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Erradicação às avessas
Glaucia Dunley
Aos nossos governantes
Diante do jogo de empurra, nefasto indício da evitação de responsabilidades, e da consequente não tomada de decisões em vários níveis frente à epidemia de dengue que massacra a população do Estado do Rio de Janeiro, gostaria de lhes fazer uma pergunta. Embora seu aparente prosaísmo, acredito que ela possa refletir um dos níveis do desamparo no qual a população do Rio se encontra mergulhada: "Devo ou não deixar que me filho Thomás de 17 anos volte às aulas em seu colégio, situado na rua Miguel Pereira, Humaitá, onde sabidamente existem focos do mosquito?"
Esta pergunta desencadeia inúmeras outras, todas tendo em comum a imensa preocupação de pais, mães, parentes, amigos, professores, e demais exilados do conceito de cidadania, não só em relação aos seus entes queridos, como também, por um sentimento comum de solidariedade, à população do Rio de modo geral. Destaco o caráter paradoxal e cruel da situação em que nos encontramos, o de estarmos efetivamente exilados em nossa própria cidade, ou seja, sem poder usufruir das condições básicas de sobrevivência que nos deveriam ser asseguradas, o que nos é comprovado diariamente pela questão da segurança e agora pela situação crítica da saúde frente a esta epidemia.
Vale-nos de muito neste momento o artigo lúcido do sanitarista Eduardo de Azeredo Costa, publicado em 18/2, em Opinião no JB, fazendo-nos refletir sobre o engodo macabro das políticas neoliberais aplicadas à saúde no Brasil e seus efeitos de corrupção sobre o direito inalienável do cidadão à saúde. O sanitarista da Fiocruz aponta com clareza aquilo que os Srs. já deveriam ter se esmerado em viabilizar e praticar, em lugar de erradicar sanitaristas ( e outros agentes de saúde) capazes de traçar com amplo conhecimento de causa as soluções para os problemas suscitados pelo Aedes. Permito-me lembrar os pontos principais levantados pelo médico na direção de uma política de saúde não só emergencial, mas que visa igualmente a implantação de conhecimentos e medidas que norteiem ações a médio e a longo prazo. Em primeiro lugar: a definição clara de responsabilidades, de modo a poder unificar a ação contra a epidemia e concentrar recursos; em segundo lugar: planos de trabalho de médio e longo prazos, com recursos humanos e materiais estáveis, obedecendo a comando único de nível estadual; em terceiro: a universalização de uma estrutura de atenção primária competente, que inclua permanentemente agentes de saúde preparados para as múltiplas atividades de controle de doença e promoção de saúde.
Seria então pedir muito aos Srs. que estivessem à altura dos cargos que ocupam, reconhecendo a já muito longa resistência moral do povo brasileiro diante do sofrimento, e agindo conforme a diminuí-lo? Há um limite para continuarmos a ser expectadores passivos da interminável tragédia nacional. Lembro o pathos crônico de sofrimento da imensa maioria da população, sua morte lenta pela fome, pelo destrato, pela desesperança, agudizado agora pela dengue no Rio, que ameaça outros estados, além de coadjuvar o aumento dos focos de febre amarela no interior do Brasil.
Como muitos, fui arrancada da minha higidez e do meu dinamismo habituais ao ser derrubada pela doença, parecendo satisfazer com isto o desejo de apatia dos carrascos da saúde neste país, dos frios executores do pensamento único. Se é que o neoliberalismo merece ser chamado de pensamento...
Como sou médica, me internei logo no primeiro dia de sintomas em uma casa de saúde particular, com o objetivo de fazer hidratação parenteral, procurando diminuir com isso os riscos e o extremo padecer que a dengue provoca. Mas olho para os que não tem a mesma chance e, numa espécie de versão sanitarista e tropical do "j'accuse", acuso os Srs. de aumentar em níveis insuportáveis e desumanos o fardo de nossos heróis anônimos, que além de suportarem as suas muitas mazelas cotidianas, ainda tem que ser confrontados à doença e à morte, não como fatos da vida, nem como uma inesperada cartada do acaso, mas como frutos da omissão e da perversidade crônicas de nossos governantes, que os Srs. atualmente encarnam.
Pedi a meu filho, antes de mandá-lo para o colégio esfumaçado pelo repelente, que tomasse cuidado, pois eu estava doente e não poderia cuidar dele, nem de seus irmãos, além de estar correndo o risco de ser picada outra vez pelo mosquito. Diante de um tal desamparo e vulnerabilidade, de algum lugar secreto e sem dor brotou uma resistência preciosa e indignada, fazendo-me pensar que, embora eu me sentisse destruída físicamente, não estava derrotada. Levantei-me para ir à Defensoria Pública, ou a qualquer outro lugar que pudesse responsabilizar o governo federal, o estadual e o municipal por essa terrível omissão coletiva, antes que o povo seja chamado, como sempre, para resolver e pagar a conta.
Publicado no Jornal do Brasil, na seção Opinião, no dia 04/03/02
Glaucia Dunley - médica e psicanalista
E-mail: glauciadunley@aol.com
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