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A letra comemora um legado da lei?
Willis Santiago Guerra Filho*
A palavra "letra" é utilizada aqui no sentido consagrado por Jacques Lacan em seus "Escritos", enquanto "la lettre". Embora a palavra aponte para algo da ordem da escritura, filológico, o sentido que se lhe atribui aqui é melhor captado situando-a ao nível da inscrição ou "inscritura", o qual se verifica mesmo em sociedades iletradas, pois, como se defende no presente trabalho, é a letra, "la lettre", que constitui primariamente a subjetividade do ser de linguagem que somos nós.
O tema que aqui nos propomos a desenvolver, sobrescrito de forma interrogativa, há de ser, em primeiro lugar, interrogado ele próprio. Primeiramente, em que sentido poderia ser "la lettre" um legado, uma herança, que nos permite comemorar e "co-memoriar" os mortos que nos deram a vida? E, por outro lado, em que sentido ela pode não ser esta herança? Sim, porque se há dúvida é porque há um dubio, dupla possibilidade, de que "la lettre" seja tal herança e, também, que ela não seja - bem como que ela, ao mesmo tempo, seja e não seja motivo de comemoração... Tudo vai depender dos sentidos que atribuímos a "la lettre", a "herança" e "comemoração".
"Herança", por exemplo, pode ter um sentido biológico, genético, que aponta para algo da ordem do real. Herdaríamos, nesse sentido, "la lettre", quando nossos pais nos transmitem a bagagem genética que nos constituiria, enquanto membro de determinada espécie biológica. "La lettre" seria, então, uma das letras de nosso código genético? Há pesquisas que apontam nesse sentido, em que "la lettre" assume um caráter filogenético. A própria mídia já anunciou tais desenvolvimentos, do que se poderia chamar "psicobiolingüística". Esse seria um ramo da lingüística que teria por fundador Noam Chomsky, enquanto seu colega de departamento - e, portanto, seu êmulo - no M.I.T., Steven Pinker seria o principal representante na atualidade. Suas descobertas, anunciadas no livro de 1994, "O Instinto da Linguagem", de grande sucesso, conforme veiculado em princípio de 1997 no "Libération" e na "Folha de São Paulo" (caderno "Mais" de 5.1.97, p. 14), indicam ser inata ao ser humano a capacidade de falar, i.e., de "dominar" uma (ou mais) linguagem(ns), possuir o que Lacan chama, glamorosamente, "lalangue" - como quando referimos a uma grande diva do cinema, em italiano chamando-a "la Cardinale" -, ou, simplesmente, expressar-se. Isso porque nós disporíamos de uma aquisição evolutiva filogenética, uma estrutura mental que nos leva a procurar instintivamente as regras que dão sentido à massa sonora a que estamos expostos desde sempre, no contato com nossos pais e demais seres falantes que nos cercam. Nascemos, então, com um comando gerado na luta da espécie para sobreviver, que nos permite - e obriga a - utilizar "lalangue", como (mais) um artefato. Mas "lalangue" nem "la lettre" - ou "lalettre" -, que não são o mesmo, também não são apenas meio de satisfação de necessidades, pois resultam já de - e em - uma abertura para uma dimensão além, tão própria do humano - portanto, nada "sobre-humana" ou "sobrenatural" -, que é aquela do desejo, insaciável, do gozo .
"La lettre" não teria, em primeiro lugar, um sentido filogenético, mas sim, filológico. Ela é, desde sempre, como defende Derrida em sua "Gramatologia", escritura e, antes disso, inscrição, "inscritura", marcas como as que nossos antepassados mais remotos deixaram em paredes de cavernas onde co-habitaram, as quais lhes permite fixar acontecimentos do passado, comemorá-los, projetando-se para além da dimensão natural, na dimensão temporal; marcas que lhes re-(a)presentavam uns para os outros, às quais associaram certos sons, fixando-os, e atribuindo, os sons e suas marcas, aos sujeitos falantes, dando-lhes nomes, como às coisas (cf. Hobbes, "De natura humana", cap. V). E esses nomes, se muitas vezes identificavam os sujeitos com as coisas, os diferenciava entre si, ao mesmo tempo em que estabelecia ligações entre eles, por sua "nomeação": a filiação, expressa em nomes e sobre-nomes. Eis que assim, do filológico somos levados a pensar o "filialógico", como o que há de mais fundamental: literalmente, a origem.
Ao nível "filialógico", "la lettre" é uma herança, na medida em que ela é o nome próprio, transmitido pelos pais e, principalmente, pelo pai e sua lei, o "nome-do-pai", pois é em relação a ele, o pai, à diferença da mãe, que a filiação não é evidente, donde precisarmos constituir com ele um vínculo filológico, ou melhor, "filialógico", e através dele com a mãe, agora um outro vínculo, e assim por diante. Não é (da constituição) desse tipo de vínculo que em geral se trata na clínica psicanalítica? E não é para garanti-lo que se tem, por exemplo, algo como o direito e a Lei?
"Herança", não esqueçamos, no plano simbólico é noção jurídica, e para o direito ela é o patrimônio que recebemos após a morte de nossos pais ou parentes, por transmissão legal, o legado, que a eles pertencia. "La lettre", nesse sentido, não é herdada, pois a condição de a recebermos não é que aqueles que nos geraram morram, mas sim, que nós vivamos. Ao mesmo tempo, como "la lettre" foi transmitida aos que nos a transmitem por quem não vive mais, ela pode ser, também, nesse sentido, uma herança, uma marca de mortos que representa a morte aos que nascem para viver como seres temporais e linguageiros.
E se biologicamente já faz tanto tempo que isso se reproduz, a cada nascimento de mais um membro da espécie humana, ao ponto de já estar pré-(ins)crito geneticamente a ordem que permite/obriga o recém-nascido a tornar-se ser falante, "falasser", essa ordem produziu-se inicialmente pelas marcas que fizeram os primeiros seres humanos sobre si mesmos, instaurando a cisão definitiva com o natural - e o real. Aí, desde a (nossa) origem já se tinham produzido as estruturas que vão gerar a escrita, esta técnica contábil, surgida com a passagem das comunidades arquetípicas, igualitárias, às sociedades hierarquizadas, diferenciadoras.
O caráter em si mesmo repressivo da escritura, especialmente aquela fonética, com alfabeto, é discutido por Derrida em "Da Gramatologia", contestando os "Tristes Trópicos" de Lévi-Strauss, na esteira de J.-J. Rousseau: "Mais racional, mais exata, mais precisa, mais clara, a escritura da voz corresponde a uma melhor polícia. Mas, na medida em que ela se apaga melhor do que qualquer outra diante da presença possível da voz, ela se representa melhor e lhe permite ausentar-se com o mínimo de danos.(...) Pois a sua racionalidade a afasta da paixão e do canto, isto é, da origem viva da linguagem.(...) Correspondendo a uma melhor organização das instituições sociais, também dá o meio de dispensar mais facilmente a presença soberana do povo reunido" (Derrida, "Gramatologia", trad. Renato Janine Ribeiro e Míriam Schneiderman, São Paulo: Perspectiva, 1973, pp. 368/369). A representação abstrata através da escrita é empregada na elaboração de normas jurídicas na forma de decretos redigidos por representantes políticos que "falam", i.e., escrevem, enquanto os representados "emudecem", i.e., lêem. Nessas condições, "o corpo político, como o corpo do homem, começa a morrer desde o nascimento, e traz, em si mesmo, as causas de sua destruição" (Rousseau, "Du contrat social", Livro II, cap. XI, apud Derrida, ob. cit., p. 363). É assim que podemos partir também de uma idéia, colhida em Derrida, que a foi recolher em Rousseau, no "Ensaio sobre a Origem das Línguas etc.", a qual iremos em seguida desenvolver, apresentando uma outra forma de situar a origem do que é mais propriamente humano, isto é, o social, o político, moral, jurídico etc. - em uma palavra o cultural ou simbólico - nas paixões, nos afetos, no corpo, enquanto corpo marcado pela diferença entre desejo (humano) e necessidade (animal), diferença instituída pela Lei, pela Letra.
A origem mais remota da sociedade, segundo Rousseau, não é jurídica, com o contrato social, tal como ele expõe em sua mais célebre obra - ou nos fez supor, com sua leitura. No "Ensaio sobre a Origem das Línguas, onde se trata da Melodia, e da Imitação musical", publicado postumamente, em 1781, e escrito após o "Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens" (1754) - cuja leitura pode desfazer outro engano muito difundido a respeito das idéias de Rousseau, a saber, que o homem no estado de natureza seria bom, quando na verdade dele não se poderia dizer que era nem bom, nem mau, pois não possuía, a rigor, uma consciência moral, tal como os animais -, antecipa-se, corretamente, a descoberta recente, de que a origem geográfica da espécie humana estaria situada em uma região quente, do hemisfério sul.
E Rousseau chega a essa conclusão por considerar que a humanidade surgiu em razão de contatos entre hominídeos onde mais escassa e necessária se tornou a água. Não foi, portanto, o fogo que fez surgir os homens, quando o domesticaram, nem o calor das fogueiras que nos forjou a consciência, mas sim o frescor das águas de rios e lagoas, com as quais se saciava o corpo por dentro e o acariciava por fora, fazendo acender um outro fogo, "um fogo sagrado que conduz ao fundo dos corações o primeiro sentimento de humanidade", e que depois nos atrairá para o fogo que aos outros animais assusta. E também em torno do fogo serão galvanizados os laços sociais que primeiro serão gerados na água, como a própria vida o foi. Mas agora deixemos com o próprio Rousseau a palavra:
"...nos lugares áridos, onde só os poços forneciam água, foi preciso reunir-se para cavá-los, ou pelo menos entrar em acordo sobre o seu uso. Terá sido esta a origem das sociedades e das línguas, nas regiões quentes.
Aí se formaram os primeiros laços entre as famílias, aí se deram os primeiros encontros entre os dois sexos. (...) Olhos acostumados aos mesmos objetos desde a infância aí começaram a ver outros, mais doces. (...) Atraíam-se gradativamente uns e outros; esforçando-se por se fazerem entender, aprenderam a explicar-se. Aí se fizeram as primeiras festas: (...) o prazer e o desejo, confundidos, faziam sentir-se juntos. Tal foi, enfim, o verdadeiro berço dos povos, e do puro cristal das fontes brotaram os primeiros fogos do amor" (cap. IX).
Eis que a origem de tudo o que nos diz respeito mais de perto, enquanto humanos, é a festa, a comemoração. Note-se como foi no encontro com desconhecidos e desconhecidas que a necessidade carnal se tornou paixão, a vontade se tornou desejo, e nosso corpo adquiriu consciência, consciência de que não é apenas um corpo, carne, mas um local de prazer, de onde se fala para obtê-lo. Seria a partir desse encontro, então, que assim como a carne crua passou a ser desagradável, após comê-la assada ou cozida, também o sexo com os iguais e conhecidos do núcleo familiar originário se tornou, em um primeiro momento, desinteressante, e, em seguida, proibido. Aqui estamos diante de uma possibilidade de surgimento da "primeira Lei", aquela que Lévi-Strauss considera, a um só tempo, natural e social (cf. "Les structures élémentaires de la parenté", Paris: P.U.F., 1949, p. 38 ss.), e que para Freud nos constitui propriamente como humanos, isto é, a proibição do incesto - especialmente, com a mãe -, conforme o mito concebido por este último, para figurar o surgimento de tudo o mais que é da ordem da cultura, do propriamente humano, do simbólico, o mito do assassinato do pai primevo, seguido do banquete totêmico - também uma festa -, que seria, no dizer de Lacan, "talvez o único mito de que a época moderna tenha sido capaz (...), mito de um tempo para o qual Deus está morto" (cf. "A Ética da Psicanálise", trad. A. Quinet, 2a. ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1991, p. 216 e s.) De se notar, portanto, é a alusão de Freud ao banquete no qual os filhos comem a carne do pai morto, uma festa de natureza sacrificial, que René Girard, em "A Violência e o Sagrado" (trad. Martha C. Gambini, São Paulo: Paz e Terra/EDUNESP, 1990), irá situar na origem da religião e de toda sociedade - esta pressupondo a primeira -, enquanto excesso permitido e violação ritualizada de proibições, exceções que garantem a persistência das regras e da ordem social, da Lei.
Já o jurista francês Jean Carbonnier (em "Derecho Flexible. Para una sociología no rigurosa del Derecho", prólogo e trad. Luiz Diez-Picazo, Madri: Editorial Tecnos, 1974, p. 87 e seg.), refere a tese lévi-straussiana, mas não entende que haja nas sociedades ditas primitivas a consciência de um caráter especificamente jurídico da regra que torna "tabu" o incesto. Para os membros dessas sociedades, a coisa ou pessoa afetada pelo tabu se torna intocável, como se esse fosse "uma marca que se imprime no ser (e esta é provavelmente a etimologia da palavra). Se experimenta um distanciamento, uma repulsa, sobretudo física, frente ao ser marcado. E esta repulsa é algo vivido, e não simplesmente uma máxima pensada". Tal vivência se dá ao nível corporal.
O corpo sempre foi um lugar privilegiado na demonstração e revelação do poder social vigente, de "inscritura" da letra e da marca de que estamos aqui a tratar. São clássicas já as teses expostas pelo etnólogo Pierre Clastres em "La société contre l'État", quando considera os rituais de passagem e iniciação das sociedades pré-estatais, ditas "primitivas" (melhor: primevas) - que normalmente envolvem alguma forma de mutilação ou "investida" dolorosa sobre o corpo do seu paciente, tatuando-o, queimando-o, cortando-o -, como uma forma de inscrição no corpo de cada um das leis da comunidade. "La letra con sangre entra", costumavam dizer os pedagogos inquisitoriais na Espanha. As cicatrizes deixadas pela ação disciplinar são sinais exteriores da dor uma vez sofrida interiormente, marcas indeléveis também na memória, que se prestam à identificação mútua dos que a possuem como membros de um mesmo grupo social e fundamentalmente iguais entre si, sem que um seja melhor ou pior do que o outro, donde não poder nenhum pretender dominar o(s) outro(s).
Bem diferente, então, seriam as coisas em sociedades já mais "evoluídas", letradas, não mais igualitárias, e sim com predomínio de um pequeno grupo sobre os demais membros, onde já se tem a escritura das leis em rochas, tábuas, moedas e, finalmente, papel. Seja como for, fica registrada a origem violenta de toda proibição, tanto sagrada, como jurídica, que garante nossa vida em sociedade, sustentada pelo enfrentamento da morte, ou, na fórmula consagrada por R. Caillois ("El Hombre y lo Sagrado", 2ª ed., México: Fondo de Cultura Económica, 1996 [1939]: cap. V, p. 147 ss.), condição da vida e porta para a morte.
A eficácia de toda prática mágica e a autoridade das idéias que a fundamentam repousa sobre uma tradição sacramental (cf. Roger Caillois, ob. cit., p. 14), velada por fortes sanções sociais, de que certas palavras apropriadas e gestos específicos possuem um poder secreto sobre as coisas. Em obra bastante conhecida de filosofia da linguagem, Ogden e Richards explicam que "classificar as coisas é dar-lhes nomes e, para a magia, o nome de uma coisa ou grupo de coisas é a sua alma; conhecer os seus nomes é dispor de poder sobre as almas delas. Nada, seja humano ou sobre-humano, está acima do poder das palavras. A própria linguagem é um duplicado, uma alma-sombra, de toda a estrutura da realidade" (C. K. Ogden/I. A. Richards, "O Significado de Significado", Rio de Janeiro: Zahar, 1976, p. 51 s.). Daí, não é de estranhar o fato de o estudo da formação infantil do significado, assim como o do significado selvagem ou iletrado se depararem como uma mesma atitude mágica em relação às palavras e, por intermédio destas, em relação ao mundo (v. tb. B. Malinowski, "Os Argonautas do Pacífico Ocidental", col. Os Pensadores, Abril: São Paulo, 1979, p. 309 ss.).
A percepção da resistência do mundo em aceitar o seu domínio mágico, pela conseqüente falibilidade de seus rituais, atestada pelo malogro de experiências sucessivas, termina por acarretar a submissão às forças misteriosas e sobrenaturais que não consegue controlar - como escreveu Marcel Mauss, o homem então "après avoir été dieu, il a peuplé le monde de dieux" (Mauss/Hubert, "Esquisse d'une théorie générale de la magie", in: id., "Sociologie et Anthropologie", C. Lévi-Strauss (ed.), Paris: P.U.F., 1969 [1898], p. 11). Vale assinalar o significado político dessa submissão a entes superiores, donde resultaria a submissão também àqueles que se diziam capazes de entender e tratar com eles, isto é, as castas sacerdotais. Estas, como se sabe, fornecem o sustentáculo ideológico para a concentração do poder, inicialmente distribuído entre os membros do grupo social. A noção do supra ou sobrenatural, que é própria da religião, introduz a representação de forças que escapam ao poder humano, a serem controladas através de um relacionamento amistoso, proporcionado pelo culto com oferendas, sacrifícios e coisas do gênero. Assim, enquanto a magia envolve operações que se revestem de um caráter coercitivo para com os espíritos, forçados a agir no sentido indicado pelo praticante dos atos mágicos, na religião é estabelecida uma espécie de aliança para impedir a arbitrariedade na ação divina, revestindo o relacionamento entre homens e divindade de um caráter, por assim dizer, jurídico (cf. Marcel Mauss, "Pour une sociologie des religions archaïques", in: id. ib., p. 112).
Em seus estudos pioneiros na Polinésia, Malinowski chegou à conclusão de que toda a estrutura da sociedade trobiandense repousa sobre o princípio do estatuto jurídico (status), combinado com aquele outro princípio maior da organização jurídica dos povos originários ou primevos, que é o princípio da reciprocidade (cf., v.g., Malinowski, "Moeurs et Coutumes des Mélanésiens", Paris, 1933, p. 37). Pesquisas realizadas em épocas mais recentes, por cientistas de diferentes países, efetivamente corroboram esta tese, de que a organização social neste nível mais "primitivo'" se assenta sobre as pilastras da posição ocupada por razões hereditárias pelos indivíduos (status) e na forma econômico-jurídica dominada pela reciprocidade, o que permite uma classificação de tais sociedades como 'sociedades igualitárias', em oposição à nossa, que se poderia denominar 'sociedade competitiva'. Aqueles dois padrões estruturadores da vida social em estágio, por assim dizer, selvagem, fornecem os critérios determinantes das obrigações mútuas dos membros da comunidade, isto é, de suas 'relações jurídicas', e em ambos se pode identificar a presença catalisadora da magia.
A consideração deste mecanismo de troca recíproca conduz igualmente a especulações extremamente elucidativas quanto à formação das sociedades antípodas daquelas em que ele vigora - a sociedade competitiva -, onde a submissão e a propriedade privada aparecem de forma marcante. Assim, é possível imaginar que indivíduos com maior capacidade produtiva doassem uma quantidade cada vez maior de excedente, criando para quem recebia os 'presentes' a necessidade de praticamente trabalhar para os primeiros, no afã de conseguir manter em equilíbrio as suas relações, tornando-os cada vez mais abastados e poderosos. Até o ponto de que estes se sentiam capazes de desprezar as regras da reciprocidade, escravizando as pessoas, que a partir de então deviam lhe prestar reverência e obediência, pagando-lhe taxas e produzindo para satisfazer sua sede de acumulação e entesouramento, sem retribuição equânime. Eis que a reciprocidade, levada ao extremo, torna-se o seu contrário, ensejando a quebra da reciprocidade...
Um momento particularmente propício para a doação de presentes, donde decorreria, posteriormente, a "servidão" da maioria a uma minoria (inicialmente) mais pródiga, é precisamente aquele das festas e ritos sacrificiais, em que se troca presentes e faz oferendas, até a exaustão, como no potlach, num desperdício anti-econômico, se considerarmos apenas a economia dos bens. Ainda hoje, em nossas sociedades estatais, como nos evidencia o jurista, professor de direito medieval e psicanalista francês Pierre Legendre, o poder dos governantes se exerce sobre os governados seduzindo-os pela distribuição de "presentes", os cargos e serviços públicos em geral, pois tudo o que recebemos, mesmo tendo pago impostos, como não há uma relação direta entre o pagamento e o que é entregue em troca, será percebido (e recebido) como um presente: "Si nous recevons quelque chose, ce ne peut être qu'un cadeau" (P. Legendre, "Jouir du Pouvoir", Paris: Les Éditions de Minuit, 1976, p. 189, grifos do A., que continua nos seguintes termos: "Ce que l'Etat nous doit, ce sera donc toujours, malgré tout, une sort de cadeau. Le sujet-objet de l'amour d'Etat peut en chaque occasion se convaincre de ceci: je l'ai échappée belle, un peu de plus je n'avais rien, finalement j'ai de la chance, je reçois ma part d'amour").
Encaminhado-se para concluir, pode-se dizer que as reflexões aqui desenvolvidas revelam uma matriz comum às diversas formas de ordenação social da conduta humana, como são a política, o direito e a religião. Esta matriz comum se constitui historicamente, como parte de nossa filogênese, mas se reproduz também, com variações e regularidades, no processo de formação de cada sujeito, individualmente. A partir da constatação da imensa dificuldade do direito em regular, com as normas gerais e abstratas que são as leis, o comportamento cada vez mais diversificado dos membros de sociedades que se transformam com a velocidade das atuais, ditas "pós-modernas", vale recordar a origem violenta de toda proibição, tanto sagrada, como jurídica, que garante nossa vida em sociedade, sustentada pelo enfrentamento da morte. O incremento da violência na sociedade "pós-moderna" não poderá ser contida pelo reforço da proibição jurídica, mas antes por uma consideração das conseqüências psicológicas e sociais da secularização defendida pela ideologia oficial, donde se verificar uma re-sacralização crescente das relações fora das instituições religiosas, ou seja, em seitas ou "tribos" (cf. G. Balandier, "Antropologia e crítica da modernidade", in: id., "Antropo-lógicas", São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1976, p. 258 s.; G. Marramao, "Poder e Secularização", São Paulo: EDUNESP, 1995).
Em épocas passadas, a comunidade se mantinha íntegra pela referência a uma origem comum, sacramentada por mitologias, religiões ou mesmo, mais recentemente, por mundividências filosóficas. No presente, o predomínio do pensamento científico e o correlato processo de "desencantamento" do mundo, ao qual se refere Max Weber, minam as bases sobre as quais tradicionalmente se ergueram as diversas ordens normativas. A construção de novas bases pressupõe uma recuperação de nossa capacidade criativa de ficções justificadoras da existência e da co-existência, ao mesmo tempo em que estamos cientes do caráter ficcional desse empreendimento, cujo resultado é a afirmação de valores. Para isso, vamos precisar de uma aproximação entre as mais diversas formas de criações desenvolvidas pelo engenho humano - artes, mitologias, ciências, religiões, filosofias - e aquela dentre elas que nos sanciona mais severamente, do ponto de vista social, a conduta, a saber, o Direito. Cabe ao Direito solidificar essa invenção ou ficção coletiva, criando e estabelecendo valores, impondo-os mesmo, em busca de garantir as condições de manutenção da vida em comum, a vida humana.
Afinal, somos uma ilusão de ser, pois apenas estamos, existimos, não somos realmente, já que ser é ser para sempre. Se somos, somos nada. É esse nada, esse vazio interior, que nos horroriza, por mais que o evitemos, quando com ele nos deparamos, ao pensarmos com radicalidade nossa existência e verificamos o que somos: não-ser, mera existência.
Se em ética nos ocupamos da determinação do que é bom e do que é mal na vida, já dando como resolvida a questão do bem de viver e da própria necessidade da ética, ela está colaborando para dificultar a vida do ser moral que somos nós, ao invés de nos ajudar, pois se a vida é que é o bem e a morte é o mal, tudo o mais só pode ser mal, já que vamos morrer - o que, a rigor, pode acontecer a qualquer momento e, na verdade, estamos morrendo a cada dia, a cada segundo, enquanto vivemos. Então, seria preferível não termos ética: a ética deve ser negativa, por ser afirmativa do impossível, isto é, o dever de viver, o nosso bem maior.
Tudo o que fazemos, especialmente o que nos dá prazer - desde as coisas tidas como mais simples: comer e fazer amor, conversar e fazer amigos, até as mais sofisticadas, como a arte e a ciência, passando por aquelas em geral condenáveis moralmente, como a busca da glória, do poder, de dinheiro, drogar-se, cometer crimes - não passam de tentativas vãs de ocultarmos de nós mesmos nossa falta de ser, preencher ou ornamentar o vazio fundamental que somos nós: eis o mal radical. A ética nos força a optar pelo ser, quando não somos - ou somos não-ser -, e com isso, nos leva a sofrer ainda mais do que sofreríamos, se não tivéssemos ética nenhuma (cf. Julio Cabrera, "Crítica de la moral afirmativa",. Barcelona: Gedisa, 1996).
O sofrimento de existir é considerado melhor do que o nada de não existir. Será que é mesmo? Mas se existindo já somos esse nada? O fato intransponível que a todo custo a ética tenta escamotear, por não assumi-lo com todas as suas conseqüências, é que nós não existimos sempre nem existiremos para sempre. Por que este que nos parece o estado normal, o de não-existência, que é o estado de ser e, logo, do ser supremo, é o estado considerado excepcional e associado ao mal? Em ética, o bem não é a regra e o mal, a exceção? Estar vivo não é uma exceção? Então por que esta consideração a priori de que estar vivo é que é bom e não estar vivo, mau? Sofremos nessa vida e, em grande parte por isso mesmo, também fazemos outros sofrerem, quando poderíamos muito bem usufruí-la, sofrer menos, pois ela será tanto melhor se não lhe adicionarmos o sofrimento extra de buscar um modo de ser, de obediência rígida a regras universal e eternamente válidas, que pressupõe um estado de ser que nunca alcançaremos em vida, mas apenas, possivelmente, após a morte: o de ser para sempre. Daí ter A. Badiou (em "L´éthique. Essai sur la conscience du Mal", Paris: Hatier, 1993, p. 33) afirmado que a ética é niilista, por se basear na convicção de que "a única coisa que pode verdadeiramente acontecer ao homem é a morte", o que a remete à inefabilidade do que é totalmente diverso, denominação ética de Deus, instância decisória da morte, onde se gera o mal: ética, "nome último do religioso como tal" (ib.: 23). Eis a verdade fenomenal que temos diante de nós, sobre a qual silenciamos, e em razão desse silêncio, de não se falar nisso, não nos conscientizamos, propriamente, de nossa situação existencial em toda a sua precariedade - e beleza.
É preciso, portanto, que haja espaços privados para se falar disso, sendo isso mais do que falar de si, como na clínica psicanalítica, em geral, pois é falar do que somos todos nós, e nesse discurso moldarmo-nos, eticamente. A ética hoje requerida, portanto, não se refere a uma moral já pronta, mas àquela que efetivamente já temos e que confrontamos com a verdade fundamental de que toda moral é invenção coletiva, geral, e também, em certa medida, particular, individual, singular, feita para justificar nosso desejo de preservar-nos a vida, a nossa e a dos outros, sem que saibamos porque. Essa é nossa herança, o legado que recebemos e repassamos, a nossa Lei: a letra que somos, que nos obriga e liberta, sendo, por ambos os motivos, e em seu duplo sentido, de se comemorar.
Resumos
A letra não teria, em primeiro lugar, um sentido filogenético, mas sim, filológico. Neste nível, ela é uma herança, na medida em que ela é o nome próprio, transmitido pelos pais e, principalmente, pelo pai e sua lei, o "nome-do-pai", pois é em relação a ele, o pai, à diferença da mãe, que a filiação não é evidente, donde precisarmos constituir com ele um vínculo filológico, ou melhor, "filialógico", sendo a letra que constitui primariamente a subjetividade do ser de linguagem que somos nós. E se biologicamente já faz tanto tempo que isso se reproduz, a cada nascimento de mais um membro da espécie humana, ao ponto de já estar pré-(ins)crito geneticamente a ordem que permite/obriga o recém-nascido a tornar-se ser falante, "falasser", essa ordem produziu-se inicialmente pelas marcas que fizeram os primeiros seres humanos sobre si mesmos, instaurando a cisão definitiva com o natural - e o real.
La lettre n'a pas, au premier lieu, un sens phylogénétique, mais philologique. A cette niveau, la lettre est un héritage, dans la mesure où elle est le nom propre, transmit par nous parents et, principalement, le père et sa loi, le "nom-du-père", puisque c'est vis-à-vis de lui, le père, en contraste avec la mère, dont la filiation n'est pas évident, d'où le besoin de constituer avec lui une liaison philologique, ou mieux encore, "philialogique". Et si d'une point de vue biologique il y a ci longtemps que cela se reproduit, à chaque naissance d'un autre membre de l'espèce humaine, au point d'étre déjà pré-(in)scrit génétiquement l'ordre qui permet/oblige au nouveau né de devenir un être parlant, "parlêttre", est-que cette ordre a été produit d'abord par des traces qui firent les premièr êtres humaines sur eux-même, instituant une rupture définitive avec le naturel - et le réel.
Palavras-Chave
letra - subjetividade - lei - filiação - linguagem
lettre - subjectivité - loi - filiation - langage
Willis Santiago Guerra Filho
willisguerra@uol.com.br
* Professor Titular da Escola de Ciências Jurídicas da Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO) e de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Professor e Coordenador-Geral do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Candido Mendes (UCAM). Professor Doutor de Filosofia do Direito no Programa de Estudos Pós-Graduados em Direito (Mestrado e Doutorado) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Livre-Docente em Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutor em Ciência do Direito pela Universidade de Bielefeld, Alemanha.
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