|
O não-dito como operador na clínica com crianças e adolescentes1
Miriam Debieux Rosa
Resumo
Proponho-me a mostrar o não-dito como um operador que permite conhecer a articulação dos discursos dos pais e da criança com o sintoma. Mais especificamente pretendo demonstrar a relação dos sintomas na infância, particularmente os atrasos de desenvolvimento e os distúrbios de aprendizagem e de comportamento, com os dados da história da criança e/ ou da família que supostamente a criança não conhece e são relatados ao analista pelos pais. Também pretendo demonstrar a complexidade com que os conceitos de alienação e separação se presentificam na clínica. Quanto à intervenção, sinalizo algumas direções durante o desenvolvimento do texto.
Palavras-chave: não-dito, história, psicanálise com crianças, psicanálise com adolescentes.
The unspoken as an operator in the psychoanalytical clinic whit children and adolescents.
Abstract
I intend to demonstrate that the "not-said" is a clinical instrument which enables us to get to know the articulation of the parents' speeches and that of the child with the sympton. More specifically, I intend to demonstrate the relationship between the symptons in childhood, particularly that of delayed development and learning and behavior disturbances, and the data of the history of the child and/ or of the family, which supposedly the child does not know and is told to the analyst by the parents. I also intend to demonstrate the complexity with which the concepts of alienation and separation make themselves present in our clinical work. In relation to intervention, I make some indications throughout the development of the text.
Key-words: "not-said", history, psychoanalysis with children, psychoanalysis with adolescents.
Apresentarei neste trabalho algumas das preocupações e reflexões frente às dificuldades no atendimento psicanalítico com crianças e adolescentes. Proponho-me a: mostrar o não-dito como um operador que propicia perceber como se articulam os discursos dos pais, da criança e o sintoma. Mais especificamente pretendo demonstrar a relação do sintoma na criança, particularmente os atrasos de desenvolvimento e os distúrbios de aprendizagem e de comportamento, com os dados relativos à historia da criança e/ou da família, relatados ao analista pelos pais, os quais, supostamente, a criança não conhece; demonstra a complexidade com que os conceitos alienação e separação comparecem na clínica; quanto à intervenção, sinalizo algumas direções durante a discussão.
O não-dito surge como operador na clínica
Utilizo como caso emblemático um primeiro atendimento em que esta questão me enlaçou. Trata-se de um atendimento em ambulatório de saúde pública, em que a mãe foi chamada para entrevista e levou João, de seis anos, que ficou junto, brincando na sala. Ela relatou que adotara João pois sua mãe, parente distante, morrera louca, depois de algumas internações psiquiátricas. Explica que nunca contou tais fatos à criança esperando que ela crescesse para compreender o que aconteceu. Fiquei surpresa e intrigada. Ela afirmava que a criança não sabia de algo que relatava na presença dela! Perguntei se aquela situação era comum, ao que ela me disse que sim, comentava com vizinhos e parentes, mas achava que a criança estava distraída e não prestava atenção. Ressalto que a queixa sobre a criança era, além de medos, que, na pré - escola, a mesma era dispersa, desinteressada das tarefas escolares e que só queria brincar. A escola pensava em atraso na aquisição dos pré-requisitos para alfabetização.
Ao atender a criança, esta realmente, não mostrava indícios de saber da adoção e dos problemas de sua mãe de sangue. No entanto, os seus desenhos e as histórias que inventava, eram alusões quase que diretas aos fatos excluídos do seu relato verbal.
A situação é aparentemente absurda porque o que seria um segredo, o que a criança não sabe é, muitas vezes, ouvido e/ou visto. Com outros tipos de história, com outros temas, várias outras vezes a questão reaparece na clínica.
O absurdo está ancorado na insólita observação de que o sintoma na criança é atravessado pelo não-dito dos pais. Insólita, na medida em que olha-se a partir do imaginário social, que afirma o campo do individual. Mas que faz compreender o que significa dizer que o inconsciente é o discurso do Outro.
Faz-se necessária, portanto, a análise do discurso do Outro que atravessa a criança para compreender seu sintoma. Para isto enfrentaremos a articulação entre a constituição subjetiva e o discurso, enfatizando-se aqui o efeito do discurso, particularmente o não-dito, na produção sintomática do sujeito.
A hipótese desenvolvida sobre a produção de sintoma na criança é de que há efeitos na constituição da subjetividade quando há distorção, supressão ou interdição de significantes fundamentais pois estes impedem a articulação significante e a produção do sentido. Constatamos que determinados não-ditos bloqueiam a articulação do significante, e em seu lugar preconizam uma única versão como a verdade, que não se apresenta como um significante mas como um significado que sintetiza o ser da criança. Esta, na impossibilidade de articular seus saberes, expressa-os no sintoma, seja alterando sua possibilidade de conhecer e aprender, seja transformando em atos, aspectos do não-dito.
Constatando a alienação e separação a partir do não-dito
O valor da palavra e a força do não-dito expressa-se no cotidiano e conhecido contrato: "não conte nada para ninguém", que exemplifica como, muito mais do que a ação, é o dito que, freqüentemente, é interditado. Tal observação do cotidiano mostra como é de conhecimento público o poder da palavra. Tome-se o caso clássico do Homem dos Ratos2 o qual, em lembrança de 4 a 5 anos, relatada na análise, ele pede permissão de esgueirar-se sob as saias da governanta, Srta. Robert. Ela consente desde que ele não diga nada a ninguém.
O não dizer - os segredos, a supressão de dados da historia - aparece com frequência em casos de adoção, mortes, doenças, defeitos, questões de ordem moral como delitos vários, injustiças, infidelidades, etc. Vários autores detiveram-se em perguntar sobre seus efeitos. Julien3 pergunta-se como conduzir a questão da transmissão da história notando que as crianças do nazismo, tanto filhas de judeus como de alemães, são mantidas longe da história de seus pais.
Aponto alguns elementos sobre o poder da palavra . São eles: os enunciados não valem por si, pelo explícito, pelo fato relatado em si, mas pela enunciação concomitante e pelo posicionamento do falante. O seguinte é: o dito tem valor enquanto palavra que funda o fato e faz registrar a história; é a palavra como testemunho que institui a história. História, não tomada como fatos, mas como tramas de significâncias, tramas de sentido. Este dito, bem dito, abre para a dimensão subjetiva e remete à intersubjetividade.
O ganho e o risco de dizer é que este pode abrir para novos sentidos, abrir para o enigma do sujeito e retirar o sujeito do refugio narcísico, defrontando-o com a equivocação. O equívoco refere-se a que o dito, o enunciado, trás consigo uma enunciação, ou seja, vai além da intenção e trás junto a palavra recusada, aquilo que não se quer dizer. Ou seja, o dito tem efeito sobre aquele mesmo que fala - o processo analítico mostra isto - pois produz uma separação em si mesmo e faz enfrentar o estranhamento de si mesmo, o desconhecido no próprio ser. Desta forma é pelo dito que o sujeito se reconhece e faz reconhecer, sendo que o dito pode retornar ao que fala como descoberta, nem sempre a esperada.
Outro aspecto do poder do dito que justifica a vacilação de dizer, tanto da parte do que proíbe o dizer como do que acata a proibição, diz respeito à incompatibilidade entre o desejo e a palavra. O desejo só pode ser apreendido a partir de sua encenação. A palavra substitui a vivência e, nesta medida, o dizer nunca parece suficiente para expressar a vivência, seja na sua intensidade, seja na amplitude em que impacta o sujeito. Lançar-se na palavra é perder o gozo da vivência, inapreensivel como tal.
Calar parece tanto preservar as vivências, agradáveis ou traumáticas, mantidas incólumes, inquestionáveis, como mante-las inacessíveis ao Outro e aparentemente sob controle de quem cala. Nesta medida, calar pode ter função de alienação por dois lados: por manter-se no refugio narcísico e por manter-se submetido a uma ordem instituída como condição para pertencer ao grupo. Mas calar pode ter como função a separação - pois calando a criança pode manter a recusa à realidade imposta pelo adulto, uma vez que o calar abre a possibilidade do diálogo interior, diálogo para o outro em nós. Ele pode facilitar a criação do imaginário ao manter algo íntimo, inacessível ao outro. Assim, calar pode propiciar, justamente, escapar da opressão, do totalitarismo e preservar-se do controle do outro. Da mesma forma, em certos dizeres há possibilidade de produzir a alienação: dizer apenas o que o já foi dito apaga a produção de novos sentidos e determina um lugar social imobilizante, produzindo uma imagem estática, definitiva do sujeito.
Voltando ao nosso tema com estas formulações, vemos que, os pais, ao dizerem sobre as mazelas, temem perder o controle, a autoridade e a direção das normas, ideais e valores que pretendem transmitir pois não é previsível o efeito do que o filho vai pensar ou fazer com o que sabe. Os pais temem o risco de não preservar seja o ideal do ego, seja o ideal narcísico da criança, de um dos pais, da família ou mesmo da comunidade. Não dizer é a solução encontrada para o que supõem que pode destruir a criança e a relação da criança com eles. Há componentes morais, de culpa, frustração e de dívida, não trabalhados nos pais e que alteram a sua relação e seu discurso com o filho. Evitam falar de sua história como forma de evitar enfrentar a ferida narcísica e a angústia que tais temas desencadeiam neles mesmos e que, supõem, estão poupando aos filhos. Um exemplo recente de como esta forma de promoção da alienação é dissiminada é o recente filme, premiado pelo Oscar-99, A vida é bela. Neste, a criança fica submetida a perceber o mundo apenas através dos olhos do pai.
Lembramos, no entanto, que os pais, também estão submetidos aos processos inconscientes e não tem claro o que nos acontecimentos os fez emudecer. E, que fique claro, outro ponto- não advogamos falar tudo pois este passa por outros canais que não os analíticos, como a exposição ou confissão. E, mais do que tudo, o festejado amor pela verdade pode se tornar destrutivo quando se esquece que é impossível uma enunciação ser exaustiva, completa e que, no dizer, estão presentes o mal dito e o mal entendido.
Porem, ao não dizer, os pais não calculam outro risco: o efeito da supressão de significantes fundamentais para dar andamento à constituição subjetiva. Sem tais significantes pode-se ficar apegado a um único significado, quando o não-dito passa a ter relação com o sintoma, na medida em que pode-se tanto aprisionar a criança no terror de uma verdade única, imutável e dominada pelos pais, como lançá-la em uma repetição desatualizada e fora do contexto.
Lacan indica alguns caminhos para apreender o não-dito, assim como para trabalhar na clínica. Elucida a presença do não-dito quando afirma que "o inconsciente é esse capítulo da minha história marcado por um branco ou ocupado por uma mentira; é o capítulo censurado. E acrescenta: " Mas a verdade pode ser reencontrada: freqüentemente já está escrita em Outra parte. Ou seja:
- nos monumentos: meu corpo, isto é, o núcleo histérico da neurose onde o sintoma histérico mostra a estrutura de uma linguagem e se decifra como uma inscrição que, uma vez recolhida, pode, sem perda grave, ser destruída;
- nos documentos de arquivos também: e são as recordações de minha infância, impenetráveis como eles, quando eu não conheço a proveniência;
- na evolução semântica: e isto responde ao estoque e às acepções do vocabulário que me é particular , assim como ao estilo de minha vida e a meu caráter;
- nas tradições também, e mesmo nas lendas que, sob uma forma heroicizada, veiculam minha história;
- nos rastros, enfim, que conservam inevitavelmente as distorções, necessessárias para emendar o capítulo adulterado nos capítulos que o enquadram, e das quais minha exegese restabelecerá o sentido."4
Os efeitos sintomáticos do não-dito
Destacaremos para analisar, dois efeitos do não-dito observados na clínica: a articulação do não-dito da história aos atrasos de desenvolvimento e ao empobrecimento ideativo e, segundo efeito, a repetição, na ação do filho, do não-dito dos pais.
A - A articulação do não-dito da história aos atrasos de desenvolvimento e ao empobrecimento ideativo
Na articulação do não-dito da história aos atrasos de desenvolvimento e ao empobrecimento ideativo, duas perguntas podem ser colocadas: o que leva a criança acatar o mandato de não-saber dos pais e como o mandato se amplia para outros saberes, afetando o desenvolvimento. É o que ocorre com Carlos de quatro anos, com atraso de fala, motor e a preocupação da mãe que considera que ele não entende o que se fala para ele. Como pode entender da adoção se nem as cores sabe, pergunta a mãe. Demonstra a sua teoria com dois lápis de cor; ensina suas cores e depois pergunta para Carlos: qual é o azul? Ele aponta o vermelho, confirmando a previsão materna.
Auxiliada por este caso, saliento sinteticamente alguns aspectos que movem a criança na direção de acatar o mandato de não saber dos pais. Um primeiro ponto diz respeito a que a estruturação da criança dá-se em função do desejo dos pais: em função deste desejo organiza seu Eu, quando encarna este desejo e, desta forma, divide-se, fundando o sujeito do inconsciente. Pensando o ser da criança se estruturando em função do desejo dos pais é necessário, na clínica, determinar qual é o lugar da criança no desejo dos pais.
Esta explicitação nos conduz a que, confirmar o personagem demonstra o reconhecimento da dependência da criança a este desejo e de sua necessidade de que perdure. A criança busca, como os pais, cooperar para preservar seja o ideal do ego, seja o próprio narcisismo ou de um dos pais A alienação, aqui, diz respeito à dependência do sujeito ao Outro, lugar dos significantes. A verdade do desejo só pode ser atingida através do Outro. No nível imaginário, a significação da alienação, constituinte do Eu, aparece na relação que estrutura no sujeito na relação dual do Eu com Eu.
Notamos, no entanto, que a alienação não é total e várias estratégias são utilizadas pela criança, indicando que a articulação do fantasma dos pais e da criança não supõe relação de causa ou de igualdade: destaco a estratégia de Fernando, criança adotada com um ano, obediente, produção escolar pobre, que tornara-se fóbico. É lento para responder, sempre monosilábicamente. Com uma característica: antes de responder murmura baixinho algo como um balbucio. Espaço indecifrável que o resguarda da total submissão. Seria um esboço de transgressão ao imperativo materno de manter-se ignorante de um saber próprio sobre seu ser?
Avançando, observa-se que, ao preservar o Eu, a criança preserva também o saber, com o estatuto de fantasia. Não dizer não é não saber. Há que distinguir conhecer de saber, saber sobre a realidade ou sobre o desejo; e de distinguir saber de dizer. Saber e conhecimento não coincidem: o saber refere-se ao sujeito, o conhecimento ao Eu5. O Eu só toma conhecimento da parte do saber do sujeito que não o ameaça em suas premissas básicas. Já o saber é tratado pelo Eu como mera fantasia quando a sua presença no discurso pode ameaçar desmoronar a identificação. De outro lado, tal presença pode também lançar o sujeito no desejo de saber.
O desejo de saber é criado a partir do desejo de saber sobre o desejo do Outro6. Explicando: a criança percebe que o amor de sua mãe por ela é anterior a ela; quer saber o que o causou. O pai, que supostamente, sabe sobre o desejo materno, interdita esta busca. Caso a criança não transgrida parte desta interdição corre o risco da inibição intelectual. Na inibição ela não quer saber sobre o desejo, o que pode resultar em dificuldades de aprendizagem.
Como investigar e aprender caminham juntos, quando investigar é proibido, proíbe-se junto o aprender pois passam a imperar os mecanismos de negação, a repressão ou a inibição. Ou seja, nos casos de supressão de acesso à significantes fundamentais, podem haver atrasos de desenvolvimento e problemas de aprendizagem.
Trabalha-se, portanto, com a idéia de que, pelas vicissitudes de seu processo de subjetivação, a criança não quer saber, quer manter-se ignorante frente a seu desejo, confirmar o personagem criado pela mãe, aprisionado a ela sob o preço de déficits de desenvolvimento. A criança - e não estamos falando da psicose - vive como se não houvesse algo mais alem do imaginário da mãe. Seria o império da alienação? O analista, solitariamente, pode empenhar-se em desfazer esta construção. Inútil, quando a criança não quer saber. É preciso compreender esta posição - de não querer saber sobre si. Até porque, lembramos, não há como o sujeito se apreender no que é e se assegurar no seu ser pois, na busca deste, encontra a identificação imaginária. O sujeito aliena-se no próprio momento em que se identifica com um significante, identificação necessária com o significante que torna-se linha mestra para o sujeito - define-se e comporta-se como tal, fica congelado - falta a sua parte viva, seu gozo. Falta ver, confrontar-se com seu gozo, função da análise7.
Como resultado temos que, em vez da transgressão para lançar-se no desejo de saber, a criança aliena-se, vive o imaginário da mãe, atualizando em si mesma a ferida narcísica materna , realizando o gozo materno e não seu ideal. Desta forma, a separação passa necessariamente pela questão dirigida à mãe: pode perder este gozo? Ou pode perder este que pensa que eu sou? Roberto, tímido e frágil, depois de uma sessão em que ousa e brinca e, como médico, examina o corpo da mulher, percorre os seus orifícios, não quer entrar sozinho na sessão seguinte - leva a mãe. Conversando com a mãe, a criança percebe que esta continua bem e alegremente alheia e indiferente às suas descobertas. Permite então que saia da sala e prossegue as suas investigações.
Estamos ainda na questão do gozo, agora da criança. Uma forma de gozo é, uma vez aderida ao discurso materno, a criança manter-se alheia à castração que a lançaria como sujeito. Assim faz Carlos ao não saber as cores, alienando-se no gozo materno, sem acesso aos significantes da filiação; a alienação da criança no desejo dos pais sinaliza o fracasso da articulação dos significantes da filiação e da Lei. Ele "sabe" que não é filho e goza, seja não atendendo às solicitações e tentativas de ensiná-lo e educá-lo, seja de forma drástica, tentando afogar-se com um plástico ou mesmo comendo do lixo.
Notamos na clínica que os pais contribuem para isto, quando se dirigem aos filhos, movimentando-se entre dois pares de representação da criança: a relação pais-filhos, atravessada pelas subjetividades e a relação adulto-criança, atravessada pelo imaginário social. O olhar adulto-criança inscreve-se das expectativas sociais de desenvolvimento e adaptação. É o olhar especialista, que demanda "consertos" na criança. A dimensão subjetiva fica escamoteada neste olhar que encontra afirmação nos pediatras, professores, psicólogos, psicanalistas. A mãe de Carlos, diante de seu comportamento com o lixo, pergunta, olhando para ele como uma criança e não como filho - seria sua família (refere-se a de origem) pouco higiênica? Como é em sua casa? pergunto-lhe, indicando-lhe que é desta família que Carlos retira os significantes. E chegam, por esta via, os significantes relativos à sexualidade e ao pai.
Cabe à escuta psicanalítica retomar a dimensão subjetiva, na medida que atribui ao sintoma valor de mensagem e centra-se nos significantes que ditam as regras do jogo do dizer, que esclarecem o mito familiar que determina o acesso, ou não, aos significantes da sexuação, da origem, da filiação.
Nesta medida a presença dos pais no atendimento é um efeito de estrutura, que remete à castração da criança e dos pais: trabalha a possibilidade da separação. Atende-se os pais para produzir um efeito analítico que permita dar continuidade à análise8.
Outro aspecto do gozo é o não querer saber sobre a castração; o que a criança não quer saber? Ressaltamos a importância da função paterna, em sua função simbólica de devolver ao sujeito o seu enunciado, de implicar o sujeito-criança a seu desejo, interditando a relação mãe-filho e retirando-o da posição de quem nada sabe sobre o desejo,e possibilitando-o ao desejo de saber. Quando o pai falha em sua função o sujeito não advém. O sintoma mantém o Eu no gozo de não saber sobre o desejo que o anima, mantém na inocência e no desejo de que saibam por ele. Em suma, sem a substituição do desejo da mãe, pela palavra do pai, a criança não tem acesso ao simbólico e obstrui, assim como vê obstruído, o seu acesso a investigar e aprender.
B - A repetição na ação do não-dito dos pais
O segundo efeito do não dito dos pais, observado na clínica psicanalítica, é a repetição da ação no filho, do não-dito dos pais. Mas não é desta forma que a questão se apresenta na clínica, na qual o fazer nos chega pelas questões dos pais sobre o comportamento dos filhos e também quando nos defrontamos com os seus comportamentos nas sessões. Observa-se nestas situações que, muitas vezes, a criança ou o jovem não se reconhecem no que fazem. O fazer, premência humana de marcar presença, fica perturbado quando a sua determinação está fora da apreciação do eu. Deparado com o estranho e mesmo o incontrolável no próprio sujeito, constata-se nele seja indiferença, seja estranhamento, seja impotência frente à própria ação, assim como a falta de apropriação da sua ação. Alegam, então, inocência em seus atos, ou que foram acidentais, "foi sem querer", ou simplesmente negam ter agido, atitudes constantes nos chamados distúrbios de comportamento ou atos anti-sociais.
Parte-se para problematizar a relação do sujeito com seus atos, trabalhando a dissociação do ser e do fazer ou, como diria Chico Buarque, a distancia entre intenção e gesto. Exemplifico com o menino Luis, de cinco anos, que olha, surpreso, a sua mão atirar-me um cinzeiro. "A quem obedece esta mão?" pergunto, procurando palavras para expressar a perplexidade que observo. Na distancia entre intenção e gesto aparece a estranheza, o não reconhecer a si mesmo "não estava em mim", "eu não sabia", diria Édipo, na inocência daquele que se vê regido pelo Outro. A quem obedece esta mão? Não ao Eu, ou ao sujeito, ou ao objeto - é puro Outro em mim, Outro que tudo pode, não tem lei, não é castrado e lança no horror de não ser aquele que se julga. E, mesmo assim, o sujeito há, a posteriori, de se haver com o ato. É pela identificação ao que é, sem querer, que o reconhecimento se torna possível , no discurso que faz surgir o significante que reencadeia, historiza e humaniza o ato.
Nos perguntamos como se dá a transmissão quase literal do que não é dito, a ponto da criança reproduzi-lo em seus atos. Esta observação também é o tema do trabalho Os filhos do holocausto e os filhos de seus filhos9 que detecta que os filhos dos sobreviventes traziam traços pseudo-psicóticos, caracterizados pela reprodução não verbal da experiência dos pais e pela reprodução da relação perseguido/perseguidor nos jogos transferenciais e pergunta sobre como as filhas transmitem um mundo de terror que elas próprias não conheceram.
Acrescentaremos às idéias anteriores sobre o não-dito e seus efeitos mais uma hipótese de trabalho: interrompido o fluxo do dizer, bloqueados o pensamento e as associações, é na dimensão das ações que aparecem as questões. Freud observou este fenômeno na análise quando problematizou a transferência. Procuraremos demonstrar como o não-dito retorna na ação da criança, através dos conceitos de repetição e identificação e da problemática de significação e de dissociação entre o ser, o fazer e o dizer, que aí se instala.
Elencamos algumas hipóteses quanto à transmissão do não dito. Para compreender o processo deve-se primeiramente, transferir o foco da palavra para o significante. O significante não se reduz ao terreno das palavras, não reconhece a propriedade privada, não é próprio de ninguém; cruza, circula, atravessa gerações, trespassa o individual, o grupal e o social10. Chega, portanto dos pais para o filho que, usualmente, articula com outros significantes para produzir sentido. Pensamos que, no caso do não-dito, na impossibilidade de articular para produzir o sentido, a criança captura o significante identificando-se com ele e, desta forma, produz na ação a repetição de algo do desejo não elaborado dos pais, presente como não-dito no seu discurso. Como é significante não articulado, irrompe no filho como repetição literal.
Esmiuçando o processo, a partir de observações clínicas, diremos que certos não-ditos promovem a relação com o filho pautada pelo descompasso entre o dito e o expresso, pela ambivalência, que não permite à criança engatar-se em uma posição frente ao desejo dos pais. O filho, ávido por engatar-se na relação com o Outro, mas também irado e culpado pelo abandono, busca o controle da situação de forma lúdica. Brincando, usualmente as crianças exorcizam seus medos buscando passar da posição passiva para a ativa para, buscando ser o que temem, controlar a angústia. Mas, nestes casos, quando buscam separar-se, dá-se o próprio movimento de alienação uma vez que é desencadeada uma identificação do filho com o não-dito dos pais. Identificação que, pensamos, ocorre como um arremedo, um chiste que denunciaria as atitudes dos pais. Mas que, também, em virtude da culpa, tem função de retratação das críticas e do ódio aos pais e objetiva, fazendo-se igual, uma tentativa de fazer-se merecedor do afeto parental. Neste jogo, o lúdico se perde e deixa de regular a cena, quando ficam condensadas a experiência da mãe e da criança o que aprisiona a criança no imaginário materno. Desta forma, compreende-se que no não-dito dos pais expresso no comportamento do filho, há processos de identificação que se enlaçam com mecanismos de repetição, em que é o Outro que se comporta travestido de Eu. O Outro agindo no sujeito dá-lhe a sensação de estranheza. Antes porem de abordar este aspecto, que aponta para a separação, vamos abordar o gozo presente nestes comportamentos.
Todo comportamento tem uma intenção mas, uma vez desencadeado, tem efeito imponderável no próprio sujeito, no objeto e no discurso do outro sobre ele. Isto porque, o comportamento, qualquer comportamento, por sua proximidade à pulsão, está sempre ligado à sexualidade, em sua qualidade infantil e perversa. O sujeito é dividido pela pulsão; na cadeia de significantes o sujeito descobre algo sobre seu inconsciente como saber; na pulsão descobre-se como sujeito libidinal, descobre o gozo11. As pulsões não falam porque se satisfazem silenciosamente na ação; a pulsão institui um corte com o Outro do significante e do sentido mas instaura um laço com o desejo do Outro(não com o saber). Em sua premência de saber sobre si, o sujeito pode recorrer ao ato. O ato cria uma cena no real que encena o desejo e abre possibilidade de ser falado pelo Outro. Em vez da pergunta - quem sou ou o que querem de mim, há a resposta: faço, logo sou - em que são produzidos atos para provar a existência. Trata-se de uma negação da impossibilidade de autoconstituir-se prescindindo do investimento do outro. É tentativa de escapar da alienação no significante, alienação que encobre ou negligencia o fato de que, o sujeito se define não apenas na cadeia de significantes mas, ao nível das pulsões, em termos de seu gozo em relação ao outro. Mas, com a interrupção do fluxo do dizer, o sujeito goza, na ação, o desjo do Outro. Nesta situação não há estranheza mas calmaria apesar dos efeitos e das queixas que os comportamentos provocam. Logo, há gozo na atuação do desejo do Outro, gozo ligado à realização pulsional; e gozo pela falta de apropriação do comportamento, já que diz respeito ao Outro.
No entanto, se o sujeito deseja o gozo, deseja também o reconhecimento - existir na relação com o outro, reconhecimento não tem nada a ver com aprovação. "A gente não quer só comida..." dizem os Titãs. Não só pão, não só gozo, também sentido que articula ambos - significante e gozo - na dimensão da linguagem, ou seja, na relação com o Outro, do qual precisa reconhecimento para existir. Não escapa, portanto, de perguntar-lhe: o que quer de mim? A separação envolve, não o saber do Outro, mas o desejo do Outro. A constatação sobre o que sou eu no desejo do Outro fica enevoada com a colagem ao desejo materno. Volta-se , então à questão da estranheza frente ao comportamento.
A estranheza ocorre quando opera-se a separação - só na separação o sujeito constata sua alienação no significante ou no gozo. Deve-se, argumentamos, à constatação do sujeito de que a sua ação pode ser, em várias circunstâncias, efeito de repetição, algo que impõe-se ao sujeito como um azar do destino, à revelia do ego, pois regulado pela articulação significante que circula entre as gerações, o que ofusca a divisão eu-outro. A ação produz-se nele, respondendo a um mandato que diz respeito à ascendência. O comportamento como repetição presentifica o que não pode ser rememorado12.
A repetição tem efeito sobre a identificação pois o fazer do sujeito fica dissociado do ser. Há um impacto no sujeito quanto à possibilidade de um reconhecimento de si nesta ação. Uma idéia que atravessa o tema da identificação é que esta é um modo de pensamento que não tem necessidade de ser justificado. Apenas apresenta-se como o fenômeno "sou". Nesta medida, é impossível tornar uma identificação consciente a não ser na sua destituição13 - na separação o sujeito desidentifica-se, o que devolve a pessoa a si mesma. Só então é possível estranhar e, como Luis, surpreender-se ao atirar o cinzeiro, quando se depara com um comportamento que não é mais seu. Luis veio à análise trazido por sua mãe que, ora o queria, ora não, quando "dava-o" à avó paterna, sempre com ruptura de vínculos. Luis no inicio do atendimento, não se importava com suas ações: entrava na sala xingando, cuspia e xingava pela janela os outros clientes que passavam. Depois de várias sessões, em que parecia insensível às interpretações, passei a imitá-lo no oposto ao que dizia, para deixar exposta e fazer falhar a caricatura. Ou seja, se ele dizia aos gritos "Você é idiota, eu te odeio", eu usava as mesmas palavras no sentido oposto, do tipo: "Obrigado, você também é muito idiota!". Luis fica confuso, procura inverter as frases também e diz palavras que lhe queimam os lábios: "Você é legal". Mas eu saio do jogo e tomo estas no sentido usual. Que bom que voce acha isto!- impera o não-senso. Ele diz "assim não dá" e eu concordo com ele. A imitação é trabalho com a imagem, ofusca a relação eu-outro. Pode esta ter operado como uma interpretação, um trabalho com a identificação, operação de ruptura? Há que se pensar sobre estratégias clínicas que promovam o efeito de separação. E não só com a criança; quando os sintomas estão ligados a velhos traumas familiares não elaborados, faz-se preciso cumprir trabalho de luto também dos pais, para impedir a obsessão de reconstruir o que viveram.
Finalizo dizendo que, nesta linha o "conhece-te a ti mesmo" envolve o reconhecimento do outro engendrado no si mesmo. Age como Eu que, embora outro, deve se apropriar do ato.
Miriam Debieux Rosa é coordenadora do Laboratório Psicanálise e Sociedade do Departamento de Psicologia Clínica da USP e do Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC-SP. É também professora na graduação e na Pós-graduação em Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia da USP.
Rua Luis Pereira de Almeida, 102. Jardim Paulistano.
CEP 01431-020. São Paulo - S.P.
Tel./fax.: 11- 853-9005.
Email: debieux@mt2net.com.br
1 - Palestra realizada na mesa Alienação e separação: impasses e possibilidades de intervenção, no Seminário de Extensão Universitária Psicanálise e Linguagem: impasses na constituição do sujeito, na PUC de São Paulo, em 1999. Aborda tema desenvolvido no livro Histórias que não se contam: o não-dito na psicanálise com crianças e adolescentes; São Paulo: Ed. Cabral, 2000.
2 - Freud, S. "Um caso de neurose obsessiva."(1909) in Obras Completas de S. Freud, R. Jan: Ed. Delta S/A.
3 - Julian, Philippe (1997) A feminilidade Velada. Rio de Janeiro: Ed. Companhia de Freud.
4 - Lacan, J.(1978) Função e campo da linguagem em Psicanálise, Escritos I, Ed. Perspectiva, Rio de Janeiro, p.124.
5 - Aulagnier, Piera (1990) Um intérprete em busca de sentido. Rio de Janeiro: Ed. Imago.
6 - Kupfer, Maria Cristina (1990) Desejo de saber. São Paulo: Tese de Doutoramento, USP.
7 - Lacan, J. (1979) Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Seminário 11. Rio de Janeiro: Ed. Zahar.
8 - Lefort, R. e outros (1991) Niños en psicoanalisis. Buenos Aires: Ed Manantial.
9 - Virag. V. Os filhos do holocausto e os filhos de seus filhos.
10 - Rodulfo, Ricardo (1990) O brincar e o significante. Porto Alegre: Artes Médicas.
11 - Lacan, J. op. cit.
12 - Uma distinção possível para compreender a ação supõe separá-la em dois aspectos: o ato, diferente do comportamento. O comportamento é tomado como um fim em si mesmo, fala por si e fixa um sentido. Há intencionalidade, ligado à moral e a adaptação, à ordem do imaginário. É revolta, culpa, resposta à ascendência. O ato se faz em nome de algo, diz respeito, não às circunstâncias, mas a um real não evidente. É da ordem do simbólico e refere-se à dívida simbólica e à uma descendência.
13 - Mannoni, Octave (1992) Um espanto tão intenso. Rio de Janeiro: Ed. Campus.
|
|