outro. Um nível de experiência pré- reflexivo que neste momento de sua obra Merleau-Ponty, chega a denominar de inconsciente , onde ocorrem "nossas experiências voluntárias e involuntárias". Fica claro que o "nível comum", do qual fala Merleau-Ponty, não anula as diferenças, não anula os limites que separam objetos entre si, ou mesmo eu do outro; remete-nos a sua porosidade originária, a sua condição de reversibilidade. Neste sentido, a situação analítica cria um campo comum e é simultaneamente criada por ele.
Estas considerações não impedem com que seja preciso reconhecer que a noção fenomenológica e gestaltista de "campo" ( embora importante e inovadora em termos epistemológicos), não é suficiente para uma compreensão mais aprofundada da situação analítica. Isto porque na situação analítica há sempre um "corpo estranho" ao campo, algo que resiste ao livre jogo das forças do campo e que produz repetições, impasses, quebras, etc. Por isso, para enfrentar e "incluir" na compreensão da situação analítica este "corpo estranho" é necessário sair e retornar ao campo , reconhecendo assim a presença dos processos inconscientes e de forças conflitivas na constituição da situação, concepções ausentes nas noções fenomenológica e gestaltista de campo.
Percepção: a experiência perceptiva é elemento fundamental na compreensão do campo transferencial/ contratransferencial. Para Merleau-Ponty, afirmar a objetividade da percepção ou a subjetividade da percepção é estar cego para a permanente ambigüidade do ato perceptivo; perceber é, ao mesmo tempo, abertura para o externo, para o diverso, para o que se objetiva, e "projeção" do próprio, do interno, daquilo que se constrói como subjetivo. Para ser exato, é a própria oposição sujeito- objeto que é abandonada nesta perspectiva. Ou como ele escreve em seu último livro:
Nosso objetivo não é opor aos fatos coordenados pela ciência objetiva outro grupo de fatos- sejam eles chamados "psiquismo" ou "fatos objetivos, ou "fatos interiores"- que "lhe escapam", mas mostrar que o ser- objeto e também o ser- sujeito, este concebido em oposição àquele e relativamente a ele, não constituem uma alternativa, que o mundo percebido está aquém ou além da antinomia, que o fracasso da psicologia "objetiva" deve ser compreendido juntamente com o fracasso da física "objetivista"- não como uma vitória do "interior" sobre o "exterior", do "mental" sobre o "material, mas como apelo à revisão de nossa ontologia, ao reexame das noções de "sujeito" e de "objeto". As mesmas razões que impedem de tratar a percepção como um objeto, também impedem de tratá-la como operações de um "sujeito", seja qual for o sentido em que possa ser tomada. (1964, p.41)
Perceber a realidade é simultaneamente ser tocado pelo que nos circunda e construir este mesmo entorno. Há, assim, uma mútua constituição entre o que denominamos sujeito e objeto e entre percepção e realidade. A percepção é ação constante psíquica/fisiológica, transformação, construção e constituição; e o ato perceptivo é, simultaneamente, apreensão e construção da realidade.
Desta forma, mais do que qualquer outro aspecto de nossa relação com o mundo, é a percepção que coloca em xeque as noções de sujeito e objeto, e exige um questionamento sobre a noção cristalizada de realidade que costumamos possuir.
A percepção pode ser entendida como nossa relação originária com o mundo; contato sensível que nos apresenta a realidade, ao mesmo tempo em que a constrói. É assim que, mesmo em seu último livro (publicado postumamente), Merleau-Ponty insistia: "... é a partir da percepção e de suas variantes, descritas tal como se apresentam, que tentaremos compreender como se pôde construir o universo do saber." (1964, p.208)
E ainda apresentando, com muita clareza, o que entendia por sua polêmica concepção de fé perceptiva (noção central em seu último livro):
A filosofia é a fé perceptiva interrogando-se sobre si mesma. Pode-se dizer dela, como de toda fé, que é fé porque é possibilidade de dúvida e esse infatigável percurso das coisas, que é nossa vida, também é uma interrogação contínua. Não é só a filosofia, no início é o olhar que interroga as coisas. (1964a, pp.139-140)
Embora com suas concepções sobre a percepção Merleau-Ponty não visasse, necessariamente, as situações descritas pela psicanálise, podemos tomá-las como uma reflexão muito útil para uma investigação dos diferentes aspectos desta teoria e da prática vinculada a ela. Na prática clínica em particular, encontramos uma situação que exige um questionamento constante dos processos perceptivos, assim como da realidade. Não são poucos os momentos em que nos deparamos com uma "reconstrução" da realidade, restabelecendo a sensação de uma experiência originária com as coisas, com o outro, conosco mesmos, como acredito que demonstram bastante bem as descrições clínicas de Freud.
Para Merleau-Ponty, a percepção tem um papel fundamental com relação ao conhecimento : "... subtraímos à percepção a sua função essencial, que é a de fundar ou de inaugurar o conhecimento..." (1945, p.24) Mas, por outro lado, "a percepção não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles." (1945, prefácio, p.V) Assim, é possível dizer, com Merleau-Ponty, que não há como prescindir da percepção em qualquer processo que vise ou busque o conhecimento mas que, ao mesmo tempo, não devemos tomá- la ingenuamente como uma ciência do mundo.
É importante, ainda, enfatizar a relação que Merleau-Ponty estabelece entre percepção e sentido: "ora, aqui os dados do problema não são anteriores à sua solução, e a percepção é justamente este ato que cria de um só golpe, com a constelação dos dados, o sentido que os une - que não apenas descobre o sentido que eles têm, mas ainda faz com que tenham um sentido." (1945, p.46)
O sentido não é propriedade nem dos objetos nem da consciência soberana de um sujeito. O sentido emerge de um ato perceptivo.
Ao descrever a complexidade vivida, a psicanálise sempre mostrou aspectos que dificilmente podem ser explicados por construções teóricas, que partem de um conhecimento estabelecido a priori. Seria necessário descrever uma vivência que se dá, enquanto contato primordial, no plano do pré- reflexivo, portanto, ante- racional, e não anti-racional. É neste plano que a filosofia final de Merleau-Ponty procura se mover. É também neste plano que a psicanálise precisaria se mover mais constantemente, tanto no que diz respeito às suas descrições clínicas, quanto às suas teorizações.
Resta considerar a definição de sentido, já que entendo que um campo comum só é operante se dele emergem sentidos.
Sentidos : inicialmente gostaria de considerar a palavra sentido isoladamente. É uma palavra que possui várias acepções. Partindo do Vocabulário técnico e crítico da Filosofia de Lalande (Lalande, A., Vocabulaire technique et critique de la Philosophie, Paris:P.U.F, 1956, pp. 967-968), já que a palavra francesa sens carrega as mesmas acepções, é possível estabelecer ao menos três possibilidades de utilização do vocábulo:
a) sentido, na acepção de função sensorial;
b) sentido, na acepção de significação;
c) sentido, na acepção de orientação ou direção de um movimento, físico ou não.
A riqueza da palavra sentido corresponde, de certa forma, à riqueza própria da produção de conhecimento na situação analítica. É um conhecimento que traz em si a qualidade de ser sensível, não sendo apenas da ordem do entendimento racional; além disso tem também a qualidade de possuir significação e de dar "direção" (entendida aqui como qualquer movimento de mudança).
O que busco caracterizar com a recuperação das três acepções da palavra sentido é justamente o que entendo ser o movimento próprio da situação analítica. Há sentidos. Há, portanto, múltiplas possibilidades de direções a se percorrer; há a interrogação constante pelas significações possíveis de uma expressão, e de forma mais geral, de uma existência; há uma vivência sensível onde a flexibilidade própria do corpo humano recria, a cada momento, a atmosfera de uma existência.
Merleau-Ponty, a partir de Freud, reafirma a pluralidade de sentidos:
A verdade é que nossas ações não admitem um só motivo e uma só explicação e que elas são, como disse Freud com profundidade, sobredeterminadas" ... Simplesmente todas nossas ações tem vários sentidos... . (Merleau-Ponty, M., (1966) Sens et Non-Sens, Paris: Nagel., pp. 63-64)
Cada ação possui vários sentidos, cada expressão instala-se na multiplicidade de significações: isso implica em poder trabalhar aquém do nível muitas vezes restrito das certezas adquiridas pelas teorias e até "forçá-las" a continuar em movimento. Implica em habitar a ambigüidade própria da situação, conviver com o equívoco, como escreve Merleau-Ponty (1945): "Em outras palavras, o equívoco é essencial à existência humana e tudo o que vivemos ou pensamos tem sempre vários sentidos" (p. 197). Ambigüidade da situação analítica já explicitada por Baranger e Baranger (1969): "É essencial para o procedimento analítico que toda coisa ou todo conhecimento do campo seja ao mesmo tempo outra coisa. Se se perde esta ambigüidade essencial, desaparece também a análise" (p.133).
Sentidos emergem : Merleau-Ponty, retomando os textos inéditos de Husserl, aponta inicialmente para uma noção chave na fenomenologia que é a de intencionalidade operante. É uma noção fundamental na descrição da relação que se estabelece entre corpo- mundo, corpo- outros corpos, que desloca da consciência suposta soberana para a vivência sensível (e para a experiência inconsciente, em termos psicanalíticos), a possibilidade de apreensão dos sentidos inerentes a uma dada situação.
A intencionalidade operante caracteriza a descrença na possibilidade de se conceber dois extremos isolados na produção e apreensão de um certo conhecimento: seja, de um lado, a consciência enquanto constituidora e atribuidora plena dos sentidos, seja, de outro lado, o mundo, as coisas, os outros como detentores absolutos de seus sentidos próprios. Retomando as colocações de Merleau-Ponty:
...intencionalidade operante (fungierende intentionalität), a que faz a unidade natural e antepredicativa do mundo e de nossa vida, que aparece em nossos desejos, em nossas avaliações, em nossa paisagem, mais claramente que no conhecimento objetivo, e que fornece o texto do qual nossos conhecimentos procuram ser a tradução em linguagem exata" (Merleau-Ponty, M. (1945) Phénoménologie de la Percetion, Paris: Gallimard, , Avant propos, p. XIII).
Em toda sua obra Merleau-Ponty procura mostrar que nem sujeito, nem objeto constituem isoladamente ou possuem completamente sentidos próprios, absolutos e únicos. A dicotomia sujeito- objeto é tributária de um plano racional que se coloca sobre uma vivência primeira que é da ordem do pré- reflexivo. A noção de uma intencionalidade operante nos recoloca nessa zona de indistinção pré- reflexiva onde a compreensão dos sentidos se estabelece sempre a partir de uma presença entrelaçada de corpo e mundo.
É a partir do entrelaçamento das polaridades que sentidos (sensibilidade, significações e direções) emergem de um campo comum. Não emergem por decisão da vontade explícita de um ou de outro. Tampouco emergem por mero acaso ou por conjunções mágicas. Assim, em termos psicanalíticos, podemos pensar a situação analítica e a produção de sentidos nesta situação, a partir de um campo de profunda imbricação de experiências transferenciais e contratransferenciais, em meio aos encontros/ desencontros transubjetivos.
ATENÇÃO IGUALMENTE FLUTUANTE
Em seus textos sobre técnica, Freud anunciou uma característica particular da escuta analítica, cuja marca principal é uma Atenção Igualmente Flutuante. Que forma é essa de escuta que pode ser caracterizada como diferente de outras?
Antes de considerar as posições explicitadas por Freud, gostaria de fazer um desvio pela filosofia fenomenológica de Husserl, a partir da noção de Epoché. É claro que a fenomenologia husserliana pretendia, fundamentalmente, estabelecer uma atitude nova frente à produção de conhecimento, na tentativa de ultrapassar aquilo que o filósofo considerava ser uma crise na filosofia e nas ciências. Para além de uma perspectiva eventualmente idealista presente nas concepções husserlianas que em nada contribuiriam para a compreensão da situação analítica, gostaria de destacar as afinidades entre as noções de Epoché em Husserl e a concepção freudiana de uma Atenção Igualmente Flutuante.
Husserl recupera a noção de Epoché, que em grego significa, "manter em suspenso", "realizar uma pausa", termo bastante utilizado pelos céticos pirrônicos no sentido de que quaisquer afirmativas não garantem a eliminação decisiva da incerteza. Mas Husserl, ao retomar a Epoché, não está querendo retornar ao ceticismo, não está duvidando da existência do mundo, das coisas, dos conceitos, quer apenas colocá-los "entre parênteses". Colocar entre parênteses, suspender o que Husserl denomina de Atitude Natural, nossa apreensão "ingênua" do mundo e dos outros, sempre mediada por pré- conceitos. Suspender para que o olhar possa ver, para que os ouvidos possam escutar, para que o fenômeno possa se mostrar. A Epoché aparece, na construção da fenomenologia husserliana, como passo fundante da reelaboração de uma produção de conhecimento possível na relação homem- mundo . São inúmeras as ramificações e conseqüências da noção de Epoché na fenomenologia; no entanto, devemos nos limitar à possibilidade que a noção de Epoché nos oferece quanto à questão da escuta na prática analítica.
Husserl dedica um item especial em seu livro Ideen I (1913) à especificação da Epoché. Ele inicia esse item (n.º 32) retomando o item anterior em que afirma a importância de se alterar a nossa atitude natural.
Husserl escreve:
...nosso propósito é justamente descobrir um novo domínio científico, como pode ser conquistado precisamente através do método de colocar entre parênteses (epoché)... colocamos fora de ação a tese geral que pertence a essência da atitude natural, nós colocamos entre parênteses tudo que esta tese inclui com relação à natureza do Ser: todo esse mundo natural, portanto, que está continuamente "lá para nós", "ao nosso alcance" e sempre permanecerá lá, é um "mundo factual" do qual continuamos conscientes, embora nós o coloquemos entre parênteses. (IDEAS - General introduction to pure phenomenology,Nova York, Collins Books, 1972, pp. 99-100).
Caracterizando a qualidade metodológica da Epoché, Husserl nomeou duas etapas
principais de redução ("suspensão"), no caminho de uma filosofia fenomenológica:
a) Redução Psicológica: é a recusa, como filósofo, em aceitar a evidência empírica, de uma atitude natural, como sendo suficiente para a fundação de um verdadeiro conhecimento. Resumidamente: a primeira etapa da Epoché estará realizada quando tudo que nos é exterior, mesmo as outras pessoas, estiver colocado "entre parênteses".
b) Redução Fenomenológica ou Transcendental: para Husserl, a característica da "atitude natural" não se limita à forma pela qual nos relacionamos com o mundo exterior; também os atos da consciência e o "eu" podem ser tratados como o mundo externo. Husserl propõe então que coloquemos também "entre parênteses", a própria consciência, o "eu" e os seus atos. É preciso refletir sobre o refletido. É preciso pensar o pensado (reflexão transcendental). Passamos, assim, do ego cogito cartesiano para o ego cogito cogitatum da fenomenologia husserliana (Cf. Ideas, p. 155 a p. 165).
A partir destas posições de Husserl, é possível conceber uma qualidade de escuta que privilegie, em ato, o silêncio e a fala. Uma qualidade de escuta que leve em conta aquilo que foi dito e o que foi silenciado, abstendo-se do que se pensa disto ou daquilo e do aporte das teorias como propostas explicativas do mundo e das coisas.
Uma escuta que coloca entre parênteses o plano reflexivo para deixar-se fluir em uma experiência pré- reflexiva. Uma escuta que procura deslocar-se do cogito cartesiano, onde instala-se a dicotomia sujeito- objeto, para poder dirigir-se a uma vivência ante- predicativa. Há aqui, mais uma vez, a possibilidade de recuperar-se a porosidade natural do corpo no mundo, onde a escuta, como os outros sentidos, pode escapar à determinação intelectiva de escutar do mundo e dos outros o que neles já havia sido colocado. Pode-se objetar, no entanto, que uma escuta não determinada e nem determinante é algo praticamente inatingível. Com certeza a suspensão nunca é completa, e tampouco pode ser infinita, até porque estamos o tempo todo emaranhados no mundo, entrelaçados nas coisas, nos outros, envolvidos por idéias e sentimentos. Não se trata, portanto, de uma escuta pura, que em nada se prende, que nada traz consigo. Há sempre inúmeros resíduos que permanecem e, de certa forma, é justamente no entrejogo desses resíduos com o que foi dito que se produz a possibilidade de uma compreensão da fala do outro no contexto específico de uma situação. É importante ainda frisar que a noção de Epoché, da suspensão fenomenológica, busca manter em suspenso, colocar entre parênteses, julgamentos, idéias e sentimentos pré- concebidos, nossa apreensão "ingênua" do mundo e não eliminar, subtrair esses julgamentos, idéias e sentimentos. Há grande diferença entre uma atitude quase repressiva da tentativa de eliminar algo, e a de colocar em suspenso temporariamente. O que é suspenso aparece, em certo sentido, simultaneamente como o que impede e como o que permite que a apreensão se torne possível .
As formulações técnicas da psicanálise propõem uma atitude quanto à escuta do analista, que traz semelhanças com a noção de Epoché. Em seu artigo sobre técnica, de 1912, "Conselhos ao médico que exerce a psicanálise", Freud chamou de Atenção Igualmente Flutuante (gleichschwebende Aufmerksamkeit ), essa forma de escuta ou atitude que deve nortear o analista em sua prática clínica. Deve ser destacada aqui a palavra igualmente ( gleich), em geral ausente nas traduções para o português. Como lembra Figueiredo , no texto já citado: ".... a atitude neutra e firme da atenção/ desatenção flutuante, da atenção suspensa sobre tudo e sobre o nada ( the evenly suspended attention, ou seja, uma atenção suspensa (sem se fixar, sem apoios) e distribuída de forma igualitária sobre os entes)".( 1999, p.22). Igualmente flutuante, uma atenção que em nada se detém e que por isso pode se apresentar aberta a todas as diferenças, mas também a todas as semelhanças. Uma atenção que precisa não se deter, para poder se deter em algo.
Em um dos primeiros capítulos da Interpretação dos Sonhos, Freud se refere à atitude ou técnica que depois seria conhecida como atenção igualmente flutuante, utilizando um termo, que poderia ser traduzido para o português como Atenção Móvel (bewegliche Aufmerksamkeit ), que ele descreve como uma atitude mental essencial em sua auto- análise dos sonhos .
Na história clínica do "pequeno Hans" (1909), Freud chega a escrever: "Por enquanto, deixaremos em suspenso nosso julgamento e daremos nossa Atenção Imparcial a tudo quanto houver para observar."
Mas é no artigo de 1912, na primeira das "regras técnicas", que Freud prescreve a Atenção Igualmente Flutuante. Ele inicia a abordagem do tema comentando a difícil tarefa que cabe ao analista, que é a de embrar-se de todos os inumeráveis nomes, datas, lembranças pormenorizadas, manifestações e produções patológicas que cada paciente expressa durante um tratamento que dura meses e até anos, sem confundí-los com material semelhante produzido por outros pacientes analisados simultaneamente ou em períodos anteriores (Freud, S. "Ratschläge für den Artz bei der Psychoanalytischen Behandlung", in : Studienausgabe, Ergänzungsband, Fankfurt: S.Fischer Verlag , 1975, p.171).
Como solução para esse problema Freud propõe uma técnica que ele considera muito simples: "consiste simplesmente em não reter nada em especial e em manter a mesma atenção igualmente flutuante face a tudo o que se escuta" (1975, p.171-172).
Freud estabelece essa "regra técnica" como a contrapartida, do lado do analista, para a regra fundamental, que pede do paciente que comunique tudo que lhe ocorre, em livre- associação, sem crítica ou seleção. Uma vez que, o analista efetue sua própria seleção, e se aventure a seguir suas expectativas, estará arriscando não descobrir nada além do que já sabe; e se seguir suas inclinações, certamente falsificará a percepção (Wahrnehmung) possível. Não se deve esquecer que na maioria das análises escutam-se coisas cujo sentido (Bedeutung) só reconhecemos posteriormente (1975, p.172).
E mais à frente, Freud conclui:
A norma de conduta do analista poderia ser formulada como se segue: deve evitar toda influência consciente em sua capacidade de prestar atenção e abandonar-se inteiramente à sua "memória inconsciente" (unbewussten Gedächtnisse)... (1975, p.172)
Talvez pudesse ser mais apropriado pensar aqui em memória pré- consciente ao invés de memória inconsciente. As aspas colocadas por Freud poderiam se referir a uma memória inconsciente em termos descritivos, já que o movimento de abandonar-se inteiramente a sua memória inconsciente, tomada em termos sistemáticos, praticamente deixaria o analista impossibilitado de escutar. Seria necessário pensar diferentes planos de "abandono" do analista à sua memória inconsciente. É neste contexto que precisam ser pensadas as experiências contratransferenciais e as diferentes formas de "presença" do analista na situação analítica.
O que se evidencia, tanto na Epoché como na técnica da Atenção Igualmente Flutuante, é retirar-se de um plano de julgamentos e determinações pré- estabelecidos para poder deixar-se fluir pelos meandros próprios e presentes de uma dada situação. Por "presentes", entenda-se a multiplicidade temporal própria da situação analítica em sua complexidade transferencial- contratransferencial. Há, assim, a possibilidade de fazer com que os sentidos emergentes de uma situação assumam o lugar primordial na apreensão de uma experiência que, se recoberta e soterrada por designações previamente elaboradas, perde sua riqueza simultaneamente reveladora e transformadora.
Não é esta, portanto, uma escuta que se dá em um sujeito soberano em relação a um objeto distanciado e devidamente previsto, mas uma escuta que se faz na abertura para um campo, ou melhor, em um campo onde é o inusitado e o equívoco que se traduzem nos múltiplos sentidos que emergem a todo momento. Há repetições, há sentidos aparentemente inequívocos, mas mesmo estes não se mostram a não ser a uma escuta que escape do previsível e esteja aberta ao inesperado e ambíguo. As certezas possíveis são fugidias e lacunares tornando temerosas as asserções explicativas que necessitem de configurações definidas e definitivas para serem expressas. Até mesmo porque a fala do paciente, e sua presença, não se mostram como uma totalidade acabada e sim como sucessivos perfis. Ter, portanto, compreensões e apreensões parciais de um dado fenômeno, não deve ser entendido como uma deficiência em nossa capacidade de escuta, já que a plenitude do fenômeno só seria possível se nos colocássemos em um "pensamento de sobrevôo", em uma escuta de sobrevôo, que se desse a partir de um espírito absoluto, fora do mundo, que pairasse sobre tudo e sobre todos. Mas como estamos o tempo todo enredados no mundo, vivendo o interfluxo de sentidos parciais, apreensíveis em uma situação sempre em movimento, é uma escuta de perfis, de sucessivas facetas que se torna possível.
Aquela escuta, por outro lado, que antecipa o que ouve, acaba por pré- determinar uma fala que irá antecipar um sentido que talvez jamais se apresente na relação vivida de uma análise. Aquela escuta que pressupõe totalidades e generalizações da situação vivida, relatada através de um discurso, perde de vista (ou de escuta!) a pluralidade de sentidos própria a cada fala que, se possui uma unidade, é aquela da multiplicidade de direções e significações que cada experiência carrega em si.
FALA E LINGUAGEM NA ANÁLISE
À escuta do analista liga-se uma fala que aparece em cena como uma intervenção. Estou nomeando de intervenção a fala, a expressão do analista, buscando evidenciar assim seu duplo caráter. Ela simultaneamente é ou está presente, sucedendo inesperadamente ou interrompendo um dado fluxo, e também traz em si a potência de introduzir algo; nunca sendo neutra, podendo provocar, de alguma forma, alguma movimentação.
Intervenção que ocorre em um campo e que visa atingir algum alvo, muitas vezes definido pelo recorte teórico- técnico adotado pelo analista. A cada nova intervenção, no entanto, o analista está colocando em risco, e mais das vezes perdendo, momentaneamente, a teoria que abraçou, já que a atualização de um pensamento sobre uma dada vivência, quando expressa, foge do conjunto coerente no qual se situava e passa a compor uma nova atmosfera ao confrontar-se com a forma de escuta e apreensão do paciente. Afirmei que a intervenção do analista pode surgir para interromper um fluxo, buscando assim estabelecer as delimitações possíveis dos inumeráveis entrelaçamentos proporcionados pela fala e mesmo pelo silêncio em uma situação analítica. Intervenção que nasce de uma necessidade de tornar, em parte, visíveis e apreensíveis muitos dos sentidos que emergem na situação analítica. O enigma do latente e do manifesto, do oculto e do que se mostra permeia essa situação exigindo expressões que façam movimentar uma dinâmica muitas vezes repetitiva. Repetitiva no que mostra, e repetitiva no que oculta, ainda que nem sempre da mesma forma.
Há aqui, de certa maneira, a crença no poder transformador da linguagem. A questão que é necessário retomar, portanto, é, de onde parte essa linguagem? Quem a possui, quem a comanda? O que faz com que ela possa ser transformadora?
A linguagem é paradoxal, ao mesmo tempo em que preexiste ao sujeito, é recriada a cada nova fala, e só continua a existir porque há a fala particular de um sujeito. A noção de uma dialética sem síntese, proposta por Merleau-Ponty, reaparece na questão da linguagem onde simultaneamente há, em cada fala, preexistência da linguagem e presença da recriação da linguagem. A intervenção do analista não é criação pura. Não é, por outro lado, pura expressão de algo pré-formado, já que, na pior das hipóteses, reaparece em uma situação nova. O poder da linguagem situa-se, em um certo sentido, nesse movimento ambíguo. Pode vir a transformar, porque parte de uma história que, se não constitui absolutamente a linguagem, de forma determinista, atua, ao menos, como sentido comum que preexiste àquela fala particular. Ao mesmo tempo, é pelo que tem de inusitado, de inesperado, é pelo potencial de expressar o que não está podendo ser expresso, que a linguagem, na intervenção do analista, pode ser provocadora de um movimento, de uma mudança.
Não há autoria absoluta no campo da linguagem. Não há, entretanto, somente mera reprodução ou repetição. A intervenção se faz em um campo, se faz através de um analista, mas, simultaneamente, é feita por um analista. Existe a possibilidade de retomar o já dito e de instaurar o ainda não dito. Há, portanto, na intervenção do analista, a possibilidade dessa conjunção maravilhosa entre o que se diz através dele e o que ele diz, entre uma linguagem preexistente à sua fala e essa fala como reinaugurante da linguagem. Há conjunção constante, também, entre o que se oculta e o que se mostra, permitindo assim a pluralidade de sentidos própria a uma experiência vivida. É no entre, no entrelaçamento das polaridades, que se pode instalar a riqueza da intervenção do analista. O entre, esse local nunca determinado, sempre fugidio, que se articula de forma diferente a cada momento, que não deve ser instituído como lugar, mas como latência, que não deve ser afirmado e demarcado, já que assim corre o risco de se tornar uma posição definida e definitiva, perdendo o que lhe é mais próprio, ou seja, a mobilidade constante, a tensão produtiva presente no entrejogo das polaridades complementares que constituem a linguagem expressa.
Existem, no entanto, intervenções prepotentes em análise, que se pretendem absolutas, auto- constituídas, e capazes de prover as explicações de todos os enigmas. No mais das vezes é uma fala que parte da crença de que há um sujeito independente de um objeto, de que há uma verdade que emana de uma "consciência absoluta", (que aqui se manifesta como crença absoluta no inconsciente compreendido de uma forma particular); que se afirma enfim como explicativa, na certeza de possuir a apreensão total de um fenômeno que se reduziria a um único sentido. No momento em que somos explicativos perdemos o poder da ambigüidade da linguagem, dos paradoxos da linguagem, e começamos a rotular os fenômenos e não a evocá-los, ou a chamá-los, para utilizar a noção heideggeriana, expressa em Unterwegs zur sprache (Em direção à linguagem). Heidegger, em sua conferencia de 1951, publicada sob o titulo de "Die Sprache", assim expôs algumas de suas noções sobre linguagem: "Não. Nomear não é distribuir qualificativos (às coisas), empregar palavras. Nomear, é chamar pelo nome. Nomear é chamar." (Heidegger, M.(1976) Acheminement vers la parole, Paris, Gallimard, p. 22 ).
Ao distribuir qualificativos eliminamos a possibilidade dos múltiplos sentidos de uma vivência e de uma expressão, implicando assim na determinação de uma direção única e arbitrária. Evocar ou chamar, ao contrário, instala a linguagem na ambigüidade própria da relação transferencial, onde algo se mostra, ao mesmo tempo em que outra coisa se oculta, onde a fala amplia o horizonte de possibilidades de um movimento, ao invés de limitá-lo a uma só direção. Com isso é possível conceber a intervenção do analista como um ato que busque, através da marca evocativa da linguagem, a abertura para que sentidos possam emergir. Como lembra muito bem Pontalis, em um artigo dedicado à obra de Merleau-Ponty:
O estranho, com o qual o escritor, tanto quanto o psicanalista confronta-se, é que temos sempre o sentimento de que a obra somente realiza a reunião de algumas coisas: eu sempre o soube, você me aponta aquilo que eu já tinha sob os olhos. Mas isso, em um sentido, é uma ilusão, já que se faz necessária a operação da linguagem para que apareça aquilo que lá já estava. Merleau-Ponty escreve profundamente: "A linguagem realiza, quebrando o silêncio, aquilo que o silêncio queria mas não obtinha" (Pontalis, J.B. (1977) Entre le rêve et la douleur, Paris, Gallimard, , p. 68. O trecho de autoria de Merleau-Ponty (1964) encontra-se em Le Visible et le Invisible, Paris, Gallimard, , p. 230).
Na imbricada configuração, no difícil equilíbrio existente entre a escuta, o silêncio e a intervenção situa-se o fio-da-navalha, a constante trilha oferecida ao analista a cada novo campo transferencial- contratransferencial, a cada campo comum que se forma.
BIBLIOGRAFIA
BARANGER ,W. e BARANGER, M. (1968) Problemas del campo psicoanalítico Buenos Aires: Kargieman.
BARANGER ,W. e BARANGER, M. e MOM, J.(1983) Process and non- process in analytic work. International Journal of Psychoanalysis. 64.1.
BOLLAS, C. (1992) A Sombra do Objeto, Rio de Janeiro: Imago.
__________ (1993) Being a Character : Psychoanalysis and Self- Experience, London: Routledge.
COELHO JUNIOR, N. (1988) O Visível e o Invisível em Psicoterapia. A filosofia de Merleau-Ponty penetrando a prática clínica. Dissertação de Mestrado, PUC-SP.
__________________(1991) O Inconsciente em Merleau-Ponty. In: O Inconsciente- várias leituras, Felícia Knobloch(Org.), São Paulo: Editora Escuta.
FIGUEIREDO, L.C. (1999) Presença, implicação e reserva. Sobre ética e técnica em psicanálise. São Paulo. Inédito
FERRO, A . (1998) Na sala de análise, Rio de Janeiro: Imago.
FREUD, S. (1900)Die Traumdeutung, Studienausgabe, vol.II, Frankfurt: S. Fischer Verlag, 1970.
__________(1909) Analyse der Phobie eines fünfjährigen Knaben, Studienausgabe, vol.VIII, Frankfurt: S. Fischer Verlag, 1970.
_________(1912) Ratschläge für den Artz bei der psychoanalytischen Behandlung, Studienausgabe , Ergänzungsband, Frankfurt: S. Fischer Verlag, 1975.
HEIDEGGER, M. (1976) Acheminements vers la parole, tradução de François Fédier, Paris, Gallimard.
HERRMANN, F. (1979) Andaimes do Real - uma revisão crítica do método da psicanálise, São Paulo, E.P.U.
HESNARD,A.(1960) L'Ouvre de Freud, Paris : Payot.
HUSSERL, E. [1972 (1913)] Ideas I- General Introduction to pure Phenomenology, New York: Collins Books.
KOFFKA, K. (1975) Princípios de uma psicologia da Gestalt São Paulo: Cultrix/Edusp.
LACAN, J. Escrits[(1966) Paris: Éditions du Seuil.
LALANDE, A. Vocabulaire technique et critique de la Philosophie, Paris, Presses Universitaires de France, 1956.
LANGS, R. (1988) Thérapie de vérité, Thérapie de mensonge, Paris: P.U.F.
MERLEAU-PONTY, M (1945)Phénoménologie de la Perception, Paris: Gallimard, 1945.
___________________(1960a) Signes, Paris: Gallimard, 1960.
___________________(1960b) "Préface" a L'Ouvre de Freud, de HESNARD, A ., Paris: Payot.
___________________ (1964 ) Le Visible et L'Invisible, Paris: Gallimard.
___________________ (1966) Sens et Non- Sens, Paris: Nagel.
PONTALIS, J.B. (1977) Entre le rêve et la douleur, Paris: Gallimard.
OGDEN, T. (1996a) Os Sujeitos da Psicanálise, São Paulo: Casa do Psicólogo.
___________(1996b) "The Perverse Subject of Analysis", Jounal of American Psychoanalytical Association, 44: 1121-1145.
___________(1997) "Reverie and Metaphor", International Journal of Psychoanalysis, 78: 719-732.
SAGAWA, R.Y. (Org.) (1999) Teoria dos Campos na Psicanálise, Sãp Paulo: Editora HsPsiqué.
SARTRE, J.P.(1943) L'être et le Néant, Paris: Gallimard.
SEARLES, H. ([1972]1981) Le contre- transfert, Paris: Gallimard.
STEINER, J. (1997) Refúgios Psíquicos, Rio de Janeiro: Imago.
|
|