Trauma e luto na contemporaneidade

Glaucia Peixoto Dunley

A psicanálise como pensamento crítico e sua transmissão

Objetivo

Este escrito é fruto de uma inquietação a respeito dos sentidos e dos destinos de uma contemporaneidade marcada pelas novas tecnologias, signo paradoxal de seu mal-estar e de sua potência. A isto se alia o desejo de reconhecer (mais ainda) e procurar retomar a psicanálise como pensamento crítico vigoroso que, como tal, foi inscrita por Freud na especificidade de um legado a ser transmitido.

Subjacente a esta posição, coloca-se uma questão: o que afinal foi feito, pela comunidade psicanalítica, do poder de fogo da psicanálise na cena da cultura? Em outras palavras, seria possível pensar que a quase ausência da psicanálise ou sua falta de vigor, no panorama do pensamento crítico da atualidade, estaria envolvida com a perda de potência de sua transmissão como tal?

Parto da premissa de que a psicanálise tem se limitado à sua expressão de prática teórico-clínica, pensada de forma auto-referente, ou seja, girando em torno de si própria numa espécie de autonomização da realidade, e portanto da vida. Se pensarmos que a vida, nas suas incessantes demandas de interpretação e decisão, isto é, de crítica, oriundas de vários contextos e realidades, é um agente diferenciador radical e efetivo, pergunto se o apagamento gradual desta dimensão fundamental do legado freudiano não estaria sob o domínio de um desejo de indiferenciação que assume atualmente proporções globais, para além de quaisquer outras resistências da própria comunidade psicanalítica à sua transmissão.

Temos um instrumento poderoso. Resta saber se ainda é do desejo dos psicanalistas, na sua transmissão, retomar este eixo originário do pensamento freudiano e com isso constituir um foco de resistência à indiferenciação reinante, ou ao "puro instinto de morte", para utilizar a expressão de Deleuze .

Introdução

No contexto deste tema, procuro evidenciar a pertinência de se tomar em consideração, na transmissão da psicanálise, o seu caráter de pensamento crítico da cultura que efetuou, em suas origens, um corte no saber do homem sobre ele mesmo e na sua relação com o outro, abrindo um novo tempo para o pensamento. Tempo de descentramentos, diferença, indeterminismo e desamparo. Este corte efetuado por Freud situou a psicanálise, como pensamento crítico, na charneira entre modernidade e uma contemporaneidade avant la lètre.

Nossa contemporaneidade é aqui compreendida tal como a situa Márcio Tavares d'Amaral. Isto é, como ethos ou cultura marcada pelo acontecimento tecnológico (há umas cinco décadas) e pelo seu hiperdesenvolvimento, ao ponto de transformar uma cultura comunicacional em cultura informacional , onde os valores da comunicação se dissolveram na pletora de informação mediada incessantemente pelas novas tecnologias. Nesta "festa tecnológica" na qual a contemporaneidade se encontra mergulhada, o destino do excesso pulsional se faz predominantemente na direção de uma indiferenciação, de um retorno à imanência. Evidentemente, a contemporaneidade que atribuo a Freud e à psicanálise não diz respeito a cronologia do acontecimento tecnológico mas ao séquito de características comuns ao tempo do seu pensamento expresso na segunda tópica e ao nosso.

Se este corte na episteme moderna efetivamente instalou a psicanálise na charneira entre modernidade e contemporaneidade, ela mesma foi o agente e o efeito desta articulação (cheia de movimento), sendo então marcada constitutivamente pelas características destes dois tempos. Se à sua modernidade atribuo sua pertinência às formas revolucionárias do pensamento, aos descentramentos, ao pensamento crítico, à sua contemporaneidade posso atribuir indeterminismo, desamparo, errância, diferença e repetição. Não poderia deixar de lado o outro tempo do pensamento freudiano, o pensamento grego, na sua forma de métis, que leva em consideração a multiplicidade, o saber instável e conjuntural, o acaso, marcas luminosas do saber freudiano sobre o inconsciente. Trata-se então de um pensamento que se constitui de uma simultaneidade de tempos , sem se submeter ao imperativo (categórico) de excluir um ou outro tempo para afirmar a hegemonia de um deles. Com isto quero dizer que a psicanálise em sua transmissão como pensamento nos abre a possibilidade de sermos simultaneamente modernos, contemporâneos, gregos...

Em 1919, em "O estranho", Freud realiza em sua própria obra a passagem explícita de um Freud moderno, preocupado entre outras coisas com a psicanálise como ciência da interpretação e do determinismo psíquico, com a técnica e com o registro da representação, para um Freud contemporâneo, marcado pelo indeterminismo da pulsão de morte na sua forma de compulsão à repetição Neste texto, significativamente para nossa atualidade, ele associa a angustiante estranheza à dúvida de que o extraordinário pudesse ser possível na realidade (no ordinário, no ordinateur).

Pergunto-me onde está nossa estranheza diante dos híbridos entre humano e tecnologia. Serão estas próteses informacionais uma substituição, ou melhor, um deslizamento contemporâneo da figura do "deus com prótese" ao qual Freud se refere em "O mal-estar da civilização"?

Considero que esta primeira aproximação dos híbridos feita por Freud, ou seja, pela via do narcisismo, não esgota os seus sentidos e proponho-me a examinar alguns outros na contribuição que faço em seguida.

Trauma e luto na contemporaneidade

Em Diferença e Repetição1, Deleuze considera a introdução do tempo em sua forma pura e vazia(liberada do espaço e do movimento) como a maior iniciativa da filosofia kantiana. Entretanto, ele diz que o momento fulgurante desta criação não está em Kant mas em Holderlin, seu contemporâneo, quando este dá ao tempo puro e vazio de Kant uma referência : a retirada categórica dos deuses, tal como havia se passado no tempo de Édipo e Antígona nas tragédias de Sófocles. Por esta interpretação do teatro trágico, Holderlin torna comum aos modernos a experiência trágica dos gregos. Em "Observações sobre Édipo ", Holderlin diz : "Lá onde estava o deus, resta apenas o tempo. Mas o tempo como condição, como forma sem conteúdo, vazio e puro".

A retirada categórica dos deuses, proposta poética e filosoficamente por Holderlin, teria instaurado uma infidelidade da parte dos deuses, a qual o homem respondera com o esquecimento. Assim, esta dupla infidelidade teria lançado o homem em um tempo trágico, um tempo de luto..

Para Holderlin, o moderno é o homem em ocaso em relação aos gregos, os portadores do fogo dos céus, do pathos sagrado. O moderno seria então o homem que se libertou dos paradigmas, sem saber para onde vai conduzi-lo tal libertação.

O pensamento trágico de Hölderlin consumou-se em Nietzsche, cem anos depois, na afirmação da morte de Deus. Neste mesmo Acontecimento é recolhida a quebra de toda garantia que até então havia sustentado o eixo do pensamento ocidental, revelando-se na enunciação da crise dos fundamentos(século XIX) e da referência, posteriormente(século XX). Segundo Nietzsche, a unidade e a identidade divina são, na verdade, a única garantia do eu uno e idêntico. E o eu se conserva na medida que Deus permanece. Deste modo, o acontecimento da morte de Deus trata igualmente da ferida, da divisão , e mesmo dissolução do eu.

Mais do que isto, Nietzsche parece ser o primeiro a ver que a morte de Deus só se torna efetiva com a dissolução do eu, a partir da fissura introduzida no eu puro do cogito cartesiano por Kant com a idéia do tempo puro e vazio, pondo em questão a teologia racional. São então acontecimentos correlatos a morte de Deus, a rachadura prolongada do eu e a paixão constitutiva do eu ( ou re-constitutiva do eu ). Aproximo esta última, talvez um pouco precocemente, do culto ao indivíduo, do narcisismo que assolou o homem a partir da "retirada" da crença em Deus para o próprio eu, cada um podendo tornar-se um deus, seu próprio deus. "Um deus com prótese", dispara Freud em "O mal-estar da civilização", ao se referir ao homem moderno na sua tentativa narcísica de se desembaraçar do desamparo e lidar com o mal-estar através de uma deificação de sua condição humana em um mundo sem Deus. Adverte ainda, quase profeticamente, no mesmo texto: "Tempos futuros trarão novos e talvez inconcebíveis progressos neste terreno da cultura, exaltando ainda mais, a deificação do homem. Mas não esqueçamos, no interesse do nosso estudo (o mal-estar) que tampouco o homem de hoje se sente feliz na sua semelhança com Deus".

Freud não compactuou com as ilusões, mas deu-lhes o status de serem expressões de desejo. Muitas vezes, dos desejos mais pressionantes e antigos do homem, como os de incesto e parricídio. E por que não o desejo de tornar-se um deus (desejo de onipotência?). Em 1938, em seu ensaio intitulado "A divisão do ego no processo de defesa", ele anuncia que o eu não é uno, ou que ele não permanece uno, pois se divide no conflito psíquico entre pulsão e realidade da castração, sofrendo um dilaceramento que se acentua com o tempo. Poder-se-ia dizer que a visão da castração atuaria simbolicamente como uma ferida narcísica em um eu que se queria completo, uno, indiviso, de acordo com seu desejo de perfeição ou onipotência construído sobre a idéia de Deus. A partir de Freud, um sujeito do conhecimento terá que conviver (agustiadamente) com um sujeito do desconhecimento.

Freud assume, então, com Nietzsche, por caminhos diferentes, a tarefa de desmantelar radicalmente uma certa filosofia da ordem, do Um, que já expirava na passagem do século XIX para XX, ambos desfechando golpes mortíferos no binômio Deus-homem, criado talvez pelo homem, para tentar sustentar eternamente seu narcisismo, em lugar de assumir o seu desamparo e inderteminação.

Com essa nova fissura ou rachadura introduzida por Freud no sujeito do conhecimento (a primeira foi Kant, com a idéia do tempo vazio e puro), pode-se pensar que a idéia da morte de Deus tenha atingido as condições de sua eficácia, segundo a idéia de Nietzsche expressa acima de que a morte de Deus é correlativa da rachadura do eu. Mais do que isso, apenas a dissolução do eu (até então um pequeno monolito, réplica da unidade divina) tornaria efetiva a morte de Deus.

Segundo as perspectivas de Holderlin, Nietzsche e Freud estamos lançados em um tempo trágico, vazio e puro , que é paradoxalmente origem de todas as condições e possíveis, sendo portanto capaz de nos abrir saídas criativas e também de nos ameaçar com o informal no sentido da indiferenciação, da repetição do mesmo, do "puro instinto de morte". Neste tempo, que é também contemporâneo, vige a experiência da morte de Deus. Trata-se da morte de uma idéia poderosa que sustentou milenarmente a história do pensamento ocidental que, significativamente, manteve excluído o pensamento do múltiplo dos pré-socráticos e o pensamento trágico. Este último trouxe à cena as intensidades da discórdia entre os homens e os deuses ( presentes nas tragédias gregas ), seu afastamento, o esquecimento do divino ou do sagrado pelo homem, seu desamparo e errância pelo mundo e a formulação da morte de Deus. A era do acontecimento tecnológico, na esteira da afirmação de Nietzsche, tem um sentido que ocupa um lugar na construção do ethos trágico da contemporaneidade3 e se relaciona a um tempo de luto (a seu fim) durante o qual a idéia traumática da morte de Deus precisou ser elaborada.

Minha hipótese é que um pensador trágico4, Freud, na charneira entre moderno e contemporâneo, tenha podido insistir na elaboração desse trauma, pelo qual ele, aliás, ele é também responsável, através do pensamento transgressivo e demolidor da psicanálise.

Mais do que elaborar o luto de uma única idéia, Freud elaborou, nas várias vertentes de sua obra (inclusive a clínica), o luto de um complexo centrado na idéia do pai como figura da garantia: Deus, deuses, ideais de cultura, fundamentos, referência, representação, além de outros possíveis avalistas da lógica do Um (a unidade, a lei, a definição, o conceito, a regra).

No melhor estilo da Aufhebung freudiana, ele mantém ou conserva o excesso, o trauma, e ao mesmo tempo o supera (elabora), abrindo para o pensamento uma saída possível (do trauma e da repetição do mesmo). Na "saída" freudiana, o "tumulto do múltiplo" de Empédocles e as diferenças enlouquecidas não precisarão mais ficar sob a hegemonia do Um, de uma lógica binária, excludente do extraordinário e homogeneizante, que procura a tranquilização nas identidades e nos princípios aristotélicos da não-contradição e do terceiro excluído. A saída freudiana se voltará para uma lógica ternária5 , transgressiva, a lógica onírica da psicanálise, que pode ser aproximada da lógica poética, segundo Bahktine. Transgressiva porque transgride o Um e o seu séquito, como formas inquestionáveis e plenas de sentido.

Algumas implicações possíveis da não elaboração do trauma da morte de Deus

Nos Ensaios de Teodicéia6, Leibniz formula que os mundos possíveis não podem passar à existência se são incompossíveis com aquele que Deus escolhe e que é, portanto, o melhor. Mas na ausência de Deus e do homem que pretendeu substituí-lo pela razão e pela ciência ( moderno ), cabe "à criança" que brinca fazer entrar os incompossíveis no mesmo mundo estilhaçado sem saber ou poder escolher a melhor combinação.

Considero que esta imagem forte de Deleuze (1968) remete à passagem traumática do moderno para o contemporâneo, onde o Acontecimento da morte de Deus lança o homem na imanência, em estado de desamparo infantil7. É a este desamparo que Freud dará em "O futuro de uma ilusão" (1927) o sentido de uma nostalgia do pai , origem de todo sentimento religioso. Segundo ele, no mesmo ensaio, Deus é uma superação do pai assassinado. Anteriormente, em "Totem e Tabu" (1912), o desamparo é um dos sentidos da força que unirá os irmãos numa coalizão após assassinarem o pai, fundando a civilização humana numa moral religiosa onde os sentimentos de culpa e posteriormente de amor teriam por base este ato sagrado de sacrifício do pai.

Esta "criança" cujo mundo está estilhaçado brinca no labirinto do tempo. Lá é possível deleitar-se indefinida e acriticamente na imanência, que é, a meu ver, uma forma de viver a paixão (re)-constitutiva do eu, a que Nietzsche faz referência, e a qual eu atribuí um sentido narcísico e individualista. Nela, "a criança" desvia sua face ( ou seu olhar ) do outro homem e do mundo como experiência trágica, à moda de um deus indiferente e ausente que se retirou categoricamente, "desviando dos homens o seu rosto"( Holderlin, Elegia Pão e Vinho ).

Outros possíveis tem este homem-criança, como veremos adiante. Um deles é não viver acríticamente esta imanência, afastando-se do outro e do mundo como experiência trágica compartilhada. Esta experiência apela insistentemente para uma ética que, à luz de Totem e Tabu, seria capaz de transformar o horror civilizatório (o assassinato do pai da horda ) numa cultura do sublime. Isto é, uma cultura em que a experiência trágica do assassinato do pai/morte de Deus possa ser compartilhada pela união dos irmãos em torno de interesses comuns, e não de uma perversão( "père-version", como a versão de um pai tirânico que desvia para si gozos e riquezas).

Quais seriam então os efeitos de um trauma da morte de Deus que não foi elaborado, não pensado, apenas vivido na manutenção ilimitada do excesso, justo num tempo de infinitos possíveis? Neste início de elaboração de uma questão como esta, ocorre-me pensar em um retorno do sagrado sob formas espúrias ou degradadas, ou, minimamente sob uma forma acrítica como a do homem-criança, radicalmente desamparado, mas que se compraz indefinidamente em seu mergulho na imanência ( como repetição não-criativa, repetição do mesmo que aqui pode se chamar de indiferenciação ou mergulho na pulsão de morte). Neste momento, apresento brevemente algumas outras formas deste possível retorno degradado do sagrado, que se expressa por uma nostalgia do divino, em oposição ao que seria uma saída criativa para o eterno retorno do sagrado do extraordinário, isto é, como potência de criação.

A nostalgia correria por conta da ausência do sagrado no mundo profano da contemporaneidade (seja por recalcamento, recusa ou rejeição) como uma das referências em um mundo que sempre será múltiplo, queiram ou não os pensadores da identidade. Entretanto, esta nostalgia não é da ordem da ausência de um nome, do simbólico, mas de uma concretude que repete as ações, os poderes ou as características do sagrado, sem tê-lo como referência. É então uma repetição acéfala, automática, interminável (pois que está voltada sobre si mesma) das características do sagrado como o desejo de continuidade, o excesso, a violência. Elas estariam subjacentes , por exemplo, na globalização, na destruição do excesso da produção, nas guerras, no consumismo, nas culturas intensamente informatizadas, nas religiosidades fanáticas, nas relações híbridas entre religião, mídia e moral. Ou seja, nas formas de viver o excesso, a violência do sagrado, que foi recusado como impuro, como uma contaminação indesejável pelo mundo profano, e que volta de forma virulenta, insidiosa ou degradada. A violência nesses casos é muito maior do que a do sagrado arcaico que levaria em consideração a morte, o sacrifício de Deus, estreitando o laço social em torno deste ato. Mas disto o mundo profano não quer saber. Encontramos, em contrapartida, no mito trágico freudiano "Totem e Tabu", no sagrado arcaico propriamente dito, este insuportável para as consciências clássicas e para o mundo profano em geral que é o assassinato do Urvater ( pai originário ou primevo) que Freud situa na origem imbricada da religião e da moral humana. Na verdade, não é o mito em si (a historieta) que é insuportável, ou indigno de crédito para muitos estudiosos encharcados de positivismo e com uma imaginação incapaz de alçar vôos; o insuportável é o que Freud coloca miticamente nas origens da sociedade humana : o encontro angustiado de dois mundos, o sagrado e o profano, isto é, o mundo do excesso, da continuidade e o mundo dos interditos, da necessidade. É nesta confluência angustiada, marcada pelo caos das pulsões (o real para Freud) e a necessidade de ordem, que Freud encontra as condições para o vínculo social em torno do assassinato do pai.

É clara a estratégia de dominação do mundo profano (do trabalho, do consumo, da ciência, de eficácia tecnológica) para que a violência do mundo sagrado em geral fique obscurecida das consciências. Tenha ela o nome de capitalismo ou de moralismo religioso substitutivo das novas tecnologias que substituem "God for dollars", no caso do primeiro, e "dollars for God", no segundo. Ou seja, em última instância, uma estratégia que visa a indiferenciação.

Disto é exemplar a conexão de todos os meios numa rede única (nosso megahíbrido), constituindo uma utopia perversa no sentido que recusa o mundo sagrado como origem do laço social e coloca em seu lugar, como um fetiche, o capital "flexível" (este, por sua vez, gerador de inúmeras corrosões9). Passa a ser ele então o agente dos "laços sociais" que se constituem a partir desta nova boca de Deus, segundo a expressão de Muniz-Sodré, encarregada de ditar as novas formas de agir, de pensar, de incluir ou excluir (novas formas de assassinar). Uma espécie de "contrato totêmico" entre a tribo universal e a dita nova boca de Deus, erigida no lugar do desamparo, para prover o homem contemporâneo de "excesso" de informação, prestar assistência e todo tipo de serviço em troca de um culto e de uma submissão à idéia da rede (retorno degradado do desejo de continuidade, de fluxo, de excesso). Tal e qual nos primórdios da civilização humana, em que o desamparo reinante revestiu-se de formas morais e religiosas radicais e primitivas, nosso megahíbrido comunicacional incorpora essas características, de forma asséptica (e até ascética) dada a extrema sofisticação dos aparatos envolvidos e do caráter volátil de seu agente.

O eterno-retorno do sagrado: nostalgia e/ou potência de criação

Assim, a questão do trauma da morte de Deus nos remete a uma problemática que envolve o excesso, o sagrado e os interditos, temas brilhantemente desenvolvidos por George Bataille em "L'érotisme" e "Théorie de la religion". Desenvolvi estes aspectos em "A festa tecnológica da contemporaneidade", iniciando a elaboração do tema de minha tese de doutorado que é o paradoxo da prótese na cultura comunicacional contemporânea: nostalgia do divino ou potência de criação? Evidentemente, não se trata de alternativas excludentes, mas de uma problematização.

A partir desta elaboração em curso, a nostalgia do divino na contemporaneidade estaria referida a um desejo (inconsciente) de continuidade, desejo de sagrado, de excesso, mas que não se realiza na forma como já se realizou (ou se realiza ainda em certas religiões e sociedades) no sagrado arcaico, na violência, nos ritos sacrificiais e nas celebrações, pois este sagrado (arcaico) foi recusado ou excluído pelo mundo profano, como vimos. A este sagrado arcaico faz alusão a formulação trágica de Hölderlin sobre a retirada categórica dos deuses, consumada na sentença nietzscheana da morte de Deus e na rachadura prolongada do eu, assim como as formulações de Freud em "Totem e tabu" e sobre a divisão do eu como ferida / dilaceramento que se acentua com o tempo. Isto que se apresenta como um trauma para a contemporaneidade, com suas intensidades desviadas de uma ritualização arcaica (no máximo uma simbolização empreendida por certas religiões) exige, portanto, pensamento, elaboração, luto, para que a estas intensidades sejam dados outros destinos.

Assim, a potência de criação diria respeito, às realizações possíveis em um mundo sem Deus, mas que significam uma afirmação do desamparo radical em que foi lançado o homem que guarda como referência a morte de Deus, ou seja, a perda das garantias. Ao meu ver, isto pressupõe elaboração, simbolização, luto, sendo portanto uma superação do trauma.

Luto e festa

Em "A festa tecnológica da contemporaneidade" está presente uma interrogação sobre as relações entre nostalgia do divino e potência de criação, fazendo o encontro angustiado dos dois mundos habitados simultaneamente pelo homem, embora não com a mesma intensidade, pois o equilíbrio e a harmonia seriam impossíveis. É em Freud que encontro subsídios para recusar qualquer ilusão acerca de uma transformação total das intensidades do mundo sagrado (do arcaico, mundo Ür) em potência de criação, pois não estamos tecnologicamente equipados para isto no que diz respeito ao nosso psiquismo. Restando-nos sempre um nível de excesso que será vivido sob a forma de encontro (desencontro) angustiado entre entre os dois mundos (o mal-estar) ou retornará sob uma forma espúria, inevitável, como sintoma. Assim, não excluir a forma espúria (inevitável), é não se identificar com o mundo profano que exclui, por sua vez, o sagrado. Resta-nos acolher mais esta forma como uma das formas do múltiplo, sem temer a indiferenciação. O fascínio é função da falta de referência.

Em "Théorie de la religion" diz Bataille que a festa tem lugar para entregar o homem à imanência, mas que a condição deste retorno é uma obscuridade da consciência. Em outro momento do mesmo livro, dirá que a festa é a união entre o mundo profano ( descontínuo, do trabalho, dos interditos ) e o mundo sagrado ( do contínuo, do excesso, da violência, das transgressões, e do sacrifício ) que constituem simultaneamente a sociedade humana. No tempo profano do trabalho, a sociedade acumula recursos, a produção fica reduzida à quantidade necessária ao consumo. Já o tempo sagrado é o tempo da festa, compreendendo por ela a permissão de realizar o que é habitualmente proibido, e às vezes envolvendo até mesmo a exigência de sua realização. No tempo sagrado da festa, os participantes consomem desmesuradamente os recursos acumulados durante o tempo do trabalho. Parece-me possível a idéia de que a Modernidade tenha encarnado preponderantemente este tempo do trabalho, nas figuras da ciência, da técnica, da indústria, seguida pelo tempo do consumo desenfreado da era tecnológica, tempo da dilapidação, da festa tecnológica da contemporaneidade. Entre esses dois tempos, a morte de Deus.

Um pouco antes, eu havia citado Bataille ao dizer que a festa acontece para entregar o homem à imanência e que a condição deste retorno é a obscuridade da consciência. Ou seja, não tomar a "festa" pelo que ela realmente é. Entretanto a festa não é um verdadeiro retorno à imanência mas uma tentativa de conciliação, cheia de angústia, entre as necessidades incompatíveis entre dois mundos.

Freud também se refere a esta dualidade em "Para introduzir o narcisismo", dizendo que o homem leva uma dupla existência: uma em que ele é um fim em si ( fazendo assim parte do mundo profano, descontínuo ), outra em que ele é um elo de uma cadeia, e que está a serviço dela à sua revelia ( mundo sagrado, da continuidade ).

Entretanto é em "Totem e Tabu", onde ele explicitamente se refere à morte de Deus, que falará também de uma "festa", o banquete totêmico. Como veremos, ele diz no final do seu mito trágico que a psicanálise lhe teria permitido desvendar o sentido do sacrifício do animal totêmico durante o banquete. Trata-se, diz ele, da substituição do pai violento e tirânico pelo animal totêmico, que é adorado como um deus. O totemismo teria funcionado então como recalque do parricídio originário, constituindo o início da moral humana que tem um vinculo estreito com o sagrado. O pai violento e tirânico constituía o modelo que os irmãos invejavam e temiam. Depois de o assassinarem, devoraram-no, identificando-se com ele e entre si, ao apropriarem-se de uma parte de sua força. O banquete totêmico, talvez a primeira festa da humanidade, seria a comemoração deste ato e a celebração do triunfo dos filhos sobre o pai depois de um tempo de luto. Ele observa que durante o banquete ficam suspensos os interditos, pressupondo a realização de um luto num tempo entre o assassinato e a festa. Esta idéia é corroborada por ele em "Luto e Melancolia" ( escrito dois anos depois de "Totem e Tabu" ) ao dizer que "ao final de um trabalho de luto fica o ego livre de toda a inibição". Neste texto, o luto é a reação à perda de um ser amado ou de uma abstração equivalente: ideais, a pátria, a liberdade. Seria talvez possível pensar em "Luto e Melancolia" como uma elegia em prosa de "Totem e Tabu". Este ensaio que recria para a contemporaneidade, ao meu ver, através do assassinato do pai da horda, a cena originária da morte de Deus e da constituição de uma civilização humana desde sempre lançada no desamparo, na falta de garantias e no mal-estar, embora toda resistência do pensamento para admitir tal acontecimento a nível das idéias, constituindo incansavelmente estratégias para anulá-lo ou ocultá-lo (como a metafísica e as religiões, com exceção das cristãs). É essa talvez a verdade trágica de "Totem e Tabu", de "O futuro de uma ilusão", de "O mal-estar na civilização" e de "Moisés e o monoteísmo", que pretendo ver com mais detalhes em outro momento.

Minha intenção ao aproximar a festa tecnológica da contemporaneidade ao banquete totêmico de "Totem e Tabu" é de criar condições comuns para trabalhar a suspensão de um interdito em especial: o da imagem ( passando à imagem liberada, levada ao nível de festa}.

Minha hipótese é que Freud não tenha desviado seu olhar do trauma contemporâneo da morte de Deus, embrenhando-se na temática trágica e na do sagrado que, em sua obra, se relaciona com o arcaico ou o originário. Através de sua escolha por Édipo, herói trágico parricida, e da construção em "Totem e tabu" da figura do Ürvater (o pai originário assassinado), antepassado de Deus (em "O futuro de uma ilusão"), Freud desrecalca o desejo milenar de parricídio e a ambivalência do homem diante de uma de suas criações mais caras, a idéia de Deus.

A questão do pai transpassa toda sua obra, construída por enunciados heterogêneos de ordem teórica, técnica, clínica e da interpretação da cultura. Na sua clínica da neurose obsessiva, por exemplo, se destacam as relações ambivalentes com o pai e o sagrado. Freud interpreta as idéias obsessivas como deformações das recriminações inconscientes que o sujeito se atribui por sua relação ambivalente com o pai (que, nesta neurose, atinge proporções inusitadas). Nos casos mais graves, o quadro é dominado por atos compulsivos que Freud chama de rituais e cujo objetivo é aplacar angústia ou expiar uma culpa inconsciente pelo desejo de morte do pai, afinal um dos interditos que marcam a constituição da sociedade humana. Só que o obsessivo não sabe disso e cria para si outras proibições, aparentemente sem sentido. A falta de sentido ou fundamento aparente cria a analogia entre tabu e idéia obsessiva. Trata-se do vínculo da proibição com o sagrado, segundo as elaborações de Freud em "Totem e tabu" e posteriormente em "Moisés e monoteísmo", onde ele vincula a origem da moral à religião: "O sagrado é algo que, além do alto valor que possui para um povo, possui uma inegável vinculação com o religioso". A que estaria ligado este caráter sagrado? Freud nos diz que ele se liga a um vínculo religioso, à vontade do pai assassinado. Estão aqui apenas alguns subsídios para entender as freqüentes ligações feitas por Freud entre práticas religiosas e atos obsessivos, ao ponto de chamar a neurose obsessiva de religião da humanidade. Como já me referi anteriormente, a questão do pai é o carro-chefe de um complexo que envolve a idéia de Deus, ideais, fundamentos, referência, atrelado à idéia da garantia.

Freud, como atheos ( no sentido grego do termo, captado por Hölderlin, "do abandonado pelos deuses ) ou como filho do Acontecimento da morte de Deus, elabora um luto da quebra deste complexo (da qual ele participou intensamente), criando uma nova referência para os representantes outrora sustentados pela idéia de Deus. Seu pensamento pôde "se curvar ao vento da coisa", na expressão de Heidegger, a coisa como o real do pathos ( das intensidades que nos habitam e nos excedem, tornando-nos desamparados em nossa própria casa, em nosso eu, em nosso corpo ). A este real do pathos, que é trágico e é também freudiano, Freud deu o nome de pulsão (Eros e Tanathos). O pensamento freudiano pôde curvar-se a um real não mais garantido por Deus, nem por nenhuma exterioridade, recolhendo-o na prática clínica, onde se constituiu o saber-fazer técnico da psicanálise, que Freud fundiu com um saber teórico sempre em constituição por poder, como Empédocles, se espantar diante do novo, do tumulto do múltiplo. É então um logos que Freud "elevou à dignidade de coisa", como diz Lacan a propósito da sublimação em seu seminário " A ética da psicanálise", sem que haja nesta formulação nenhuma transcendência, mas apenas uma alusão que faço ao pensamento freudiano como sendo um logos que se consumou na sua relação com o real. Para a psicanálise, sempre presente.

Este real que Freud cria para a psicanálise, e que servirá como nova referência para os outros componentes do seu complexo, é uma constant Kraft (pressão ou força constante da pulsão, o real propriamente da pulsão) que investirá a totalidade do pensamento (consciente, pre-consciente, inconsciente), dotando-o sempre de presença (já que tem efeitos) , mesmo que esteja ausente da consciência. Segundo mais uma subversão realizada por Freud (em "O ego e o id"), a consciência é apenas uma qualidade do psíquico, destronando-a assim de sua relação hegemônica com o real, onde ela havia chegado a se constituir como um dos seus nomes .

Estas considerações permitem considerar o pensamento inconsciente como uma virtualização do real, ou seja, um virtual que é real embora se expresse pela ausência que é ausência de consciência e não do real, já que, como me referi anteriormente, a pulsão investe a totalidade do pensamento. Assim, pode-se dizer que a pulsão é o real que não se ausenta, mas que se retrai, se oculta, sob a forma de pensamento inconsciente, o que não significa estar ausente, pois nesta retração existe presença. Haja visto os efeitos afirmados por Freud das representações inconscientes na produção dos sintomas.

Isto nos leva a outro modelo que entrou em crise, o da representação signica que leva em conta a substituição de um real ausente por outra coisa (um signo), consagrando a ausência. Freud também dá à representação sua nova referência, o real da pulsão. É instigante pensar na audácia desse homem que cria real em cima da pulsão, ou seja, em cima de um conceito limite entre o psíquico e o somático (sua resposta ao dualismo corpo e alma)|. Enfim, cria real sobre um não-ser de máxima potência que ele, de quebra, ainda teoriza como podendo ser potência determinada (fixada à representação, responsável pelo determinismo psíquico) ou indeterminada (força pulsional autônoma, pura intensidade pulsional, responsável pelo indeterminismo psíquico). A modelização freudiana da representação leva em conta o real, este real da pulsão. Assim, na criação da Vorstellungsrepräesentanz (representantes-representação), Freud inova ao dotar um dos seus dois componentes de real, de força pulsional, de Affekt: é o representante afetivo da pulsão no psiquismo. Ele será responsável pela vida ou vivacidade (ou ainda valor psíquico) daquela representação. Contrariamente à representação clássica, a representação freudiana consagra a presença do real; a segunda inovação (subversiva também) quanto ao conceito freudiano de representação diz respeito ao componente ou representante ideacional (ideativo). A famosa idéia, tão transcendente e espiritualizada é por Freud transformada estrategicamente em imagem, numa reabilitação (ou consagração) do mundo do imaginário em relação ao mundo das idéias (de um pensamento sem imagem). Pois, a Vörstellung diz respeito ao elemento imaginário do objeto, a uma composição imaginária que forma o que Lacan chamou de "a substância da aparência", entendendo-se substância como a decepção fundamental com que é marcada toda aparição. A Vorstellung é o que se constitui ao redor da coisa (Ding), como aparição, como fantasma. Estas representações imagéticas não teriam validade para a consciência se não houvesse a mediação (simbólica) das palavras no pre-consciente (articulação de Sachevorstellung com Vortvorstellung).

Correlativamente a não abrir mão do real (da pulsão) como referência, Freud cria uma concepção psicanalítica para a verdade, muito longe da verdade como adequação, e que ele chama de realidade psíquica (Realität), por oposição à realidade material ou do mundo externo (Wirklichkeit). Esta categoria psicanalítica, que entrelaça realidade e verdade como pertencentes a um sujeito singular e não a universais, teve sua elaboração inicial na descoberta freudiana no final do século XIX de que as histéricas que ele tratava em seu consultório não tinham sido seduzidas na realidade por um pai perverso, mas que sua neurose havia sido desencadeada por um elemento imaginário, uma fantasia de sedução que possuía valor traumático e que dizia respeito a um desejo inconsciente.

É importante destacar esta categoria freudiana que se abre para receber o imaginário, a produção de fantasias como expressão da verdade inconsciente do sujeito, verdade do desejo. Ela o levou a suspender o julgamento de realidade (referido a uma realidade material), mas nem por isso foi igualada a todo o campo do subjetivo, do psicológico10 , dando a esta realidade psíquica a consistência de um núcleo heterogêneo, duro, real, no campo do subjetivo. Haveria, assim, segundo Freud, três tipos de realidade: a realidade material (mundo externo), a realidade dos pensamentos de ligação ou psicológico, e a realidade psíquica (que é a realidade do desejo inconsciente e de "sua expressão mais verdadeira", a fantasia). É então, uma categoria interessante, que deve sua ambigüidade ao fato de ser estruturada entre real e imaginário, sendo responsável por uma frase famosa: "os histéricos sofrem de reminiscências", onde podemos reconhecer a presença da fantasia entrelaçada ao pathos (real) dos histéricos.

Outra afirmação, desta vez demolidora, na qual Freud quebra a verdade clássica, relacionando-a ao real da psicanálise, está em uma carta a Fliess, de 21/09/1897: "Não existe no inconsciente nenhum indício de realidade, de modo que é impossível distinguir a verdade da ficção investida de afeto". Evidentemente não se trata do afeto no sentido da afetividade, mas daquele componente da pulsão ao qual me referi um pouco antes, o Affekt, representante psíquico da força pulsional (da Dräng), ou seja, do real da pulsão.

Entretanto, esta categoria que envolve também a cena primária, (do coito parental) e as fantasias originárias (cena primária, castração, sedução) significou uma batalha para o próprio Freud e uma ambivalência quanto a atribuir apenas à realidade psíquica (à fantasia) o poder traumático. Freud, volta e meia, tenta encontrar a realidade material como fundamento para o trauma.

Em sua segunda tópica, Freud nos deixa pensar a verdade como estranheza, como o próprio do desejo inconsciente que é o mais íntimo e o mais estranho ao sujeito.

Por último, nesta tentativa de elencar algumas transgressões freudianas que se contextualizam na crise dos fundamentos, está a questão do arcaico originário. Desta vez, a narrativa de referência que está sob a mira de Freud, é a História e também a Origem.

O arcaico é um índice da origem, embora nunca se chegue a ela. É uma metáfora inesgotável que vive falando de seu objeto, ausente no tempo. Ele designa este ponto de proximidade máxima da origem, evocando um começo, mas revelando sua ausência. Sua função é articular real e interdito, através da cena, da fantasia, da imagem investida pela força pulsional. Na obra freudiana, ele se apresenta com o prefixo Ür (originário) e caracterizará, além das cenas e fantasias originárias, o pai originário e as pulsões (Ürtriebe), falando de um tempo do "antes", e um tempo mítico, anterior a uma organização significante, um tempo antes da lei.

Assoun, em "Logos e ananké", diz que o arcaico é um índice que aponta a função da origem. Qual seria essa função? Na última linha de "Totem e tabu", diz Freud que "no princípio era o ato". Em "Freud, o pensamento e a diferença"11, desenvolvi aspectos em torno da construção de "Totem e tabu". Neste estudo, ao colocar o assassinato do pai da ordem na origem mítica de civilização, Freud estaria dando a esta origem a função de "elevar uma primeira vez à enésima potência da repetição", segundo a expressão de Deleuze em "Diferença e repetição". Como diz Péguy, citado por Deleuze, para ilustrar esta idéia, "não é a festa do 14 de julho que comemora ou representa a tomada da Bastilha, mas é a tomada da Bastilha que festeja e repete de antemão todos os 14 de julho".

É segundo esta lógica da repetição, construída por Freud e reapresentada brilhantemente por Deleuze, que articulo a morte de Deus (em suas várias formulações)12 ao assassinato do pai da horda. Segundo esta lógica, a morte de Deus é repetição, inscrita neste mitema criado por Freud, e que expressa e relança às consciências o desejo multimilenar de parricídio e a ambivalência do homem em relação às idéias que possam encarnar seu desejo de garantia.

Assim, em síntese (pois não tenho horror às sínteses nem às metáforas), não é a festa tecnológica da contemporaneidade que comemora ou representa a morte de Deus (com a queda correlativa, depois de um tempo de luto, de um dos interditos mais aferrados a esta idéia, o interdito da imagem) mas é a morte de Deus, como repetição ou máscara do acontecimento originário construído por Freud, que festeja e repete de antemão todas as suas celebrações. Do que resulta pensar as formulações desta morte como momentos trágicos, de extrema fecundidade, ao recolocarem o homem diante do seu desejo (ambivalente) de separação do divino (da idéia de um Deus que encarnasse todas as garantias).

É interessante lembrar ainda uma passagem de "Totem e tabú", na qual Freud, referindo-se à religião totêmica, diz que ela não envolve apenas arrependimento e o desejo de reconciliação com o pai, mas serve também para conservar a recordação do triunfo sobre ele. A satisfação desse desejo parece ser a base do banquete totêmico: "festa comemorativa durante a qual ficam levantadas todas as proibições impostas pela obediência retrospectiva ao pai morto, e converte em dever a reprodução do parricídio sob a forma de sacrifício do animal totêmico, sempre que os benefícios adquiridos pelo crime, a assimilação e a incorporação das qualidades do pai ameaçam desaparecer".

É então uma provocação de minha parte sugerir que as formulações da morte de Deus tenham um sentido de parricídio , movimentos de uma sinfonia trágica, volta e meia repetida, e que termina em um acordo mais profundo com o sagrado, visando o restabelecimento da continuidade perdida e reencontrada por algum tempo na festa.

Então, mais que um desejo ambivalente da humanidade em relação ao pai e a sua superação na idéia de Deus, segundo Freud, trata-se a meu ver, de um desejo de continuidade, de excesso que se expressa em vários movimentos (momentos), e de formas diferentes (inclusive as degradadas). Assim, me parece que nostalgia do divino e potência de criação não são antitéticas, nem ao menos paradoxais. São movimentos que coexistem.

Entretanto, para se chegar a este vazio, que é paradoxalmente um tempo de excesso, guardando como referência a morte de Deus , foi preciso que um Freud atheos se encarregasse de elaborar o trauma relativo a esta idéia, aqui compreendida como a declaração de falência de qualquer garantia. Ele inaugura , através da psicanálise, um tempo de trabalho de luto, ou seja, de um desligamento gradual e doloroso de todo investimento libidinal feito sobre a idéia de um pai protetor ou de qualquer figura substitutiva desta ilusão, seja ela a religião, a ciência, a técnica.

Seu trabalho consistiu também em promover ligações efetuadas, a partir de então, com novos objetos para o pensamento (como a idéia de um desamparo constitutivo), ou realizar transformações radicais em torno de antigos pontos de fixação do pensamento, como o real freudiano, criando uma nova referência para os fundamentos sustentados outrora pela idéia de Deus ou por seus equivalentes .Com isto fazendo emergir, de forma surpreendente, uma nova subjetividade em um mundo sem Deus.

Rio de Janeiro, junho de 2000

Glaucia Peixoto Dunley, psicanalista
professora da Universidade Veiga de Almeida
doutoranda da Escola de Comunicação e Cultura - UFRJ
E-mail glauciadunley@aol.com
Tel/Fax: (21)557-7184
Endereço: rua Pereira da Silva n.529 - Laranjeiras
cep 22221-140, Rio de Janeiro, Brasil

Notas e referências
1 - Deleuze, G., Diferença e repetição, Rio de Janeiro, Graal, 1968.
2 - Höderlin, F., Reflexões - Tragédia e modernidade, org. F. Dastur, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994.
3 - Dunley, G., "Algumas observações sobre o tempo e o trágico em Hölderlin", trabalho de fim de curso de doutorado, primeiro sem. de 1999, Escola de Comunicação e Cultura, UFRJ.
4 - Dunley, G., O silêncio da Acrópole - uma reflexão sobre o pensamento trágico em Freud, tese de mestrado, Programa de pós-graduação em Teoria Psicanalítica, UFRJ, 1997, em publicação em 2000.
5 - As lógicas modernas de Frege e Piano, até Lukaziecwicz, Akerman ou Church envolvem na dimensão 0-1 da lógica binária, servindo à linguagem das ciências positivas e exatas e se traduzindo por formalizações mais isomorfas do funcionamento da linguagem, onde o Um é o limite, a lei, a definição, o conceito, a regra. Já a lógica ternária se estende no intervalo 0-2. É uma lógica do múltiplo, da ambivalência ou polivalência do discurso, que leva em conta o ato criativo transgressor. É a lógica do discurso poético e das formações do inconsciente. Kristeva, J., Bakhtine, "Le mot, le dialogue e le roman", Critique, 23 (438-465), 1967; apud Vital Brasil, H., "O sujeito da dúvida e a retórica do inconsciente," Rio de Janeiro, Imago, 1998
6 - Pelbart, P., O tempo não reconciliado, São Paulo, Perspectiva, 1968
7 - O estado de desamparo, para Freud, é correlativo da total dependência da criança à mãe, implicando a onipotência desta última. No quadro da segunda teoria da angústia, o estado de desamparo é o protótipo da situação traumática em que houve separação ou perda, acarretando um aumento progressivo da tensão, ao ponto do indivíduo se ver incapaz de dominar esse excesso de excitação, sendo submergido por ela (Real Angst). Isto é, para Freud, em "Inibição - sintoma e angústia", o maior perigo para o eu.
8 - Como parece ser a função das elites que fomentam a globalização, que pode ser considerada como uma das formas degradadas ou espúrias de retorno do sagrado.
9 - Sennet, R., A corrosão do caráter, Rio de Janeiro, Record, 1999
10 - Laplanche, J., Pontalis, J.B., Fantasia originária, fantasias das origens, origens das fantasias, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998
11 - Dunley, G., "Freud, o pensamento e a diferença", in Cadernos do Tempo Psicanalítico, num. 2, pub. Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, Rio de Janeiro, 1996; in Boletim de Novidades, Poligonal, ano X, num. 101, São Paulo, set. 1997
12 - Pelo menos, no teatro trágico de Sófocles, em Hölderlin e em Nietzsche.

Proposição para os Estados Gerais da Psicanálise, Paris, Sorbonne, 8-11 Julho de 2000.