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Algumas observações antropológicas sobre a psicanálise no Brasil: 1999*
Waud Kracke
Quando estive pela primeira vez no Brasil, de 1966 a 1968 - (assisti a polícia montada precipitar-se sobre a Catedral da Candelária no funeral de Edson Luís, o estudante baleado pela polícia secreta enquanto preparava cartazes; deixei o país bem antes da promulgação do infame Ato Institucional no 5, que fechou o Congresso e instituiu a Censura; no ano anterior havia ocorrido o seqüestro do embaixador americano exibido no filme O que é isto companheiro?) - testemunhei um tremendo surto de interesse pela psicanálise no Brasil. Vi muita gente lendo, no ônibus, A interpretação dos sonhos e outras obras de Freud. Muitos brasileiros da minha geração, entre colegas e conhecidos, estavam em análise.1
Fui apresentado por um colega já formado, atualmente uma figura importante na Antropologia do Brasil urbano, a um grupo de analistas "neofreudianos", que seguiam a escola culturalista de Erich Fromm e Karen Horney. O líder deste grupo era uma figura imponente chamada Dr. Vital Brasil, a quem mais tarde procurei para trabalhar com minhas ansiedades "remexidas" pelo meu próprio trabalho na área. Encontrei neste grupo uma forte corrente de interesse pela cultura; uma destas pessoas ajudou-me consideravelmente na preparação de entrevistas dinâmicas no campo e, posteriormente, a analisá-las.
Em minhas viagens subseqüentes, tenho encontrado vários analistas brasileiros interessados nos processos sociais, na compreensão psicanalítica da formação dos grupos, e no contexto social da psicanálise.2 Alguns deles apresentam uma visão de mudança radical da sociedade brasileira, que inclui um compromisso reconciliatório entre as visões sociais de Freud e as de Marx. Quando estive no Centro Psiquiátrico Pedro II, um centro experimental para o tratamento das psicoses, próximo do Rio, tive o privilégio de assistir a uma conferência de Jurandir Freire Costa, cujo pensamento se aproximava muito do de Foucault, sobre a hegemonia do modelo médico na sociedade brasileira. Temas como os sem-teto ou o suicídio entre alguns grupos indígenas são um foco de simpósios nas reuniões da sociedade psicanalítica.
A psicanálise em si é um objeto de escrutínio social; a psicanálise em si está colocada num contexto social, e é estudada como um fenômeno da vida cultural - da vida cultural nacional. O psicanalista brasileiro Renato Mezan (1988) aponta para o fato de como a psicanálise é transformada cada vez que é transplantada para uma nova nação. Desta forma, faz sentido que antropólogos estudem psicanálise e as comunidades psicanalíticas como um fenômeno social. O antropólogo Roberto Yutaka Sagawa estudou o desenvolvimento da psicanálise em São Paulo; e o sociólogo Gisálio Cerqueira editou um livro sobre a crise na comunidade psicanalítica do Rio de Janeiro (ver papers Lucia Villela e Helena Vianna). Até recentemente, os antropólogos americanos não tinham feito tais estudos. Até a publicação do recente trabalho de Tanya Luhrman, o único estudo sobre uma comunidade psicanalítica nos Estados Unidos havia sido feito por um brasileiro (Nunes 1985)!
Os analistas brasileiros têm um forte interesse pelas várias culturas que compõem a sociedade brasileira - especialmente a Yoruba e Bantu - das quais derivaram práticas religiosas denominadas como Macumba, Candomblé, Umbanda . Sabe-se de um psicanalista que incentivou seu paciente a continuar participando da Umbanda, como um meio de cura alternativo, quando foi provado que esta aliviava os sintomas que resistiam à cura psiquiátrica. (O paciente, um professor de geografia de São Paulo, tinha acompanhado sua empregada a uma sessão de Umbanda, só por curiosidade, e saiu de lá, para surpresa dela, com suas dores de cabeça aliviadas [Lúcia Villela, comunicação pessoal]). David Azoubel tem uma maravilhosa discussão psicanalítica da peça do dia de São João, Bumba meu boi, pela qual ele foi arrebatado em sua infância em Pernambuco, analisando-a como uma história de couvade.
Inversamente, a psicanálise também tem um lugar marcante no folclore brasileiro. Um dos mais conhecidos e adorados analistas do Brasil é O analista de Bagé - figura bombástica e austera criada por Luís Fernando Veríssimo, humorista do Rio Grande do Sul. Este "curandeiro" de fala simplória, de uma cidade na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, recebe seus pacientes descalço e usando bombachas (calças largas usadas pelos cowboys gaúchos), num divã com uma pele de carneiro jogada sobre o mesmo, e oferece a eles chá-mate, o forte chá da região que é sorvido de um largo recipiente utilizando-se um canudo de prata (bomba) e que deve ser passado de um para outro em qualquer grupo em que seja bebido. A fala dele é "salgada" por expressões regionais, e "apimentada" por palavras espanholas. Suas máximas e insultos são tiradas de provérbios sobre cavalos ou gado: "Nunca bata com sua espora numa mulher ou num cavalo jovem"; "Para amarrar um cavalo no campo ou manter uma mulher em casa, você só precisa de uma vara dura".
A situação política de 1964 a 1985 influenciou profundamente o pensamento psicanalítico. Enquanto o antigo establishment da psicanálise se tornava cada vez mais conservador, encarando a psicanálise como contribuinte de uma "modernização" capitalista do Brasil, o clima de repressão durante a ditadura militar pedia uma resposta da comunidade analítica. A tortura patrocinada pelos treinadores da CIA e o desaparecimento de líderes estudantis não atingiram os níveis da Argentina e Chile, mas também foram horríveis. Analistas formaram e participaram de grupos para tratamento de vítimas da tortura (Danneberg, 1995: 242, 247). Naqueles dias quando a vida dos estudantes e intelectuais brasileiros estava plena de consciência dos perigos da prisão, tortura e desaparecimentos políticos, as discussões entre os analistas, reproduzidas em órgãos menos formais como Gradiva (uma circular lançada como um "Fórum de debate psicanalítico"), rapidamente chegou a temas dolorosos como: colegas que denunciaram seus companheiros ao aparato de segurança do governo (SNI e DOPS), ou analistas que, por medo, recusaram-se a tratar pacientes envolvidos em atividades antigovernamentais, ou o acesso dos pobres e excluídos ao tratamento psicológico.
Entre o período de 1967-68, quando estive no Brasil e conheci psicanalistas brasileiros e, mais tarde, quando reativei estes contatos, em 1983, 1985 e 1988, a cena psicanalítica no Brasil tinha passado por uma profunda transformação. As idéias lacanianas haviam fincado raízes profundas. A maioria dos grupos de psicanalistas que conheci em Brasília e no Rio agora eram lacanianos ou, pelo menos, haviam sido influenciados pelas idéias de Lacan. A maioria dos meus amigos estava em análise com analistas lacanianos, e muitos antropólogos que eu conhecera haviam se tornado psicanalistas lacanianos. A Gradiva tinha então uma série de cartuns chamados Lacques Jacan e Jacalan Milhor.
Os psicanalistas lacanianos estavam fazendo muito sucesso no Brasil (assim como Freud fizera duas décadas antes) e são uma influência dominante até hoje no Brasil. O que faz Lacan tão atraente para os brasileiros (como também para os argentinos) em contraste com a resistência encontrada nos Estados Unidos? Pode-se apontar para vários aspectos da questão: o discurso filosófico de Lacan e sua reconstrução de uma estrutura epistemológica para a psicanálise freudiana apelam para o profundo interesse pela filosofia que existe na vida intelectual brasileira; sua lógica e amor ao paradoxo relembram o rigor da teologia católica. Mas eu acho que um importante elemento de seu carisma no Brasil repousa sobre sua ênfase no contexto social do ser humano - o fato de que a criança nasce num mundo que está imerso na linguagem e que o próprio sujeito humano é criado por ela.
Meus mais recentes contatos com psicanalistas brasileiros, este ano, mostraram uma vívida e contínua preocupação com os temas sociais. Numa conferência de analistas e psiquiatras sociais enfocaram-se temas como a alta incidência de suicídio em alguns grupos litorâneos de Guaranis, e em outros grupos indígenas, o problema da violência na sociedade brasileira, os meninos de rua. Em reuniões de uma sociedade psicanalítica do Rio de Janeiro, tratou-se da divulgação da informação psicanalítica para a imprensa, especialmente depois das seqüelas deixadas pelo "Caso Lobo".
O engajamento em questões sociais tem sido um núcleo constituinte da vida intelectual brasileira. A esquerda não perdeu força no Brasil, como aconteceu nos Estados Unidos. Antropólogos, advogados, padres e outros profissionais tomam parte ativa na defesa dos direitos das minorias marginalizadas e promovem o bem-estar dos setores desprivilegiados da sociedade brasileira. Muitos analistas brasileiros participam destas preocupações sociais. Enquanto analistas, eles não podem trazer a política para a sua prática clínica, dão muita importância à luta por justiça social fora do consultório.
Isto não quer dizer que todos, ou mesmo a maioria dos analistas brasileiros, compartilhem desta preocupação com a justiça e o bem-estar sociais. Muitos continuam, como seus companheiros norte-americanos, imersos nos problemas da técnica e nos detalhes da prática, sem terem preocupações sociais mais amplas. Mas existe um bom número de analistas brasileiros que têm um pensamento mais progressista, e que compõem um front de analistas engajados e comprometidos com a batalha contra as "doenças" sociais dos brasileiros e da sociedade capitalista mundial ?
Grupo de Chicago 5 de outubro de 1999.
Waud@uic.ed
Departament of Anthropology
University of Illinois At Chicago
1007 W. Harrison ST., suite 2102
Chicago, Illinois 60607
U.S.A
Referências
AZOUBEL, David Neto (1988). O "Bumba meu boi". Uma festa popular brasileira originada dos rituais da "couvade". Rio de Janeiro: Imago.
CERQUEIRA, Gisalio (org.) (1982). Crise na psicanálise. Rio de Janeiro: Graal.
DANNEBERG, Erika (1995). "Psychoanalysis against the Grain: Argentina, Chile, Nicaragua". In Psychoanalysis International: A Guide to Psycho-analysis Around the World. Vol. II. ed. Peter Kutter. Stuttgart: Frommann-Holzboorg, pp. 241-256.
FIGUEIRA, Sérvulo (1981). O contexto social da psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
FREIRE COSTA, Jurandir (1979). Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
(1984). Violência e psicanálise. São Paulo: Parma, 1986.
(1989). Psicanálise e contexto cultural: imaginário psicanalítico, grupos e psicoterapia. Rio de Janeiro: Campus.
FROMM, Erich (1961). Marx's Concept of Man. New York: Continuum, 1992.
GARCIA, Célio (1988). "História e psicanálise: psicanálise no Brasil". In Percursos na história da psicanálise, Joel Birman (coord.). Rio de Janeiro: Taurus.
(1994). Psicanálise, política, lógica. São Paulo: Escuta.
KEPPE, Norbert (1976). Psicanálise da sociedade. São Paulo: Portón.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria (1882). "O alienista". Papéis avulsos. Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre: W.M. Jackson, 1937, pp. 7-99.
Notas de rodapé
* Tradução de Carmen Cerqueira Cesar. Trabalho apresentado a Les États Generaux de la Psychanalyse, julho de 2000, Paris, França.
1. No ano seguinte à minha chegada, em 1967 (embora eu não soubesse naquela época), a Revista Brasileira de Psicanálise havia sido fundada.
2. Para elucidar os conceitos freudianos sobre processo social e relações políticas: Norberto Keppe, 1976; Renato Mezan, 1985: Abrão Slavutsky, 19. Sobre grupos: Dr. Zimmermann; Garcia, 1994; Jurandir Freire Costa, 1989.
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