E se acaso a psicanálise não sobreviver ao século vindouro? Reflexões sobre uma possibilidade não muito remota

Mário Diógenes Poplade*

Participando do Seminaire d'été de l'Association Freudienne Internationale de Paris sobre o Seminário IX de Lacan (A Identificação), na Martinica, e conversando com algumas pessoas, a pergunta que "percorreu" por mais de uma vez essas conversas foi: "E se a Psicanálise não sobreviver no ano 2000?".

Devotando alguns momentos à reflexão sobre este questionamento que se repetiu, propus-me a considerar quais seriam as conseqüências se tal fato viesse a ocorrer. Afinal, pode ser que efetivamente o século que iniciar-se-á daqui a quarenta e oito meses não disponha mais de um lugar para a Psicanálise. É uma possibilidade...

Possibilidade que debaixo da minha mais particular opinião, não seria nem um pouco interessante. Seria tão pouco "interessante" quanto a grande e única certeza que temos com relação ao século vindouro, ou seja, que ele guarda no seu interior, bem demarcado, o dia e a hora da nossa morte.

Então este evento, a nossa morte, é uma das desvantagens que estará guardada no interior deste século vindouro. Por outro lado e ponderando que a psicanálise não atinja o Século XXI, algumas outras coisas poderiam trazer em si modificações ou, dito de outra forma, alguns eventos estariam praticamente impedidos de existir e consequentemente não mais causariam danos.

Por exemplo:
Uma primeira coisa que poderia ocorrer, caso a psicanálise não sobreviver ao século vindouro, seria que um grande número de oportunidades de constatação que uma determinada pessoa pudesse ter - pelos vínculos de trabalho que tivesse constituído no interior de determinada(s) Instituição(ões) - de pronto deixariam de existir. Assim, esta pessoa seria então "poupada" de constatar algumas passagens que, pelo insólito, impor-se-iam para ser "escutadas".

A partir de então, já não se poderia mais extrair experiências e/ou depreender fatos percebidos a partir de convívios ou retirar impressões dos eventos e ocorrências que se poderia ter tido a oportunidade de constatar. Em acréscimo, também não mais se poderia depreender, uma variedade de "impressões". Impressões sobre os locais, ambientes, pessoas, posicionamentos, expectativas, conflitos, lugares de "poder", lugares de "prestígio", etc., bem próprios da instituição sócio-histórica em que a psicanálise se transformou.

Não mais havendo a psicanálise e suas instituições, também não haveria mais a possibilidade de acesso a uma gama de "informações" e suas conseqüentes "impressões". Também não se poderia mais constatar que dentre aquelas "impressões" haviam as que se apresentavam como que "desconectadas", quase sem sentido e aquelas outras possuidoras da particularidade de que sua existência quase não despertavam a atenção (enquanto não explodiam ou implodiam...) porque eram consideradas supostamente como de menor importância.

Inexistindo a psicanálise e suas instituições, também não se poderia mais verificar, na continuação, que quando aquelas "impressões" se concretizavam eram sempre as mais nefastas e violentas, porque eram exatamente as que repercutiam com maior vigor nos resultados e nas decisões que porventura tivessem surgido no interior desta(s) mesma(s) Instituição(ões).

A psicanálise e suas instituições estando ausentes do nosso cotidiano, deixaria de proporcionar a oportunidades de "escutar" no interior destas mesmas instituições, os assuntos, os comentários, as notícias, o "barulho" produzido por aqueles que se digladiavam por imaginários lugares de prestígio; na defesa acirrada de determinados "postos de poder". Que ora ou outra retornavam à prática do "conchavo" como paliativo para a diluição de angústias e melhor administração do espanto por constatar que determinada "pesquisa" provocou e trouxe mais surpresas que a "comprovação" que era almejada. Que se dilaceravam internamente ao ponto de adquirirem ulcerações e outras sintomatologias, na defesa de pontos de vista e posicionamentos rígidos em aparência mas que, debaixo de uma análise minimamente crítica, acabariam se mostrando medíocres e despossuidos de qualquer valor prático.

Da mesma forma se tornaria impossível verificar "in loco" e ao vivo, como pessoas tornavam-se docilmente submissas e roçavam o ridículo para reivindicar para si, cargos, postos, posições e lugares, que de alguma forma os contemplasse narcisicamente. Por esta inexistência também ficaria prejudicada a possibilidade de presenciar o espetáculo que, na grande maioria das vezes, o tempo - que é "coisa" do Outro - encarregava-se de evidenciar, ou seja, que além da ausência de qualquer capacidade, as reivindicações, as posturas, os postos, os lugares, as posições, exigiam bem mais do que aquilo que aqueles ofereciam para a obtenção do pleiteado. Assim, caso a psicanálise deixasse de existir - pela conseqüente descontextualização - restaria a incapacidade de se constatar que tudo aquilo era meramente uma questão de gozo...

Se não mais existisse a psicanálise, não se poderia mais "avaliar" - através dos restos que "desavisadamente" alguns obrigavam-se a deixar como herança e das atitudes que comprovavam e denunciavam a intenção em permanecer, mesmo que indiretamente, "um pouco mais, ainda" - o esforço despendido por algumas pessoas para permanecer encarquilhadas em determinados lugares tidos como "de prestígio" [para eles e por eles mesmos, naturalmente...

Caso a psicanálise não mais existisse, não se poderia mais "escutar" os "efeitos" provocados pela afirmação de determinadas condições daqueles que, armados de atitudes quase sempre preconceituosas e apriorísticas, conspiraram para influir no desfecho das decisões e dos resultados.

Também não se poderia mais ser tomado pela surpresa mediante aqueles que, por "hábito" transformavam-se em "especialistas" na prática do "jogo duplo", isto é, na arte de "jogar verdes" para colher, em futuro incerto, alguns poucos "frutos", na maioria das vezes "podres" pela ausência de qualquer traço de caráter.

Se a psicanálise e suas instituições deixasse de existir no século vindouro, não se poderia mais verificar a existência de pessoas que, privilegiando a posição de assinalar repetitivamente determinadas "percepções" - às quais constantemente se esmeravam em reivindicar e reafirmar a originalidade da autoria - forçavam e antecipavam o desfecho, para através dele fazer valer sua opinião contrária, porque previamente plantada e assim esmerar-se em tentar desautorizar, prejudicar e/ou obstaculizar de todas as formas, aqueles a quem imaginava pudessem ameaçar seus objetivos, nem sempre muito puros, porque mal intencionados.

Sua ausência no nosso cotidiano e no interior de determinadas instituições impediria que se "escutasse" (diretamente ou através de terceiros), opiniões distorcidas sobre o "escutador". Assim como, também estaria impedida a possibilidade de "escutar" as depreciações realizadas sob a aparência de reclamações que - além de carentes de qualquer fidedignidade -, eram emitidas carregadas de rancor, certamente oriundos de conteúdos internos, mal ou nunca resolvidos, profundamente arraigados e por isto mesmo inacessíveis à percepção do emitente.

Devido àquela ausência, também não se poderia mais "escutar" os lamentos disfarçados em "franqueza de última hora", decorrentes do fato de verificar-se obrigado(a) a encarar a realidade da alienação a que permanecera submetido(a) e a partir da qual tivera que "dar de cara" contra a ausência de significação do seu afazer institucional dantes tão "valorizado".

Também não se poderia mais "escutar", o ruído provocado pelas distorções dos objetivos originais de determinados dispositivos e situações, onde, valendo-se das próprias e do "peso" transferencial, privilegiava-se destituir um e outro utilizando-as como "granadas de mão". Ou ainda, aqueles esforços em tentar colocar seu interlocutor num lugar ao qual ele, enquanto sujeito, não se identificava de modo algum, objetivando com isso, quem sabe "angariar alguma consistência" ou demarcar um "determinado lugar".

Caso a psicanálise não mais existisse no século vindouro também suas instituições não existiriam. Se assim fosse, tornar-se-ia mais remota a possibilidade de mensurar o privilegiado denodo e esmero de alguns, em estabelecer um determinado grau da paranóia para, quem sabe, "sentir-se mais em casa".

Também tornar-se-iam mais remotas as possibilidades da existência de eventos nos quais alguém não pudesse evitar de "escutar" palavras "duras", eivadas de traços subjetivos (ódio, inveja, mesquinhez), certamente produtos internos do emissor sobre um suposto receptor e decorrentes do não entendimento de como alguém podia continuar e manter seu desejo e fazer um percurso ao qual a emissor não tivera a coragem de sequer iniciar (levar até o fim e/ou a interrompê-la no meio do caminho) por incapacidade de depreender qual a significação disto.

Não existindo a psicanálise, a instituição psicanalítica e os dispositivos analíticos também restaria impossibilitado o uso perverso daquele posicionamento no qual os criadores de uma determinada "disposição", "regra" ou "lei", se consideram imunes, ou seja, não se submetem à mesma, e, agindo como se a disposição criada não lhes inspirasse ou dissesse qualquer tipo de respeito, privilegiassem a adoção da proposição perversa que reza: ao criador a "regra", a "lei", não se aplica.

Em decorrência também tornar-se-ia remota a possibilidade de "escutar" ameaças, impropérios e outras coisas mais, frutos do autoritarismo e da prepotência dissimulados sob vários tipos de semblantes e provenientes, quem sabe, de invejas mesquinhas, originárias de rancores e amores mal resolvidos, assim como de feridas narcísicas cuja cobertura "se apresenta" com o revestimento de intenções "ideais", algumas a nível de "sugestões de procedimento", outras, frutos de selvagem transferência imaginária corporativa e outras, e ao meu ver mais grave ainda, de análises "insuficientes".

Também não se poderia "escutar" e constatar o pavor e o mal-estar suscitado pela mera possibilidade da renovação, de que algo diferente do que até então estava sendo feito pudesse ter início. Pois que caso isto acontecesse, denunciaria toda uma estrutura estagnada há longo tempo na mediocridade, própria daqueles que tão somente "respiram" o ar e praticam o Discurso Universitário travestindo-o como se se tratasse do Analítico.

Caso a psicanálise e a instituição psicanalítica não mais existisse, também não se poderia mais "escutar" os desconhecimentos crassos de que a produção e a demonstração do trabalho em psicanálise que alguém tivesse realizado ( fosse em termos de publicação de artigos, de coordenação de cursos, etc.) não eram relevantes como critério e/ou como evidencia da postura ética esperada daqueles que levam a sério o que inspira o Discurso Analítico.

Também não mais seria possível "escutar" o tom queixoso e indignado, que se revelava no: "como é que ele faz estas articulações???"; fruto do desconhecimento tendencioso e crasso que uma produção em psicanálise só teria a ver com o entendimento intelectual e não com uma possível qualidade, seriedade e/ou com um atravessamento ético.

Impossível também seria "escutar" as propalações de que a produção em psicanálise não exigia qualquer intensão e que não se devia mostrar na extensão. Tudo isto - moeda corrente em determinada(s) instituição(ões) -, em decorrência do fato de que tanto o ensino quanto a pesquisa só permaneciam na intenção. Frise-se, na melhor das intenções... das quais, dizem, o inferno está cheio...

Se porventura a psicanálise e suas instituições não mais existissem no século vindouro, tornar-se-ia impossível "escutar" o quanto pessoas se deixam enganar e manipular, quando este engano contempla o atendimento de algumas de suas necessidades pessoais.

Também não se poderia mais "escutar" a desorientação, o desespero e a angústia proveniente da percepção da insignificância que resultou o investimento numa espécie de ensino, e que se evidenciava na necessidade do "temos que ser os modelos para os que nos procuram"; quem sabe, expressão do desejo inconsciente em transformar "o afazer analítico" em passarela de moda, ou fabriqueta de clones....

Igualmente impedida ficaria a possibilidade de "escutar", por debaixo da sugestão de uma "imaginária (porque ideal) clínica-escola" - a qual deveria propiciar uma "melhor formação", inclusive a pretensos "estagiários" ou "supervisionandos" - a tentativa desesperada de que, através da "colaboração", fosse "consertado" o resultado dos tempos precedentes. Prova fatual de que o investimento professoral resultara em nada, pois, que nunca foi a partir do quadro negro (ou branco) ou de "sugestões de leitura" que alguém poderia aprender a "escutar". Esta, é produto de uma "transmissão". "Transmissão" obtida e possibilitada através da análise pessoal, enquanto que os alunos destes cursos de graduação, especialização, "doutoração" que acenavam com uma "formação", continuavam constante e sistematicamente "bem supridos", cheios de saber, sem contudo nada saber fazer com ele, até porque não encontravam lugar para fazê-lo.

Também não mais seria possível "escutar", que "indicações" para a ocupação de determinados - ainda que imaginários - lugares ou mesmo para uma simples demonstração do trabalho realizado, não eram baseados em critérios que contemplassem competência e/ou evidência de produção, mas sim a amizade (que no limite seria até um critério bem melhor do que aquela outra, resultante da ideologia de que toda análise deve produzir um analista, onde a intenção é concretizar o almejado para, a partir dali, considerar-se mais analista,...ainda...), e da mútua pertença institucional, aos moldes da burocracia, onde a "antigüidade por tempo de serviço", muitas vezes é o critério utilizado.

Caso a psicanálise e suas instituições não mais existissem no século vindouro, não mais se poderia "escutar" pessoas declararem-se psicanalistas à noite, sendo que suas atividades diárias evidenciavam tratar-se de eminentes pregadores daquilo com que melhor se identificam, ou seja, com o Discurso Universitário.

Também não mais se poderia ficar atônito com a atitude de pessoas que, tomando uma pela outra, tornavam-se alquimistas de primeira linha na tentativa de embaralhar e misturar num só "maço", Psicanálise e Psicologia.

Estas seriam algumas das impossibilidade que a inexistência da psicanálise e das suas instituições no século vindouro proporcionaria e que por ora estão sendo supostas como possíveis e passíveis de ocorrência e devido a isto constantes nesta "lista".

Pelo acima descrito, pode-se pressupor que o contexto tal como o apresentado propicie alguma compreensão e faculte a possibilidade de depreender que é a partir de "coisas" desse gênero que se originam determinadas conseqüências, cuja consistência reside em nunca ser aquelas dentre as quais se poderia considerar como as "melhores". Entretanto essas conseqüências, negativas ou positivas, jamais são destituídas de importância. Sua importância reside na evidência dos efeitos provocados por ela e "entendidos", sempre, no "só-depois" da "leitura" realizada.

Talvez seja em antecipação ao vislumbre de que o século vindouro não comportará mais um lugar para a psicanálise e para as suas instituições, que na atualidade - enquanto a psicanálise e suas instituições ainda guardam uma determinada significação social e até porque ainda se encontram vigentes - têm-se visto articular na nossa capital e em várias outras do mundo, um movimento de "universitarização" da psicanálise. Isto tem sido realizado com a justificativa de uma "melhor difusão da psicanálise e/ou que a "psicanálise necessita ser melhor inserta no social". Para tanto, alguns têm se "esforçado" e se esmerado em "circular", tal como almocreve, pelos meios acadêmicos. Se dispondo, inclusive a "dar aulas", em propor "especializações", a ocupar "cátedras" (como se dizia antigamente), e onde acabam propiciando o aparecimento de previsíveis e certos "fenômenos". "De massa" é claro, pois resultantes de uma extrema sedução, do "tornar-se amoroso", aspectos estes, tão bem descritos por Freud em 1921 (Psicologia das Massas e análise do Eu).

Desta forma, e mesmo que o acima explicitado nunca venha a ocorrer - ou seja, que no século vindouro a psicanálise permaneça até mais vigorosa e suas instituições continuem a existir, e que o acima exposto esteja totalmente distorcido; que não tenha a mínima possibilidade de ocorrer e que junto aos "ingênuos" se privilegiasse então, através destas "aulas" acima referidas, a "boa informação" -, mesmo assim, estas informações surtiriam pouco efeito tendo em vista que o nível transferencial daquela audiência (os "alunos") estaria em outro lugar. Estaria, quem sabe, no "passar de ano", no terminar o "Seminário", "a Inicia(tiva)ção" ou "o Quartel", e etc.

Aí então, alguém poderia depreender que seria mais do que justificada a "preocupação" daqueles que estão "optando" por "circular" no interior das Instituições formais de Ensino Superior. Ledo engano. Porque - tal como o colonizado que desesperadamente tentando absorver a cultura do colonizador para melhor combatê-lo acaba sendo transformado pela cultura absorvida sem contudo poder se identificar a ela, tornando-se diferente de tudo e de todo os demais porque não conseguiu incorporar o "pedigree" do colonizador, perde inclusive tanto a sua identidade original quanto o respeito dos partícipes da cultura de origem, angariando, ademais, sua inimizade por ter se deixado transformar tão mal -, de forma idêntica, aqueles também terão que se submeter (ou melhor, estão sendo submetidos) às exigências da "cátedra", ou seja, não podem "fugir do conteúdo programático", obrigando-se a observar e respeitar a "seqüência dos conteúdos" de modo que o ano antecedente propicie "embasamentos teóricos" para o ano subsequente, e coisas do gênero. Isto é do conhecimento até dos bedéis.

Entretanto, uma vez que toda e qualquer "universitarização" contempla o atingimento de determinados objetivos, gerais e específicos, por decorrência lógica, a análise pessoal também teria de ser transformada em critério obrigatório. E estando inserida num contexto onde a obediência rígida é a tônica (caso dos conteúdos programáticos, dos objetivos gerais e específicos, da "seriação", etc.), a análise seria transformada em pré-requisito. Assim sendo, se estaria fomentando pior efeito que aquele que algum suposto analista leigo provocaria, pois afinal, este último não teria sequer uma declaração de percurso ou um diploma de(formado). Isto seria o fim da análise como processo de livre escolha, atópica, independente. O que escapa ao conhecimento de alguns é o aparecimento de um fenômeno que é muito mais que sério, ou seja, este tipo de postura faz série...

Portanto, parece não ser impróprio depreender que a "filosofia" adotada assemelha-se àquela de determinados procedimentos políticos, que consiste em delimitar e preservar um certo "curral eleitoral", somente com um detalhe a mais: aquela é bem explícita, enquanto essa...

O que chama a atenção é que para contemplar esta "disposição à difusão" da psicanálise, está "valendo" tudo. Desde influência e "recomendações" em "ouvidos certos", conchavos etc., até colocar alguém de lado, quem sabe numa certa "à disposição" entre outras modalidades bastante assemelhadas ao modo de funcionamento da estrutura perversa.

São (im)posturas e fatos deste naipe que autorizam que se possa tecer tais considerações, pois, debaixo de defesas até ferrenhas e reincidentes (devido a crença na correção da proposta), alguns têm se predisposto a bem executá-las. E assim, "dourando a pílula psicanalítica", continuam sistemática e tenazmente tentado introduzir o discurso psicanalítico nas Instituições formais de Ensino Superior. Contudo ao procederem assim, cometem, pelo menos dois erros de cálculo. O primeiro é que a Psicanálise não precisa de "dourações" assim como, nunca precisou de escudeiros "introdutores", de "seminaristas" ou de "especializadores" de ocasião. Em segundo lugar, a evidência da formação reativa pouco disfarçada, permite entrever que o que está sendo visado é a mais deslavada "expansão de mercado". Além disso, parecem desconhecer que o lugar para se "fazer" psicanálise não é a Instituição formal de Ensino. Parecem desconhecer que para "fazer" psicanálise só resta, ainda, a Clínica, que diga-se de pronto, não é qualquer uma. Destarte, há de se levar em consideração que esta pode não ser a visão de muitos...

Seja como for, sabe-se que as "coisas" ou as coisas" emanadas dessas "coisas" não têm fluido de acordo com as expectativas de seus proponentes. Têm-se notado que somente um número restrito de pessoas, oriundas das Instituições formais de Ensino Superior, especialmente alunos dos Cursos de Graduação em Psicologia, tem manifestado algum interesse pela psicanálise. Parece que a asserção de que com a oferta se produz uma demanda, neste caso não está se verificando verdadeira, ou pelo menos, a contento. Por quê será?. Prenuncio do seu fim...?

O que se sabe é que no interior das Instituições formais de Ensino Superior, com raras exceções [que sempre as há], poucos são aqueles que tem demonstrado interesse e/ou intencionam submeter-se - por expontânea vontade e de forma independente, não normativa - à análise pessoal, e/ou a iniciar uma formação séria em psicanálise e em locais apropriados. Ou inclusive, se predispor a levar em consideração a possibilidade de haver uma visão diferente daquela que é ofertada no interior das Graduações em Psicologia.

Por outro lado, sabe-se que o número de alunos que se tem preocupado em iniciar uma formação analítica, vem diminuindo ano após ano. Supõe-se que isto se deva a pelo menos dois fatores:

1.º - porque os alunos das graduações em Psicologia terão que resignar-se a aceitar que todo o embasamento teórico recebido durante a graduação não lhes servirá para nada;

2.º - que estes mesmos alunos terão de resignarem-se também, a despender de pelo menos outros cinco anos para colher os frutos oriundos da consistência de sua clínica, assim como para uma razoável orientação no interior da Teoria Psicanalítica.

É através desses fatos que se pode entender melhor porque - e a olhos vistos - se vê proliferar as "projeciologias"; os "mapas astrais"; "os relaxamentos"; a "leitura das mãos e de cartas de tarô", os "tele-horóscopos", (que diga-se de pronto, constituem-se na maior fonte de despesas em determinados consultórios psicológicos), as "terapias ditas alternativas" que aparentam ser mais uma questão de "griff" para roupas feita [na Região Sul do Brasil temos uma famosa marca de roupas com este nome, Alternativa] do que uma abordagem minimamente séria na área da saúde mental. E isto revela um sintoma. Revela o que está sendo privilegiado nos Cursos de Graduação em Psicologia. Revela o lugar reservado à análise e ao estudo teórico mais específico e aprofundado. Revela o resultado dessas "formações", pois, ainda está em vigência nas Graduações de Psicologia a polivalência. Polivalência muito mal resolvida diga-se de pronto. Pois, na intenção de "oferecer uma ampla gama de possibilidades de trabalho e atuação", as graduações em Psicologia têm incentivado, no "melhor" dos casos, a proliferação do "ecletismo". Eis porque são Cursos. Cursos que comportam em seus currículos aquilo que se tornou o seu identificador característico, devido a possuir uma super visão.

Deixando-se brincar um pouco pelo significante, poder-se-ia escrever que o grande amigo ao qual se aproximam e se submetem aqueles que procuram estes Cursos ou aquele que faz c'ursos, o faz com ursos cujo "abraço", se não mata, aleija; deixa seqüelas...

Retomando a seriedade destes fatos, dever-se-ia parar e pensar um pouco sobre eles, pois afinal, supõe-se que seriam exatamente esses alunos dos Cursos de Graduação de Psicologia que deveriam ter como preocupação maior e central, sua formação, sua análise pessoal ou no mínimo, sua "terapia". Contudo o que se "escuta" é que poucos se preocupam com este aspecto. Por quê será?. Será que supõem que estando abarrotados de teorias (inclusive da psicanalítica de sala de aula) torna-se prescindível qualquer outro "trabalho" a nível pessoal? Ou será que evitam submeter-se a um trabalho sério a nível pessoal porque não confiam naquilo que após "formados", pretendem um dia transformar em sua ciência e profissão?

Caso assim seja, não se pode "tirar" outra conclusão, senão a que segue: uma vez que são alunos de algum professor, daquele que ocupa uma "cátedra", ou seja, alguém que lhes "professa" e "passa" algumas notícias do que seja psicanálise, este não deve dar qualquer importância a estes aspectos (relativos a análise pessoal, análise de controle, estudos teóricos, etc.), porque tal profeta; ele próprio não acredita e/ou não se submeteu a um processo analítico. E se submeteu-se, o fez tão mal ao ponto de o resultado sequer ter conseguido denunciar seu comprometimento com os objetivos, gerais e específicos, com os conteúdos, com a necessidade da avaliação, com a outorga de créditos de valor, com as "super-visões", com as "provas" e exames e com os "ares universitários". Assim, só se pode concluir que seja devido a adoção de uma postura assemelhada a acima descrita que a importância destes aspectos seja relegada a um segundo e até a um terceiro plano. Assim sendo, tanto se lhes dá.

É por tais disposições que também fica aberta a possibilidade de se construir como hipótese que alunos das Instituições formais de Ensino Superior não sabem fazer sequer distinções. Não sabem distinguir o que é Psicologia e em que ela se diferencia da Psicanálise; não conseguem fazer distinções entre o que seja "terapia" e o que seja análise; não conseguem depreender qual importância tem - especialmente para aqueles alunos que "se identificam com a área dita clínica da Psicologia" - e qual a validade do significante, do inconsciente e em decorrência, de uma análise em suas vidas e em suas atividades profissionais. Por outro lado cabe a questão: Será que deveriam, ou teriam condições (dentro das Instituições formais de Ensino) de vir a saber...? Seria válido concluir então que esta ignorância restaria mais agravada caso a psicanálise não tivesse mais lugar no século vindouro?

Assim, sendo, parece não ser impróprio entender que, na atualidade, os alunos e inclusive muitos "ex-alunos" dos Cursos de Graduação em Psicologia, sem o saber, estão sendo tomados como "massa de manobra", tanto pelo viés do "namoro" quanto da "sedução" por uma pretensa formação analítica formalmente realizada (Especializações, Mestrados e Doutorados em Psicanálise), o que evidencia a condição de meros reflexos da visão perversa dos discursos impregnados de universitarismo, que em determinados dias e em determinados períodos se diz analítico. Analítico de turno? Se assim o for, poder-se-á tomar este fatos como evidências de que realmente são universitários (tra)vestidos com a "camisa de analistas", o que eqüivale a dizer que ocupam aquele lugar por versão - (perversão?, estrutura clínica ou grande perverso?) - e que se constituem então como analistas de ocasião.

Além do mais, vale lembrar que o locus de transmissão da Teoria Psicanalítica e de sua conseqüente e abundante produção teórica não é e nunca foi a Instituição formal de Ensino. Esta transmissão tem ocorrido - isto é, quando ocorre - em instituições não formais. Entenda-se, aquelas que não seduzem com o fornecimento de "diplomas" ao final de um percurso, que não adotam a avaliação ou a outorga de créditos de valor, porque o que numa instituição psicanalítica é privilegiado, é que um analista aconteça, pura e exclusivamente como resultado de uma formação do inconsciente.

Poderá vir a acontecer que ao ler estas considerações, alguns poderão se indagar sobre se a coexistência entre o Discurso Analítico e o Discurso Universitário é impossível ou proibida. De pronto, se pode dizer que não.

Pode-se dizer que o Discurso Universitário é utilizado, inclusive, dentro da própria instituição psicanalítica, contudo, isto nada tem a ver.

Por outro lado, é até salutar que haja essa coexistência, pois os discursos, sem qualquer disposição hierárquica, estão aí como laços sociais para que sejam utilizados. Diga-se de pronto, inclusive, que é através deles que o psicanalista angaria alguma legitimidade social.

Entretanto, será nefasto à Psicanálise, aos alunos, aos "ex-alunos" e à própria Psicologia, caso estes discursos sejam tomados um pelo outro pois, afinal, o Discurso Analítico é avesso ao social e - apesar de todas as assepsias e as sistemáticas tentativas de depuração que muitos tem se esmerado em provocar, sobre e contra ele - ainda guarda a subversão como uma de suas características éticas. Enquanto que o Discurso Universitário continua eminentemente conservador na "melhor" acepção do termo. Pois, o Discurso Universitário é o lugar do dogma por excelência. O Discurso Universitário põe o Outro no lugar do agente porque o saber, para ele, não comparece como alteridade, comparece como saber constituído, já dado.

O Discurso Universitário (S2/S1)(a/$) privilegia ocupar o lugar do agente (na parte superior, à esquerda) com seu S2 (saber) líquido e certo. Mas para tanto, necessita deixar sob o mais intenso recalque o seu significante mestre, o traço unário, o S1 (no lugar da verdade - parte inferior esquerda). Mas este procedimento não é gratuito pois, fazendo do outro (parte superior direita) mero objeto a, intenciona produzir, em série, como efeito de sua implementação, cultos e escolados sujeitos do inconsciente - $ - (parte inferior do lado direito).

Um "conselho" que alguém até poderia dar (e o grande problema passaria a ser então o ter estômago para aceitá-lo) seria o de que os incomodados que dali se retirem... Que não mais faça parte disto. Certo, está aí algo que certamente poderia ser sugerido e até ser levado em consideração. Contudo, em relação a determinados posicionamentos éticos e pelo rumo que tomaram as coisas, tornar-se-ia difícil não acreditar que o mais efetivo e contundente, e porque não dizer , incomodativo, seria uma presença onde muitos desejariam uma ausência, pois afinal: que outra posição poderia ser adotada, numa configuração como esta que não a de estar dentro e bem por dentro, no interior mesmo, bebendo diretamente da fonte, para aqueles que entendem ser eticamente correto denunciar, não se eximir, não proporcionar que estes fatos permaneçam incólumes, se articulando entre quatro paredes, transitando sorrateiramente, solapando e corroendo para logo depois aparecerem como títulos honoríficos e/ou outorgações?.

É devido a isto e por outras coisas mais que se torna necessária no interior de toda e qualquer instituição, inclusive da universitária, a existência e a presença de alguns que detenham a condição de denunciar, delatar, questionar, fazer saber o que se passa, assim como fazer viger e presentificar, através de suas práticas, o Discurso Analítico (a/S2)($/S1) sem denegri-lo e/ou ajustá-lo às conveniências próprias dos meios e aos procedimentos universitários. Porque no Discurso Universitário há impotência. Há impotência em poder ter acesso ao significante de base (S1 ç $).

Mais, ainda sobre às Instituições Analíticas. Sabe-se que elas existem, ainda.... Bem ou mal elas estão aí. E são necessárias. Para quê: ver-se-á dentro em breve.

Assim, tem-se as Instituições Psicanalíticas, ou pelo menos as que se dizem analíticas.

Mas, uma coisa de pronto torna-se necessária denunciar. Quem faz a Instituição Psicanalítica são as pessoas que a compõem. Portanto, é necessário que estas pessoas saibam que a Instituição Analítica não é o lugar mais apropriado para a obtenção de lucros. Talvez até seja um lugar mais apropriado para perdas. O que não impede a existência daquelas que assim não entendem, isto é: há aquelas que adotam uma visão eminentemente empresarial, leia-se, lucro certo. Seja como for, sabe-se que em determinadas instituições, além do já alto e dispendioso preço que o humano paga por ser habitado pelo desejo inconsciente, há aquelas que exigem ainda o pagamento de outras taxas. Sempre é dito que é para a sua própria manutenção, ou seja, para mantê-la funcionando. Meno male....

Para saciar o desejo desesperado pelo vil metal, também existem aquelas que se valem da sedução, da propaganda "a boca pequena" (sem contudo deixar de ser maciça), utilizando-se, inclusive, de dispositivos caracteristicamente analíticos. Outras, para conseguir manter uma suntuosidade que imaginam seja necessária para, quem sabe, melhor seduzir e/ou "impressionar", aceitam, na qualidade de acólito, em seu seio varonil qualquer um que também esteja disposto a cotizar as altas despesas.

A Instituição Psicanalítica não pode ser um lugar usado para o mero exercício narcísico de poderes imaginários ou de mestrias inusitadas e de ocasião. Também não deve assemelhar-se a uma reunião de amigos, ou contemplar laços de família. Tampouco é um lugar para a obtenção e/ou renovação de clientela.

Bem, até agora se viu o que a Instituição Psicanalítica não é ou deveria ser, e chega-se um ponto em que é obrigatório se perguntar: Então, por quê é necessária a existência da Instituição Psicanalítica?

Poder-se-ia dizer que a Instituição Psicanalítica é necessária por constituir-se num lugar mais apropriado para a vinculação do trabalho que é exclusivamente analítico, ou seja, que não é um trabalho qualquer. Pois que este trabalho guarda em si especificidades, assim como, tem suas particularidades e nuanças próprias, sem contudo caracterizar-se como algo da ordem do hermético, mesmo que hajam aqueles que se esmeram em assim torná-lo.

Mas para tanto, um vínculo institucional deve ser estabelecido com a contemplação prévia de uma transferência. Transferência que também não é uma transferência qualquer. É transferência de trabalho.

Uma Instituição Psicanalítica é, eminentemente, um local de acolhimento de produções; da produção individual de cada um. É um local onde deve ser reservado um espaço que contemple a discussão dessa produção. Um lugar onde as preocupações que a clínica analítica põe diariamente a cada um possa ser apresentada e dividida. É um local onde, em se privilegiando a circulação do Discurso Analítico, se possa se deixar trabalhar pelos significantes. É um lugar onde, se pondo ao trabalho, produzir um (a) mais, com a certeza de que haver a recepção merecida, assim como, a apropriada apreciação e escuta desta produção.

Uma Instituição Psicanalítica é meramente um local analítico de trabalho, somente isto. Um trabalho analítico, que muitas vezes se revela trabalho de luto. Luto provocado pela impossibilidade de se fazer o UM, luto das expectativas de nomeações, das expectativas de autorizações que uma Instituição Psicanalítica não deve e nunca se propõe a corresponder, mas que alguns imaginários "desavisados" teimam em fazer com que sejam contempladas, acolhidas, atendidas, solucionadas. E onde acabam (ou pelo menos deveriam ser) questionadas, encolhidas, estendidas, dissolvidas. Quando isto não ocorre, estes imaginários "desavisados" transformam-se em repetições; em novas iniciativas... e, de desqualificação em desqualificação, esmeram-se em se tor(nar) para ná(da). Se tor(nar) piada. Molecagem de um gen(e)ro do primeiro mundo...

Mário Diógenes Poplade
Psic. - CRP 08/1266
fevereiro/96

* - Psicanalista do Centro de Psicologia Aplicada da Universidade Federal do Paraná;
- Formado em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Tuiuti;
- Formado em Pedagogia, pela Universidade Federal do Paraná
- Mestre em Educação, pela Universidade Federal do Paraná;
- Psicanalista com trabalho vinculado à Biblioteca Freudiana de Curitiba;
- Coordenador de Grupos de Trabalho e Estudo sobre Teoria Psicanalítica na Biblioteca Freudiana de Curitiba.


Bibliografia
ANUÁRIO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE, vol. 1, n.º 1, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1991.
DORGEUILLE, C. A Segunda Morte de Jacques Lacan, Porto Alegre, Artes Médicas, 1986.
FREUD, S. A História do Movimento Psicanalítico (1914), in: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XIV, Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda., 1969.
ROUDINESCO, E. A Batalha de Cem anos, História da Psicanálise na França, vol 1 e 2, Rio de Janeiro, Zahar Editor, 1984.
ROUSTANG, F. Lacan: do equívoco ao impasse, Rio de Janeiro, Campus, 1988