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Corpo, afeto, linguagem: a questão do sentido na clínica psicanalítica1
Marisa Schargel Maia2
Resumo:
Este artigo aborda a questão do sentido para além de sua significação identitária; propõe-se pensar sua emergência no âmbito de uma compreensão psicanalítica. Sublinha-se que a gênese do sentido se dá (in)determinada em uma rede complexa na qual corpo, afeto e linguagem estão implicados. Apesar da importância isolada de cada um desses elementos, valoriza-se neste artigo a dimensão corporal e afetiva implicada na gênese do sentido, entendido aqui de três maneiras distintas: significação compartilhada, particípio do verbo sentir e expressão de um campo não-verbal.
Maia, S. M. "A questão do sentido na clínica psicanalítica". In: Corpo, afeto e linguagem: a questão do sentido hoje. Bezerra Jr., B. e Plastino, C. A. (orgs)
Abstract: Body, affect and language: the question of the sense in the psychoanalytic clinical
This article is an approach of the question of the sense, beyond its identitarian meaning; it is a proposal to discuss its emergence in the scope of a psychoanalytical understanding, emphasizing that the genesis of the sense is (un)determined within a net involving bodies, feelings and language.
Everyone of these elements has a detached importance; notwithstanding, in this article what is underlined is the corporal and affective dimension, involved in the genesis of the sense, here understood from three different approaches: shared meaning, participle of the verb to feel and expression of a non verbal field.
Résumé: Corps, affect et langage: la question du sens dans la clinique psychanalytique
Cet article examine la question du sens, au delá de sa signfication identitaire et propose un entendement de son emergence dans les limites d'une compréhension psychanalytique, en soulignant que la génèse du sens se trouve (in)déterminée dans un réseau qui embrasse le corps, l'affection et le langage. Malgré l'importance isolée de chacun de ces elements, ici c'est la dimension corporale et affective de la génèse du sens, entendue de trois manieères diverses - significacion copartagée, participe du verbe sentir et expression d'un champ non verbal - qui est mise en valuer.
Resumen: Cuerpo, afecto y lenguaje: la cuestión del sentido en la clínica psicanalítica.
Este artículo aborda la cuestión del sentido más allá de su significación identitária proponiendose pensar su emergencia en el ámbito de una compreensión psicanalítica. Subraya que la génesis del sentido se da (in) determinada en un compleja red en la cual el cuerpo,el afecto y el linguaje estan implicados. No obstante la importancia aislada de cada uno de esos elementos, el artículo valoriza la dimensión corporal y afectiva implicada en la génesis del sentido, entendido de tres maneiras diferentes" significación compartida, particípio del verbo sentir y expresión de un campo no verbal.
Eu tenho à medida que designo - e este é o esplendor de se ter
uma linguagem. Mas eu tenho muito mais
à medida que não consigo designar.
(Clarice Lispector)
No mínimo três termos compreendem o título chave deste trabalho: corpo, afeto e linguagem. Cada termo destes determina, por si só, uma trama complexa de conceitos e definições. Supomos, porém, que é no interjogo entre corpo, afeto e linguagem que o sentido possa emergir. Devido a complexidade de cada termo, é imprescindível que tentemos compreender, a princípio sem abraçarmos uma ou outra posição teórica, a extensão e amplidão dessa proposta de reflexão:
Quando pensamos essa questão nos referindo ao pólo corporal, imediatamente surge uma pergunta: a que corpo nos reportamos? Ao corpo coisificado da medicina, construção artificial que sequer poderíamos chamar de corpo biológico? Ao interior do corpo, diferenciado da composição de seus órgãos e associado no senso comum à alma, ou espírito? À sua superfície, limite-pele que não se confunde com o exterior do corpo? Ao corpo expressivo, veículo do relacionar-se do eu com o mundo? Ao corpo das paixões, fonte de prazer e sofrimento? O corpo também é fonte dos sentidos: ver, cheirar, tocar e ouvir - corpo percepção.
Em pensando ainda os outros termos do nosso tema, a situação torna-se mais complexa: quando falamos de afetos, nos referimos a afetos enquanto qualidade, afetos categóricos (tristeza, alegria, raiva, inveja...) ou nos referimos a afetos enquanto quantidade, intensidade, possibilidade de afetação sem nomeação?
O ato de perceber o outro se dá através do corpo/sentidos, já que o outro corpo nos afeta desde um exterior. Por outro lado, também somos afetados desde um interior, afinal quando percebo alguém, percebo além de um corpo, percebo um sujeito. Quando ouço alguém, ouço objetivamente sua voz, mas subjetivamente minha escuta se dá impregnada por marcas internas - psíquicas e corporais3 - de tantas e tantas vozes vividas. Muitas vezes o tom de uma voz pode nos ser extremamente desagradável ou ao contrário muitíssimo agradável possibilitando uma dissintonia ou sintonia intersubjetiva que nos remete sobretudo a afetos e vozes outras que, no processo de constituição do sujeito foram imprimindo, marcando e gerando sentidos inconscientes que são determinantes no seu estar no mundo. No interior de cada encontro, afetos são disparados e a dimensão de possibilidade do encontro vai depender (em parte) da negociação que cada um pode fazer com essas vivências e marcas anteriores/atuais. Por mais que o ato de perceber seja veiculado por olhar, ouvir, cheirar e tocar, essa percepção se dá mapeada e modelada por marcas e inscrições. O corpo próprio se relaciona com o exterior mediante um mapeamento afetivo/linguístico. O perceber do eu constituído dá-se modelado por seus encontros primeiros, circunscritos pela cultura.
É interessante notar como durante a vida, o corpo, sobretudo o rosto vai sendo inscrito por afetos. Na clínica, torna-se óbvia a percepção de pessoas que carregam consigo longos períodos de depressão através do jeito caído do olhar e dos músculos da bochecha. Através do olhar, também podemos perceber um sujeito sendo "tomado" pela loucura. No âmbito da literatura, constatamos o alto preço pago por Dorian Gray para impedir que o tempo e os afetos marcassem seu corpo, sobretudo seu rosto4. Um rosto sem expressão de afetos é um rosto sem conexão de vida e essa conexão é feita sempre pela mediação de um outro. Sublinhemos, porém, que esse outro se constitui como portador fundamental da cultura. Chegamos então ao último componente do nosso título - a linguagem - afinal, desde Aristóteles, temos que é somente através do atributo da linguagem que podemos pensar o sócio-cultural e o político como marca da singularidade humana. É através do instrumental da linguagem que o homem pode se tornar um ser social e político.
No decorrer da história da filosofia, diversas são as concepções teóricas sobre o que seria o fenômeno da linguagem: se até o final do século passado era hegemônica a teoria representacional, o século XX conta com diversas vertentes, as quais apontam para caminhos que, embora diferentes, tem em comum uma dessubstancialização do sujeito. Essas diversas correntes abarcam um vasto campo da filosofia, a qual oscila desde uma visão estruturalista centrada na lingüística saussiriana até uma visão pragmática apoiada nos jogos de linguagem de Wittgenstein, isso sem esquecer Foucault e Deleuze que encontram em Nietzsche, uma de suas bases teóricas. Porém, grosso modo, no cerne dessas teorias, temos em comum a linguagem sendo definida como instrumental coletivo de uma cultura capaz de gerar significações compartilhadas.
Porém se pretendemos pensar a questão do sentido, desvinculando-o de uma significação identitária5 e pensando-o num nível de compreensão psicanalítica, é preciso sublinhar que a gênese do sentido se dá (in)determinado em uma rede complexa onde estão implicados corpo, afeto e linguagem. Apesar de sabermos da importância e da complexidade de cada um desses elementos, é necessário esclarecer que, para efeito deste escrito, valorizaremos a dimensão corporal e afetiva implicada na gênese do sentido, nesta medida, estamos atribuindo a palavra sentido, três possibilidades de compreensão: sentido como significação compartilhada, sentido como derivado do verbo sentir e sentido enquanto expressão de um campo não-linguístico6.
II - Sobre as imbricações entre psiquismo e corpo
Deus e o diabo estão lutando ali, e o campo de batalha é o coração do homem.
(Dostoiévski)
Essas poucas linhas introdutórias, nos levam a uma questão milenar - o dualismo corpo/mente, o qual aparece freqüentemente com roupagens diversas: corpo/alma, cérebro/espírito, biológico/simbólico, corpo/sentido, psique/soma. Questão espinhosa que está no cerne das construções teóricas concernentes a qualquer campo do conhecimento que se proponha a pensar o humano: da medicina à filosofia, a resolução do enigma sobre quais os mecanismos que regem as relações corpo/mente está, freqüentemente, no bojo de sua produção. Se para Spinosa ninguém, na verdade, determinou o quanto pode um corpo - corpo e afetos constituindo-se como operadores fundamentais para a emergência do sentido - para Descartes a cisão entre corpo e mente é radical, tendo a mente racional o privilégio da significação7. A problemática da dicotomia entre corpo e alma atravessa toda a história do pensamento religioso e filosófico onde a tradição metafísica, própria ao pensamento ocidental, é hegemônica. Neste contexto, a invenção freudiana busca uma diferenciação quando nos apresenta o conceito de pulsão que não se restringe apenas a um lugar de "limbo" entre soma e psique como poderíamos entender o lugar de um conceito limite dado às pulsões, outrossim, é nas vicissitudes das pulsões que podemos encontrar a multiplicidade de possibilidades do humano.
É bem verdade que mesmo com todo o progresso das pesquisas no campo das neurociências, nada se avançou com relação a este enigma, de qualquer maneira, no contexto da produção científica contemporânea que dialoga com as neurociências, fica cada vez mais difícil pensar em uma dissociação entre psique e soma; concordamos com José Gil quando assevera que é preciso pensar o interior do corpo próprio, como aquele espaço que contém vísceras quando o abrimos, mas que é também o lugar onde se geram as doenças psicossomáticas8. Desde os primórdios da constituição da subjetividade, corpo e mente estabelecem entre si relações complexas. No atendimento a casos graves essa imbricação aparece muitas vezes de forma explícita quando a dor, dita corporal, é um recurso para aplacar a dor psíquica. Há uns anos atendi uma moça que passava por um período no qual tentava libertar-se de uma dependência química. No auge de seu sofrimento Catarina cortara a parte inferior dos pés com gilete. Ao ser indagada pelos familiares sobre porque havia feito tal coisa, responde que era para impedi-la de ir atrás da droga. Mais tarde, durante um atendimento Catarina me diz que isso não era verdade , me diz que o que tinha realmente acontecido é que "enquanto o pé doía, a dor no peito diminuía". Esse depoimento nos traz questões fundamentais. Poderíamos concluir que face a angústia dilacerante , outrora sedada pelo uso da droga, a dor corporal lhe aparecia como melhor "opção". Percorrendo a linha de raciocínio estabelecida por Freud em 19209, o corte nos pés teria a função de sujeitar o excesso de excitação liberado no psiquismo pela angústia. Nesta via de pensamento, psiquismo e corpo não são coisas estanques, mas estabelecem entre si relações complexas, como já aponta a definição freudiana do conceito de pulsão: um conceito limite entre o psíquico e o somático; contudo, estaríamos, mesmo assim, optando por um caminho que reforçaria a hipótese dualista da relação corpo/psique. Numa outra via de raciocínio, poderíamos questionar se, neste caso, estamos lidando com essa dupla possibilidade: ou dor corporal ou dor psíquica. Entendemos que, numa larga medida, o corpo expressa e inclui o psíquico. Talvez - e é importante que coloquemos essa afirmativa como questão na medida que não temos uma resposta clara - a angustia de Catarina diminuísse com a lesão corporal, porque o ferimento oferecesse uma barreira de contenção para a angústia na medida que atinge níveis psíquicos primários referidos à marcas, impressões psíquicas corporais oriundas de acontecimentos traumáticos imemoráveis e inassimiláveis. O acontecimento do corte nos pés e a conseqüente dor faria ressonância, neste contexto, com impressões traumáticas que circulam para além das inscrições psíquicas recalcadas. Voltaremos a esse ponto em outro momento.
Ora, se por um lado, não existem afeto, linguagem ou sentido sem a presença de um corpo, por outro, que corpo pode tomar forma sem a "incarnação" de afetos e linguagem? Sabemos, na clínica, o quanto sofrido pode se tornar o estrangulamento de um desses três componentes: a apresentação de afetos onde a linguagem falha para exprimi-los; a presença da linguagem onde os afetos se ausentam e mesmo o horror do corpo privado de afetos e linguagem - o corpo catatônico. Sabemos também, a partir da clínica, os desastres que podem causar em termos de estruturação psíquica, um processo de maternagem onde por qualquer motivo o infans é tratado como "coisa", onde a mãe (ou um substituto) detendo-se somente aos seus necessários cuidados corporais, o priva de afetos. No outro pólo desta problemática, o drama se dá igualmente quando a maternagem priva-se de linguagem verbal. É fácil de observar o ritual freqüente das mães que ao cuidar dos seu bebês, travam com os mesmos "diálogos" infindáveis. Uma mãe que por algum motivo precisou silenciar, ou tornar mecânico o seu estar com o bebê coloca a si própria e ao bebê numa situação de risco, pois tende a truncar as relações de base entre corpo, afeto e linguagem, dificultando assim a emergência do sentido enquanto significação compartilhada. Nesta medida veremos que é no interjogo entre lingüístico e não-lingüístico que o sentido alcança sua possibilidade de existência.
Resumindo: apontamos para a possibilidade de haver inscrições e processos psíquicos voltados para o corpo que se furtam ao esquematismo representacional e que ao contrário de permanecerem como um psiquismo primário e arcaico que se mantém adormecido e latente na vida adulta, explorado unicamente no campo da psicossomática através do adoecimento do corpo próprio, estabelece-se mais como um psiquismo -primário e assignificante10 - "de ponta", operante e responsável por processos subjetivos fundamentais, sobretudo aqueles que envolvem produções criadoras. Como veremos adiante, discernimos duas dimensões do psíquico a serem pensadas: uma concernente ao aparato psíquico representacional marcado por códigos lingüísticos e a outra voltada para um psiquismo corporal marcado por códigos não-lingüísticos afetivos.
III - Sobre a gênese do sentido e a constituição do sujeito
Nous habitons notre corps longtemps avant de pouvoir Le penser. Notre
corps a ainsi sur nous une avance irréparable.
(Albert Camus )
Precisamos distinguir os dois eixos fundamentais sob os quais irá se constituir o infans: de um lado o par parental ( ou um substituto ) já imerso na cultura, "incorpados" de afetos e linguagem, do outro o bebê contando com uma potencialidade psicobiológica11 inata, que em contato com o meio buscará perseverar na existência. Na dimensão do humano, não existe possibilidade de constituição de subjetividade que se dê fora de um campo interpessoal. É frente a precariedade de recursos naturais adequados à sobrevivência que o infans, diante da angústia do desamparo, busca um outro que lhe dê suporte. A dimensão de encontro está na base da possibilidade de humanização. É no interior do encontro de uma mãe com seu bebê e da potencialidade deste encontro que se dará a multiplicidade virtual do sentido. Deixando ainda de lado os mecanismos constitutivos originários da subjetividade, pensemos num filho desejado, ou melhor, num filho idealizado por sua mãe antes do nascimento, este já terá nome(s), será fantasmado, terá um lugar projetado sobretudo no interior daquele núcleo familiar. Ao encontrar-se com o bebê, o par parental terá que refazer suas expectativas: o sexo, muitas vezes, não era o esperado, a cor de pele pode gerar estranheza e até mesmo o cheiro do bebê pode trazer sensações desconhecidas e inesperadas. É diante dos encantos e desencantos do par parental e sua possibilidade de "narcisar" um lugar para a realização do humano, que o infans poderá constituir-se enquanto subjetividade no interior da cultura. Se por um lado o bebê nasce imerso na linguagem - lugar da cultura pleno de sentidos, por outro, como se dará a apreensão de sentido por parte do bebê?
Com Ferenczi podemos pensar esse processo originário sendo agenciado pelo mecanismo de introjeção12. O conceito de introjeção marca a relação inaugural do eu com o meio, num processo onde o eu traz para si grande parte do mundo exterior. É através do mecanismo introjetivo que o infans se protege da angústia frente à precariedade e ao desamparo que lhes são constitutivos. Neste contexto, o eu não abre mão de seu prazer auto erótico, pois traz para si o outro. É interessante notar, que este outro - o objeto, não é apenas encontrado ou investido; ele é constituição própria do processo introjetivo, que aglutina afetos e sensações sobre um objeto: uma parte das sensações de prazer ou desprazer auto eróticas na origem, se desloca para os objetos que as suscitaram13. O processo de introjeção abre caminho para a possibilidade dos processos identificatórios e de um aparato psíquico centrado na representação.
Segundo Pinheiro14, o processo de introjeção atende basicamente aos processos de constituição da subjetividade, na medida que favorece à apreensão de sentido, já que povoa o psiquismo de representações. Porém tomemos cuidado em não atrelar o processo de introjeção exclusivamente ao nível de um psiquismo representacional. O mecanismo de introjeção originária pensado por Ferenczi se dá em um eixo de tensão entre prazer e desprazer, onde qualquer possibilidade psíquica, forçosamente, incluirá o corpo, já que, em ultima análise, é através das sensações corporais de bem estar ou mal estar - onde estão implicados o bebê e um outro cuidador - que o "eu" discernirá o que será ou não objeto de introjeção. Neste processo originário está implicado um psiquismo que inclui corpo, sensações, afetos, sentidos e intensidades. O mecanismo de introjeção é marcado pela inclusão do objeto no eu através do deslocamento para ele de sensações e afetos, o que define o mecanismo introjetivo como um processo basicamente afetivo. Dar sentido a algo, em Ferenczi, abarca um campo muito mais abrangente que o linguístico. Afinal, é o próprio Ferenczi que nos assegura, em 1926, que o pensar transcende o campo significante e estende-se aos sentidos quando afirma que cheirar ou aspirar o ambiente em torno são atos de pensar já que permitem efetivamente que se obtenham amostragens mais precisas do ambiente15.
É certo que a linguagem é um pólo vital e fundamental na constituição do sujeito e na gênese do sentido, porém ressaltamos que no primário da estruturação subjetiva, corpo e afetos (nos seus dois registros, enquanto intensidade e qualidade) tornam-se um precioso instrumento (não-linguístico) através do qual o infans far-se-á humano, pois se constituem como um veiculo suficiente em si mesmo na apreensão e transmissão de sentido. Um olhar de uma mãe para seu filho está sempre carregado de significações cuja apreensão, através de mecanismos primários, como por exemplo, através da identificação primária, transcende os códigos lingüísticos intersubjetivos.
Em Inibição sintoma e angústia (1926) Freud acentua a importância dos afetos no processo de constituição do psiquismo na medida que, neste trabalho, a angústia como marca do originário ( nascimento como seu protótipo), é definida por um estado afetivo com acentuado caráter de desprazer, onde sua ligação específica com os processos de descarga motora a diferencia de outros afetos que também são caracterizados por um intenso desprazer como o luto e a dor. É o desamparo inicial do bebê, como vimos anteriormente, que determina a angústia, primeiro como fenômeno automático e depois como sinal de perigo frente a ameaça de desamparo psíquico. É através da vivência de apaziguamento do desprazer, adquirida através de um outro cuidador, que o recém nato passará a temer o retorno da angústia, e sempre que esta estiver por vir, o bebê fará uso da angústia sinal para que lhe sejam aplacados os anseios, os quais não se encontram no plano do biológico, mas num plano psíquico-afetivo. Em busca de sua autopreservação, o recém-nascido dá um primeiro grande passo: provoca uma mudança do novo aparecimento automático e involuntário da angústia para a reprodução intencional da angústia como um sinal de perigo16. É através do mecanismo introjetivo que o bebê poderá fazer esta passagem, já que discernirá, a partir dos objetos introjetados, aquilo que lhe fará apaziguar o desprazer.
Essa passagem é fundamental, pois se com Freud podemos pensar que a reprodução intencional da angústia não implica nenhum processo subjetivo de escolha, o qual implicaria um eu estruturado, podemos também concluir que um processo de discernimento entre quais as situações deverão ser evitadas e quais deverão ser desejadas determina por si só uma primeira inscrição de sentido. Concordamos com Plastino quando assevera que a idéia de apreciar situações de perigo supõe obviamente a de outorgar um sentido a essas situações. Neste contexto, Freud postula a existência de afetos, sentido, e pensamentos inconscientes, atribuindo a eles a dinâmica do processo de constituição do psiquismo17. Mas que inconsciente estaria aqui em jogo? Obviamente, não se trataria ainda de um psiquismo estruturado segundo a lógica representacional do inconsciente recalcado. Para pensarmos em inscrição de sentido, num momento tão primário da estruturação psíquica, não podemos excluir o corpo como sede primeira de marcas e impressões psíquico-afetivas.
A emergência do conceito de pulsão de morte, pulsão sem representação, leva Freud, a partir dos anos 20, a conceber uma segunda teorização sobre o aparelho psíquico, onde o fenômeno da compulsão à repetição aponta para a existência de acontecimentos psíquicos que nunca se inscreveram no plano das inscrições representacionais. De acordo com Birman, ao dar maior amplidão tópica ao id ( segunda tópica ) frente à teorização da primeira tópica centrada no registro do inconsciente recalcado, Freud traz mudanças fundamentais para a teoria psicanalítica: enquanto na tópica do inconsciente estamos diante de experiências que receberam uma inscrição e que passaram por um código de linguagem - e, por isso mesmo, poderiam ser interpretadas - na tópica do id teríamos algo mais além disso. Com efeito, no registro do id teríamos um conjunto de experiências que não receberam uma inscrição e não se inseriram num código de linguagem, que estariam "fora" da psique, se esta é definida pelo sistema de oposição inconsciente/pré-consciente-consciente18.
Dessa forma teríamos no interior do id, um conjunto de impressões psíquicas que não circulariam no âmbito dos significados, apontando para a existência de uma dimensão de inscrição do acontecimento psíquico que extrapola a inscrição de sentido inconsciente, nos referindo, é claro, ao inconsciente recalcado, inaugurando assim uma outra perspectiva de abordagem do psiquismo que se estabelece aquém e além da linguagem.
Essa questão abre uma clareira em nossa reflexão, pois haveria então duas dimensões para se pensar o psíquico: a primeira concernente às inscrições psíquicas que passaram por processos lingüísticos, as quais são limitadas no interior de um aparato psíquico centrado no conceito de representação, e a outra, apontando para a possibilidade de impressões psíquicas circunscritas por um psiquismo mais primário e abrangente, centrado e norteado pelo corpo afetivo e expressivo possuidor de intenção, já que no esquematismo freudiano de 23, o id é aberto na sua extremidade do lado somático, não sendo possível fazer uma distinção entre o que separa o corpo (soma) do id (psique).
Porém, é preciso sublinhar que essa dimensão do psíquico não pertence a um processo evolutivo do eu, como veremos adiante, quando abordarmos os processos de criação, essa dimensão psíquica mais abrangente é estrutural e age concomitante a outros processos psíquicos referentes a um eu já estruturado.
Nesta medida, podemos inferir que se essas impressões se dão aquém e além dos processos lingüísticos, qualquer possibilidade de inscrição de marcas, neste âmbito, tem de estar referida a processos não-lingüísticos norteados pelo corpo e suas possibilidades de afetação e expressão. É neste contexto que podemos compreender que toda manifestação expressiva de um bebê comporta sentido, porque é perpassada por impressões afetivas que vem a formar essa dimensão psíquico-afetiva básica que estabelecendo uma relação complexa com os processos inconscientes lingüísticos posteriores abrirá a possibilidade da criação de uma multiplicidade infinita de sentidos lingüísticos compartilhados.
IV- Sobre a relação originária eu/mundo, criação e sentido
A maioria das pessoas vê através do intelecto com uma freqüência bem maior do que através dos olhos.
Ao invés de espaços coloridos, tomam conhecimento de conceitos.
(Paul Valery)
Quando nos aproximamos do campo da estética e colhemos o depoimento dos criadores sobre a experiência afetiva vivenciada durante o processo criador, percebemos que é possível fazer uma aproximação entre os processos primários de constituição da subjetividade e os mecanismos psíquicos implicados nos processos de criação. Essa aproximação nos permite um entendimento maior sobre os mecanismos psíquicos que estão em jogo no processo de gênese do sentido. Através da observação dos mecanismos psíquicos que estão envolvidos no processo de criar, no qual o artista estabelece um tipo especial de relação com o real, podemos perceber a atualização de uma forma primária e originária do eu se colocar no mundo, forma que, comumente, julgamos perdida e abandonada desde o processo de amadurecimento do eu. Vejamos isso com mais cautela.
Dois aspectos no relato de criadores nos chamam atenção: a dimensão de "eternidade" buscada por estes e a descrição do processo de criação como "algo que vem de fora".
Diz-se que o artista trabalha para a eternidade, sua produção deve conter algo que transcenda a si próprio e a seu tempo. O artista comunica no coração de sua obra, o atemporal e se no decorrer da história ficar patente que sua obra pertence a um tempo definido, que viveu apenas por um tempo, ficando dessa forma datada, então diz-se que aquilo que outrora foi catalogado como arte, agora encontra-se fadada ao esquecimento: artista e social enganaram-se na sua apreciação. Para a arte, o tempo não passa, não que o tempo seja infinito, mas adquire neste contexto, uma dimensão de atemporalidade, sendo este o critério diferenciador. Para o olhar do senso comum, o critério diferenciador está na sensibilidade. A obra datada apresenta uma detestável monotonia em contrapartida à pluralidade de intensidades despertadas pela arte propriamente dita. Em Sopro de vida, com Clarisse Lispéctor, teríamos: eu queria um modo de escrever delicadíssimo, esquizóide, esquivo verdadeiro que me revelasse a mim mesmo a face sem rugas da eternidade.
Paradoxalmente à sua potência transgressora da barreira do tempo, a arte capta o instante, o fugaz, o perecível. Interrompe o fluxo do tempo através de sua interferência no real19.
De acordo com os relatos, se o ato criador é acompanhado num primeiro momento pelo sentimento de angústia, como é comumente pensado, num segundo - o momento de exteriorização - é vivido, ao contrário com um sentimento de plenitude e por assim dizer de eternidade. Um "estado de sensações" vivido por quem cria ou mesmo por quem aprecia uma obra de arte, onde a dimensão temporal sofre uma modificação ao qual os artistas atribuem diversos sentidos, que podem variar desde a presença de Deus durante o ato de criar ou contemplar, quanto uma possível "comunhão cósmica" onde o artista, a obra e o cosmos estariam implicados. Poetas como Rilke sentem nostalgia da eternidade...
Eis a nostalgia: eleger sua morada no fluxo e no refluxo do tempo.
E eis os anseios: diálogos silenciosos de horas cotidianas com a eternidade.
Este sentimento específico foi abordado, a respeito do sentimento de religiosidade, por Romain Rolland, numa carta escrita à Freud: uma sensação de "eternidade", um sentimento de algo ilimitado, sem fronteiras-oceânico, por assim dizer20. Para Freud isso equivaleria a um sentimento onde não haveria delimitação precisa entre o eu e o mundo externo, um vínculo indissolúvel. Desde os primórdios de sua constituição o homem receberia sinais de seu pertencer ao mundo através de um sentimento imediato e isso só poderia ser compreendido através de uma indiscriminação entre eu e meio externo. Afinal, de acordo com Freud, o eu não foi desde sempre estruturado e diferenciado como se apresenta, pelo menos em aparência, na maturidade do indivíduo. Haveria um processo gradual, onde uma primeira unidade - eu/meio, cederia lugar progressivamente à uma diferenciação entre o eu e o meio. Dessa forma, o sentimento que temos de um eu maduro e estruturado não passa, portanto, de um mirrado resíduo de um sentimento muito mais inclusivo que corresponde a um vínculo mais íntimo entre o ego e o mundo que o cerca21.
Mas de que unidade fala Freud? Um eu/mundo indiferenciado, um eu/mundo diferenciados ou um eu/mundo conectados de uma maneira complexa, diferente daquela que viveremos com o amadurecimento do eu?
Durante um período longo, participei do atendimento de um rapaz que passava por uma crise psicótica aguda, durante meses via-o diariamente. Durante esse período V. não manifestava nenhum conteúdo delirante. Seu pensamento não se sedentarizava, e seu corpo não tinha morada. Bruscamente estranhava o mundo: um copo não era um copo e objetos outrora reconhecíveis, repentinamente tornavam-se seres estranhos e aterrorizantes. Depois de um período relativamente longo de tratamento, a crise começou a ceder e V. teve a possibilidade de arriscar um acordo com "quem" o atormentava,
Carta aberta ao mundo
Caro mundo, olá, cá estou eu a te escrever-lhe algumas linhas em homenagem à tu, belo e inesgotável mundo.
Venho por meio desta propor-lhe um acordo de cavalheiros. Eu viverei em ti e tu viverás em mim.
Quando tu vieres à mim na solidão da profunda noite, profunda e(ou) assustadora noite, lá estarei eu a te esperar, pronto a lhe prestar ajuda em qualquer situação. De resto já sabemos nós dois de tudo.
A carta de V. emociona e impacta no que diz respeito à negociação existente desde sempre entre o eu e o mundo que o cerca: V. o habita e o mundo habita em V. É interessante notar que Freud considera a possibilidade de coexistência do sentimento primário de um eu mais abrangente, com o sentimento de um eu maduramente demarcado, o que nos permitiria supor que para que se possa experimentar um afrouxamento dos contornos entre eu e mundo, mecanismos primários de apreensão do real os quais estiveram implicados no processo originário de constituição da subjetividade continuariam a coexistir com formas posteriores, mais "amadurecidas", de apreensão do real através da linguagem. Na sua desorganização primária, V. perde a possibilidade de um "estar com o mundo", seu "acordo de cavalheiros" se rompe, é invadido pelo real como que por um "hospedeiro".
É no campo da psicologia do desenvolvimento contemporânea, através das pesquisas de Daniel Stern que encontramos um apoio importante para a compreensão dessa complexa relação que se estabelece entre o eu e o meio neste momento originário22.
Segundo o autor, a constituição da subjetividade se dá através do desenvolvimento de quatro sensos de eu: emergente, nuclear, subjetivo e verbal. Essas formações de "senso de eu" não se constituem como estágios, nem são excludentes. Apesar de se estruturarem gradualmente com o desenvolvimento - um a partir do outro - não se apresentam como fases evolutivas, onde os processos arcaicos de estruturação do eu cedem lugar a processsos mais complexos e adequados à evolução da espécie. Pelo contrário, nos processos de subjetivação, esses quatro sensos de eu atuam concomitantemente sem que haja a atrofia de um em relação aos outros, embora seja claro que dependendo da situação vivida pelo eu, a primazia circunstancial e temporal de um senso de eu específico em relação aos outros é evidente.
Essa questão nos é fundamental pois, apesar de Freud enfatizar a possibilidade do eu viver, na maturidade, estados diferenciados de relação e coexistência com o real, é corrente o pensamento de que com a aquisição da linguagem, outras formas de apreensão do real são abandonadas ou simplesmente ficam "recalcadas" em função da prioridade dada a formas de pensar mais "evoluídas" e "elaboradas", por assim dizer, mais racionais.
No que concerne à relação originária que o eu estabelece com o meio e os processos psíquicos aí implicados, a elaboração teórica de Stern nos é bastante fecunda, em especial a noção de senso de eu emergente, a qual se constitui como a mais primária forma de inserção do eu no universo social, permanecendo como um sensor atuante em qualquer forma de criação e produção de conhecimento do eu já estruturado.
Afinal que senso de eu seria possível em um momento tão primário? Certamente não se trata de um eu circunscrito por um aparato psíquico estruturado, mas Stern atribui a esse momento emergente uma disponibilidade para interação, onde o "eu" apresentaria uma intencionalidade. Um senso de eu com capacidade de discriminação e intenção, fazendo com que o bebê se relacione responsivamente aos estímulos afetivos e cognitivos23. Esse relacionar-se com os estímulos do meio ambiente já se dá através de "preferências" do bebê em relação às sensações que procura, às percepções que forma. Assim como no processo originário de constituição da subjetividade, abordado anteriormente, o que está em jogo neste outro campo teórico, é o próprio processo originário que possibilita a emergência da subjetividade. A emergência deste senso de eu se dá por uma estranha coexistência da experiência do processo e do produto da organização. O bebê entre 0 e 2 meses de vida pode experienciar o processo da organização emergente assim como o resultado24. O eu experiencia, em última análise o vir-a-ser da organização. O senso de eu emergente é anterior à experiência de unidade corporal a qual já é atribuída a um senso de eu nuclear ( momento logo posterior ao emergente ).
Segundo o autor, apesar dos bebês não conhecerem a unidade corporal pois esta se encontra em estado de emergência, também não experimentam o estado de dispersão ou desorganização, ao contrário, o que predomina neste momento é a vivência do processo de organização de várias experiências isoladas que antecipam a vivência interativa de experiências cognitivas e afetivas. No caso de V., ao contrário da experiência de não-organização, vivida por qualquer sujeito nos momentos onde estão implicados processos de criação, o que se experimenta é a ruptura da possibilidade de organizar e des-organizar. Vivendo um processo de desagregação e dispersão psíquica, V. perdera a possibilidade de interagir com o mundo. No caso do bebê, mesmo que as diversas experiências estejam inicialmente isoladas, este não percebe a falta de relação entre elas, tendo em vista que, na realidade, nunca experimentou a possibilidade de experiências interligadas. Sua maior "preocupação" está no movimento de captar, processualizar e organizar. Quando as diversas experiências estão de alguma maneira unidas ( associadas, assimiladas ou conectadas de alguma forma, o bebê experiencia a emergência da organização25.
É importante que sublinhemos, para efeito deste tópico, a dimensão de devir, de vir-a-ser, vivida e inscrita no "eu" anteriormente a qualquer forma de organização. Devir e produto brotando do imperativo viver. O que se dá neste momento é a sensação de irrupção da organização, anterior a qualquer possibilidade de referência a um eu estruturado. É este momento de devir que abre caminho para a forma primeira de organização, a corporal: sua coerência, ações, estados internos de sentimento e um tipo específico de memória26. De acordo com o autor o campo inaugurado por esse momento emergente é o reservatório básico em que podemos mergulhar para todas as experiências criativas: o mundo subjetivo global da organização emergente é e permanece o domínio fundamental da subjetividade humana. Ele opera fora da consciência como a matriz experimental a partir da qual os pensamentos, as formas percebidas, os atos identificáveis e sentimentos verbalizados surgirão, mais tarde. Finalmente ele é o reservatório básico em que podemos mergulhar para todas as experiências criativas27.
Retornando aos criadores, é através de seus relatos que podemos inferir que o processo de criação os remete para um momento de sua ontogênese onde não havia ainda delimitação precisa entre eu e mundo, um estado de não-organização servindo como fonte à criação, enquanto busca incessante de unidade/eternidade. Entendemos porém que a busca e a experiência do eterno relatada pelos criadores se deve mais a uma sensação e vivência de atemporalidade. Nesta medida, a sensação, o desejo de eternidade e a vivência de dessubstancialização do eu relatada pelos criadores, são apenas um testemunho da atualização do processo originário da subjetividade onde o eu e o mundo encontram-se conectados de uma maneira complexa.
Se se trata pois de um vínculo mais íntimo e primário entre o eu e o mundo que o cerca, onde desde sempre houve um mecanismo complexo, intrínseco à unidade eu/mundo, que impulsionasse o eu em direção ao amadurecimento psíquico, através de um processo criador originário, cada vez nos fica mais difícil fazer uma diferenciação entre o que seriam os processos originários de constituição do eu e uma possível genealogia dos processos de criação e sentido.
Criamos através de mecanismos os mais primários possíveis, afinal foi através de atos criativos que pudemos perseverar na existência desde sempre. No nosso campo de conhecimento, diversos autores pensaram esta questão, Winnicott foi quem elaborou o conceito de "criatividade primária"28, onde enfatiza que tais mecanismos estão no cerne da existência: no momento em que o bebê sente o primeiro indício de que ele e sua mãe não formam uma unidade, de que ele e esta fonte de vida não são um só, o bebê tem que recriar essa unidade e o faz de uma forma criativa desenvolvendo uma imagem ao nível do psíquico de forma alucinatória que traria um retorno do prazer outrora vivenciado. É preciso, definitivamente, ouvirmos os criadores, que não cansam de asseverar que os processos de criação nos remetem para aquém e além dos processos psíquicos centrados no primado da representação.
É neste contexto que queremos introduzir o fenômeno da inspiração. Na sua origem etimológica, o vocábulo inspirar, significa: inspiráre (do Latim), fazer entrar ar nos pulmões, incutir, fazer penetrar no ânimo (alma, espírito, mente). É bem comum ouvirmos dos criadores o depoimento de serem tomados por "algo" quando criam, "algo" que vem de fora e os arrebata por inteiro. Boa parte dos relatos dos artistas (escritores, pintores, músicos e cientistas) nos assegura que a inspiração, o sentimento de que estão de posse de algo que precisa ganhar forma (através da escrita, da pintura, da música, da ciência...) vem através do corpo, dos órgãos, dos músculos, ou através de um processo que se dá por apresentação de imagens.
Para Einstein, no processo de inspiração las palavras y el lenguaje, en su expresión oral o escrita, no parecem desempenar rol alguno en el mecanismo de mi pensamiento. Las entidades psíquicas que al parecer sirvem como elementos de pensamiento son ciertos signos e imágenes, más o menos claros, que se pueden reproducir y combinar 'voluntariamente'. Existe, desde luego, alguna relación entre estos elementos y los conceptos lógicos correspondientes... Los elementos mencionados precedentemente son, en mi caso, de tipo visual, y en algunas personas son musculares29
O depoimento de Einstein, dentro daquilo que vimos esboçando não nos causa surpresa e nos faz concluir que os mecanismos psíquicos implicados nos processos de criação articulam-se a um psiquismo regido por um inconsciente originário, aberto aos processos afetivos e corporais, onde qualquer possibilidade de pensamento criador, num primeiro momento não se dá por representação e sim por sensações corporais ou por apresentação de imagens, onde mecanismos primários de percepção fazem uma ruptura com a percepção cotidiana tornando possível a criação de novas formas.
No âmbito do originário, a questão do sentido se coloca em toda sua radicalidade, na medida que é do devir da organização que se trata.
A partir dos escritos de Daniel Stern, podemos compreender melhor a busca pela eternidade e o depoimento dos criadores quando dizem que são apossados pela inspiração. Para que se estabeleça a possibilidade de emergência do novo, é necessário que haja uma ruptura com o que já está ordenado, é fundamental que se deixe de olhar através de conceitos e que se possa ver através dos olhos, para que se possa, mediante uma interação com o real colher e criar sentidos30. A sensação de que a inspiração vem de "fora", que vem através dos músculos como assevera Einstein se dá pelo fato de que o psiquismo(numa linguagem freudiana) ou o senso de eu( numa linguagem sterniana) envolvido nos processos de criação remete o sujeito para um momento primário de sua constituição, onde se por um lado, não havia um eu estruturado e diferenciado, também não se trataria de uma unidade indiferenciada eu/mundo. Este "fora", segundo nosso ponto de vista, aponta para um fora do registro representacional, fora do registro ics/pcs-cs da primeira tópica freudiana.
V- Sentido e clínica
Até aqui tentamos fazer mover engrenagens que nos abrissem portas para poder pensar a possibilidade de um psiquismo primário, constituído por impressões arcaicas, compostas por afetos, sensações, imagens, cheiros que comportariam a base fundamental não-linguística31 de onde o sentido, enquanto significação lingüística compartilhada, poderá emergir após o efeito semiótico da linguagem. Enfatizemos, porém, nossa intenção de conferir a essa base uma positividade enquanto motor para os processos criadores fundamentais, tanto no que se refere àqueles vivenciados na experiência analítica, quanto aos processos criadores voltados para o campo da produção cultural. Esse psiquismo primário atua como força propulsora do eu no mundo e seria promotor de uma outra forma de sentido marcado por processos expressivos e não-lingüísticos.
Quando pensamos em termos de constituição de subjetividade fica clara esta possibilidade, na medida que o infans não espera a aquisição da linguagem verbal para dar expressão às suas vivências. Winnicott32 assinala este fato quando examina, de forma atenta, os diversos tipos de choro de bebês, onde através do choro, os bebês assinalam às suas mães suas necessidades. Radicalmente, a possibilidade do acontecimento psíquico estabelecer-se como expressão, nos primórdios da vida subjetiva, é o que abre espaço para a posterior emergência do sentido enquanto significação compartilhada. Mas é preciso enfatizar que seria um equívoco pensar que os processos expressivos do bebê se dão fora de um campo circunscrito pela linguagem, ou mesmo que exista um eu que se constitua como pré-verbal , o que se coloca como contraponto ao verbal, estrito senso, não é um pré-verbal, mas sim um não-verbal ( gestual, corporal, afetivo, sensorial etc ), um não- lingüístico que já associado à possibilidade inata de linguagem, opera sentidos sob forma expressiva, mesmo antes da aquisição da linguagem verbal.
Sabemos que entramos num terreno movediço: não é fácil conferir visibilidade teórico-clínica aos conceitos que vimos delineando, na medida que no seu limite a prática analítica tem como regra fundamental a associação livre e lida, amplamente, com o sujeito da linguagem produtor de significação, mas é fundamental que percebamos que o sujeito produtor de significação não abarca totalmente o sujeito produtor de sentido.
Dessa forma, é preciso sublinhar que os processos e mecanismos psíquicos por nós trabalhados até então, entram em cena, sobretudo, em momentos cruciais de qualquer análise, porém, para efeito deste escrito, optamos pela abordagem de casos graves, onde podemos apreender esses movimentos psíquicos de maneira mais cristalina.
Ao lidarmos, clinicamente, com as "novas-velhas"33 patologias contemporâneas percebemos nitidamente que as primeiras transformações psíquicas ocorridas durante o processo terapêutico não se dão exclusivamente no campo lingüístico, ou seja, não se dão por uma operação no campo representacional intermediado pelo instrumento da interpretação. Radicalmente, percebemos que elas vem através da interação corpo/afeto/ linguagem e meio, incluindo aí o analista. Tomemos por exemplo, o atendimento a pacientes que se encontram em situação de adicção, torna-se claro que o trabalho terapêutico terá que passar por um longo tempo de um "corpo-a-corpo" onde o trabalho interpretativo de pouco servirá, já que enquanto analistas teremos que ser "injeridos" como droga para somente depois ( caso obtenhamos sucesso neste primeiro momento) podermos ser inscritos como alteridade. O eu subjetivo é todo corpo. Corpo tomado pela droga. Uma verdadeira inclusão do psiquismo no corpo e paradoxalmente uma quase atrofia do psiquismo representacional, na medida que o processo associativo desses pacientes é ralo e lingüisticamente empobrecido. No processo terapêutico terá que ocorrer um primeiro deslocamento do eu subjetivo em relação ao seu corpo, sendo que para isto ocorrer, todo um processo de transformação psíquica e subjetiva terá tomado lugar fora de um campo representacional. As primeiras transformações psíquicas não se dão no interior das cadeias significantes mas num embate "corpo-a-corpo" entre analista e analisando, onde, como vimos anteriormente, o corpo, atravessado por marcas e impressões arcaicas, comporta intensidade, afetividade e intencionalidade.
É no interior das "atuações" do analisando que o analista terá que manejar a transferência - uma transferência maciçamente afetiva. Neste contexto, é o corpo que "rememora" através do agir na repetição, é preciso que o analista possa ouvir, através de uma "escuta expressiva", essa mensagem, fazendo com que marcas inscritas muitas vezes no próprio corpo e que talvez não tenham possibilidade de alcançar significação lingüística, possam transformar-se e encontrar expressão num registro, quase sempre, corporal. Esse processo é facilmente observado em mudanças na comunicação sutil dos analisandos, através sobretudo, das expressões corporais: um tom de voz metálico se suaviza, movimentos ríspidos de "ataque e defesa" alteram-se, a postura corporal se modifica etc.. E com certeza podemos afirmar que é preciso que haja, no primeiro momento, um profundo movimento de transformação do sujeito para que um segundo momento possa ser instaurado. É preciso enfatizar que este primeiro momento ao qual me referi, é permeado por exaustivas tentativas de inclusão de verbalização dos mecanismos psíquicos ali atuados, sem que percamos de vista que o trabalho de manejo do "corpo-a-corpo" desloca marcas e impressões arcaicas, trazendo possibilidades de transformação, mesmo que estas não sejam nomeadas.
No campo psicanalítico, Ferenczi e Winnicott mantiveram-se no limite de um certo tipo de psicanálise porque sempre tiveram a intuição de que o procedimento de deciframento não é o todo do processo terapêutico. Há um momento que não se trata de traduzir em fantasmas ou significantes, onde as palavras sobram ou soçobram. Há momentos onde só existe a possibilidade do silêncio, onde é preciso compartilhar, entrar em sintonia e fazer surgir o inominável que se faz presente em ato, em acontecimento, que faz sentido como afeto sentido, mas não significa, na medida que não se exprime por significantes.
Neste contexto, a lógica de intervenção clínica não se estabelece dentro de um referencial teórico que tenha como postulado fundamental a interpretação, na medida que, como vimos anteriormente, o mecanismo psíquico que rege, por parte do analisando, esse momento do processo terapêutico é o da compulsão à repetição cuja movimentação psíquica se dá à margem das cadeias representacionais. Como vimos no tópico sobre a constituição da subjetividade, a emergência do conceito de pulsão de morte, leva Freud a conceber uma segunda teorização sobre o aparelho psíquico, onde o fenômeno da compulsão à repetição aponta para a existência de acontecimentos psíquicos que nunca se inseriram no plano das inscrições representacionais. A concepção teórica de um id que se situa para além do inconsciente recalcado, onde circulariam um conjunto de inscrições/impressões psíquicas que nunca passaram por processos lingüísticos, abre a perspectiva de se pensar uma outra lógica de abordagem clínica que se estabelece aquém e além da linguagem, centrado na possibilidade de um psiquismo mais abrangente norteado pelo corpo afetivo e expressivo.
Durante alguns anos atendi um rapaz que tinha experienciado no início de sua vida uma drástica história de abandono: sua mãe adepta do movimento hippie o havia deixado aos cuidados de parentes próximos, partindo para uma comunidade hippie em outro país levando consigo seu irmão mais velho. A este fato constitutivo de sua vida, já que tinha apenas seis meses quando isto ocorreu, M. não conseguira ainda dar significação nem sentido. A marca do abandono era rotineiro o levando sempre ao fracasso, tanto nos estudos quanto nas relações amorosas. M. havia me procurado por não conseguir fazer o luto de uma namorada que o abandonara. Após uma tentativa de suicídio, M. largara os estudos, dormia e alimentava-se mal, além de fazer uso no seu cotidiano de grandes quantidades e variedades de drogas. M. não aceitava medicação psiquiátrica e mantinha comigo uma transferência maciça. Seu atendimento durante um bom tempo foi permeado por "atuações" freqüentes o que me exigia, muitas vezes, uma atitude terapêutica ativa e conseqüente manejo da relação de transferência a qual era marcada radicalmente pela ambivalência afetiva que encontrou seu ápice quando M. levou para a sessão uma arma e tomado por um enorme sofrimento me disse que não sabia se matava a ele ou a mim. Momento crucial onde nenhuma palavra se fez possível - somente ouvi-lo numa descarga de ódio e choro desalentado.
Ao longo de cinco anos atendi M. e acompanhei seu desespero que, dentre muitas formas, se apresentava com freqüência associado a perdas amorosas, seguidas de acidentes pessoais os quais acarretavam, sem exceção, lesões corporais que o levavam ao retiro domiciliar para recuperação. Nessas diversas ocasiões, o atendi domiciliarmente, o que foi fundamental, na medida que na transferência eu entendia seus "adoecimentos" como medida de proteção, contenção e pedido de maternagem. Após tais acidentes M. passava por períodos de maior serenidade, sempre permeados por muita tristeza, durante os quais era possível um trabalho terapêutico mais voltado para processos associativos.
Num determinado momento de seu tratamento, talvez por volta do terceiro ano de atendimento, M. encontrou um recurso que lhe possibilitou um apaziguamento interno: a prática da tatuagem. Por três momentos acompanhei esse processo, no qual M. logo após terminar uma relação amorosa, sentia uma ameaça de desestruturação onde a depressão ficava à espreita e ele se tatuava. Através da inscrição de uma imagem em seu corpo - inscrição de um signo no corpo próprio - buscava dar sentido a um objeto perdido, não pela via exclusivamente verbal, mas pela via da inscrição do acontecimento psíquico no próprio corpo. É lógico que podemos argumentar que a impressão da imagem já se constitui como linguagem, sem dúvida, dependendo do referencial teórico que tivermos, mas estou querendo enfatizar a dimensão de ação do processo. Neste contexto, a inscrição de um símbolo ( tatuagem ) no corpo pode ser tomado como parte fundamental da elaboração de um conflito psíquico na medida que a inscrição de um acontecimento psíquico no corpo surgiu como recurso alternativo às redes de representação. O sentido aqui não se dá no registro da significação, mas no da expressão através da impressão da imagem. O sentido, conforme a compreensão que desejamos imprimir na leitura deste fragmento clínico, não depende exclusivamente de vocabulário e sintaxe, depende também da expressividade veiculada pelo corpo. Neste contexto, o processo de significação só tem possibilidade de se estabelecer num interjogo com o não-lingüístico expressivo/corporal, na medida que concomitante e posteriormente aos processos de impressão das imagens, M. pôde elaborar e dar uma significação às inscrições feitas em seu corpo. Provavelmente esse mecanismo onde o corpo se apresenta imbricado na resolução de conflitos psíquicos é vivido por qualquer sujeito de maneira não consciente, o que nos leva a pensar que seria fundamental conferir ao corpo/psíquico/afetivo potência nos processos de semiotização.
Marisa Schargel Maia
E-mail: bonfanti@centroin.com.br
1 - Esse artigo está publicado no livro: Corpo, afeto, linguagem: a questão do sentido hoje. Benilton BezerraJr. e Carlos Alberto Plastino (orgs) - Rio de Janeiro: Contra Capa. 2001.
2 - Psicanalista, Doutora em Saúde Coletiva - IMS/ UERJ. Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos - EBEPE.
3 - Pode parecer contraditório falar de marcas corporais internas já que se trata da superfície do corpo, mas aqui nos referimos aos afetos vividos que vão marcando o corpo, sua expressão, como, por exemplo, uma postura retesada, uma curvatura de costas pronunciada etc.
4 - Wilde,O. O retrato de Dorian Gray.
5 - O termo significação identitária, remete a um instrumental coletivo de linguagem referido a uma lógica conjuntista identitária. Para um maior aprofundamento ver em A instituição imaginária da sociedade de Cornelius Castoriadis. Ed Paz e Terra. 1995.
6 - Essa terceira definição é sem dúvida a mais problemática, mas esperamos que no decorrer do trabalho seu significado fique mais claro. A indagação que nos guia para esta definição é: porque o sentido se diz imediatamente da expressão de um corpo?
7 - Duran,W. A história da filosofia. Ed. Nova cultural. RJ. 1991.
8 - Gil, J. Metamorfoses do corpo. Ed. Relógio D'água. Lisboa. 1997.
9 - Freud, S. Mais além do princípio do prazer(1920). In ESB. SP.Imago.1976..Pg.49.
10 - Quando mencionamos um psiquismo assignificante, estamos nos referindo à um psiquismo que porta significação mas que não se estabelece por referência à uma lógica de significantes.
11 - A biologia contemporânea e a psicologia experimental tem nos trazido inúmeras contribuições, no que diz respeito ao desenvolvimento precoce infantil, para um maior aprofundamento, ver O mundo interpessoal do bebê de Daniel Stern. Artes Médicas. Porto Alegre. 1992.
12 - Ferenczi,S. "Transferência e introjeção"(1909) in Escritos psicanalíticos, org. Joel Birman. Livraria Taurus ed. R.J.1989.
13 - Idem.Pg.37.
14 - Pinheiro, T. Ferenczi: do grito à palavra. J. .Zahar ed. RJ. 1995.
15 - Ferenczi,S. " O problema da afirmação do desprazer"(1926), in Escritos psicanalíticos (org. Joel Birman). Ed. Timbre Taurus. 1989. Pg. 284.
16 - Freud,S. Inibições, sintomas e ansiedade (1926[1925]).S.E. vol XX. Ed.Imago. RJ.1976. pg.162.
17 - Plastino, C. A aventura freudiana. Ed. UFRJ. RJ. 1993. Pg. 129.
18 - Birman,J. Freud e a interpretação psicanalítica. R.J., Relume -Dumará, 1991. Pg.230.
19 - Sublinhemos que apesar de estarmos dando ênfase naquilo que da arte é atemporal, compreendemos que existe uma outra dimensão que concerne aos movimentos culturais e suas diferenças, os aspectos apolíneos da arte, os quais obedecem a outros critérios de avaliação.
20 - Freud, S. ( 1930 [ 1929] ) O mal-estar na civilização, in E.S.B. vol.XXI. Rio de Janeiro, Imago, 1976.
21 - Op.cit. p. 86
22 - Daniel Stern nos propõe uma teoria funcional dos mecanismos psíquicos cujas bases se sustentam sob três vertentes teóricas: teoria clínica psicanalítica, etologia e observação experimental de bebês. A partir destes três referenciais, o autor traça uma nova abordagem sobre o desenvolvimento precoce infantil.
23 - Não pretendemos reproduzir a série de experiências que levam o autor às suas conclusões, para um aprofundamento indicamos seu livro, O mundo interpessoal do bebê, Porto Alegre, Artes Médicas, 1992.
24 - Op. Cit. Pg.40
25 - Op. Cit. pg. 41.
26 - Este tipo de memória, Stern vai trabalhar no capítulo 4 deste mesmo livro.
27 - Op. Cit. pg.58
28 - Winnicott,D.W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago Ed., 1975.
29 - Citado por Elizabeth Laborde Nottale em La videncia y el incosciente. Buenos Aires, Paidos, 1992, p. 158,159.
30 - Para um maior aprofundamento sobre a idéia de apreensão e criação de sentido no real ver em Cornelius Castoriadis quando trabalha o conceito de magma em Feito e a ser feito-as encruzilhadas do labirinto V . DP&A. Rio de Janeiro. 1999.
31 - Essa dimensão da constituição do sujeito é trabalhada extensamente em A imagem inconsciente do corpo de Françoise Dolto. Ed. Perspectiva. SP. 1992.
32 - Winnicott, D.W. A criança e o seu mundo. Ed. Zahar. RJ. 1982.
33 - Por "novas-velhas" patologias entendemos todas as atuais síndromes contemporâneas, incluindo a depressão, drogadicção, casos limites, entre outros. Nomeamos estas patologias por "novas-velhas" porque, sob nossa perspectiva, elas não apresentam nenhuma novidade psicopatológica. Sua novidade reside na abundância que as encontramos no quadro da clínica contemporânea.
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