Projeto rejeitado na comissão de saúde

Brasília, 11 de outubro de 2001

Prezados Colegas,

A Comissão de Seguridade Social e Família (Saúde) rejeitou ontem (10/10), por unanimidade, o Projeto de regulamentação da Psicanálise (no. 3944/00).

O parecer substancial e preciso do relator, Deputado Rafael Guerra (PSDB/MG) (em anexo), rejeitando o Projeto, foi aprovado também por unanimidade na referida Comissão. Importante também para a derrota do Projeto foi a atuação da Deputada Laura Carneiro (PFL/RJ e presidente da Comissão), da Deputada Jandira Feghali (PcdoB/RJ), do Deputado Dr. Rosinha (PT/PR), além da constante orientação, articulação e apoio dos deputados Paulo Delgado (PT/MG) e Sérgio Miranda (PcdoB/MG).

Após meses de trabalho, essa é uma vitória expressiva. O Projeto agora será votado na Comissão de Trabalho. Nessa Comissão, especialmente junto a seu presidente, Dep. Freire Jr. (PMDB/TO), deverá ser realizada a mesma tarefa que desenvolvemos durante esses meses junto aos parlamentares da Comissão de Seguridade Social.

Nessa nova etapa, pensamos ser imprescindível a renovação e ampliação do grupo de analistas que tem trabalhado no Congresso Nacional. Nesse sentido, sugerimos que os analistas de cada estado se articulem com seus respectivos deputados federais integrantes da Comissão de Trabalho (a relação dos membros foi enviada na correspondência de 09/10), visando esclarecê-los sobre nossas posições, fornecendo-lhes informações a argumentos contra esse Projeto de Lei, bem como contra qualquer substitutivo.

Para continuar o acompanhamento da tramitação e o trabalho junto aos parlamentares precisamos de um revezamento e da participação efetiva de analistas de outros estados, uma vez que esse tem sido um trabalho desgastante e dispendioso, para o qual não poderemos manter o mesmo nível de dedicação, nem o mesmo ritmo que sustentamos durante esse período.

Por já estarmos inteirados de vários mecanismos de funcionamento do Congresso, colocamo-nos à disposição para quaisquer informações e apoio que forem necessários.

Cordialmente,

Ana Vicentini de Azevedo (61) 272 4088
Maria Ida Fontenelle (61) 242 2089 ou 245 1767
Maria de Lourdes Alves da Silva (61) 345 8423
Vânia Otero (61) 346 7475 ou 346 7064

COMISSÃO DE SEGURIDADE SOCIAL E FAMÍLIA
PROJETO DE LEI Nº 3.944, DE 2000
Regulamenta a profissão de psicanalista.
Autor: Deputado Eber Silva
Relator: Deputado Rafael Guerra

I - RELATÓRIO

A proposição sob análise objetiva regulamentar a profissão de psicanalista, dispondo em seis capítulos seus dispositivos.

O Capítulo I reconhece a profissão de Psicanalista, definindo-a como aquela voltada para o tratamento de pacientes portadores de distúrbios psíquicos de natureza inconsciente, elencando quais seriam estes distúrbios. Ademais, prevê que a atividade do psicanalista será exercida em consultórios, clínicas, hospitais e instituições com atuação em saúde mental.

O Capítulo II estabelece que serão responsáveis pela formação do Psicanalista as sociedades psicanalíticas que atendam as exigências e normas do Ministério de Educação e Cultura, que disporá sobre o tempo máximo e mínimo, bem como o currículo mínimo e as matérias complementares para os psicanalistas que estejam em processo de formação, o estágio a ser cumprido, a obrigação da análise didática e a quantidade mínima de sessões e as condições para a formação de docentes em psicanálise.

Prevê, ainda, o reconhecimento do psicanalista formado em sociedade psicanalítica de outro país, desde que haja reciprocidade, e a validação, pelo Ministério da Educação e Cultura, de todos os títulos de psicanalista já concedidos pelas diversas sociedades, assim como para aqueles que tenham iniciado a formação antes da publicação da Lei. Exige, também, que o candidato ao processo de formação de psicanalista tenha nível superior.

O Capítulo III prevê o reconhecimento, como formadoras de novos psicanalistas, de todas as sociedades psicanalíticas registradas, antes da vigência desta Lei, de acordo com o Código Civil Brasileiro. Para que possam exercer o papel formador, as sociedades devem atender exigências estabelecidas pelo Ministério da Educação e Cultura. Acrescenta que o título de psicanalista será registrado nesse Ministério ou em universidade por ele indicada.

O Capítulo IV e V definem que o órgão responsável pelo registro, pela fiscalização e pela normatização da profissão de psicanalista será o Conselho Federal de Medicina, que descentralizará suas ações para os Conselhos Regionais de Medicina.

O Capítulo VI elenca disposições gerais e transitórias, disciplinando as condições para comprovar a condição de psicanalista para os não filiados às sociedades, fixando prazo de 180 dias para o Conselho Federal de Medicina criar o Código de Ética Psicanalítica, reconhecendo os mesmos direitos institucionais dos psicanalistas no âmbito dos Conselhos de Medicina, prevendo a criação de uma Câmara de Assuntos Psicanalíticos nos Conselhos de Medicina e remetendo ao Conselho Federal de Medicina as decisões sobre os casos omissos.

Em sua justificativa, cabe destacar, o autor considera que a psicanálise já é uma profissão de fato há cerca de um século, em nosso País. Considera a existência de várias correntes, "nem sempre acordes e quantas vezes frontais", como a principal razão para uma urgente regulamentação da profissão.

Não foram apresentadas emendas no prazo regimental.

Esta Comissão tem poder conclusivo sobre a matéria, nos termos do art. 24, II, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados.

II - VOTO DO RELATOR

A psicanálise, em quase um século de existência, tem-se caracterizado pelo trabalho sistemático de escuta e interpretação do inconsciente, em um processo altamente complexo e diferenciado das demais atividades clínicas.

Com princípios, métodos e técnicas próprios, a psicanálise tem traçado um longo e difícil caminho, que consolidou, em praticamente todos os países do mundo, uma tradição de respeitabilidade tanto junto aos círculos acadêmicos quanto à classe médica e à sociedade em geral.

Sustentadas por bases teóricas fortes o suficiente para permitir a multiplicidade de interpretações e condutas no estudo e na pratica psicanalítica, e balizadas em preceitos éticos, as inúmeras sociedades de psicanalistas, em todo o mundo, conseguiram manter a qualidade de seus serviços por todo o século XX, sem ter sido necessária a intervenção do Estado.

Assim, não se conhece qualquer país que tenha regulado as atividades dos psicanalistas. Seja pela ausência de demanda dos que são analisados, seja pelo desinteresse e, principalmente, pela convicção da grande maioria dos psicanalistas de que suas sociedades são suficientemente preparadas para disciplinar suas próprias ações, o fato é que a regulamentação da profissão de analista sempre pareceu incoerente com a própria psicanálise.

Argumenta-se que seria praticamente impossível, e de todo inadequado, estabelecer regras para um processo de análise que se desenvolve de forma extremamente subjetiva, de acordo com as peculiaridades de cada caso individual. Impossível estabelecer prazos ou uma dinâmica prévia para que uma pessoa tenha acesso aos mecanismos de seu próprio inconsciente com o suporte de um psicanalista.

Esta é uma questão da maior importância. É a própria análise pessoal - a mais profunda e completa possível - o elemento central do processo de formação de psicanalistas. Essa atividade essencial deve ser complementada por cursos teóricos e pela supervisão dos casos clínicos, uma tríade conduzida por psicanalistas mais experientes e coordenada por uma sociedade estreitamente vinculada à tradição teórica e prática da psicanálise.

É assim que todas as tentativas de regulamentação legal foram arquivadas ou rejeitadas pelo Congresso Nacional. Não encontraram suporte para prosperar, na estrita razão da peculiaridade de seus fundamentos e funções.

A proposição em tela apresenta-se como mais uma tentativa de regulamentar a profissão de psicanalista. Para tanto, apresenta uma série de considerandos e argumentos, que merecem todo nosso respeito e consideração.

Entendemos ser absolutamente legítima a iniciativa do ilustre autor. As bases de sua justificativa, contudo, não apresentam a consistência necessária para reverter o posicionamento histórico dos psicanalistas de todo o mundo contra a regulamentação. Senão vejamos:

- A existência de várias correntes dentro da psicanálise não constitui um mal em si mesmo. Os próprios psicanalistas de longa data consideram-na como um aspecto positivo, que tem permitido o aperfeiçoamento da compreensão do pensamento psicanalítico.

- Quanto à existência de risco relativamente às pessoas que procuram tratamento psicanalítico, consideramos uma preocupação relevante, pelo menos em tese. A verdade, porém, é que as sociedades psicanalíticas têm-se mantido extremamente zelosas de sua tradição, insistindo na formação de profissionais segundo seus próprios critérios, que se traduzem pela tríade a que nos referimos acima. Evidencia-se, pois, a predominância de uma ética e de uma postura de responsabilidade em relação à formação dos psicanalistas. Dito de outro modo, a ser mantida essa tradição, que é a própria garantia de legitimidade da psicanálise, a regulamentação, por si só, não viria a reduzir os eventuais riscos em relação aos analisandos.

- Quanto à necessidade de fiscalização em âmbito nacional do exercício da profissão, novamente reafirmamos que historicamente as sociedades psicanalíticas já cumprem esse papel.

Sendo esses os aspectos centrais da argumentação, entendemos que não se mostram suficientes para justificar a regulamentação legal da atividade dos psicanalistas. Em nosso ponto de vista, somente na hipótese de ruptura dessa tradição, ocasionada por uma apropriação superficial e indevida ou um arremedo inconsistente dos métodos da psicanálise, por meio da qual se colocassem no mercado profissionais despreparados, com risco real para os usuários, somente assim, pela incidência de fatores externos, aí se apresentasse a imperiosa necessidade de intervenção do Estado, mediante regulamentação. Em todo caso, e como pressuposto inarredável, entendemos que as sociedades psicanalíticas brasileiras deveriam ser necessariamente ouvidas para apresentar propostas ou soluções. .

Poderiam argumentar que esta situação já existe. Nos últimos anos, realmente, têm surgido denúncias da existência de grupos que se pretendem de psicanálise, formando "psicanalistas" sem atender aos critérios considerados, desde Freud, essenciais, defendidos e utilizados pelas sociedades psicanalíticas com tradição e vínculos internacionais. Esta nova realidade tem levado muitos psicanalistas a repensarem a já consolidada posição de não regulamentação de sua atividade.

De toda forma, a análise criteriosa deste projeto não conclui por sua aprovação, até porque, nos termos propostos, configuram-se alguns riscos para os psicanalistas e para a sociedade. Um deles está no reconhecimento automático de todos os títulos expedidos por todas as sociedades ditas psicanalíticas, tradicionais ou não, inclusive para aqueles que estiverem em processo de formação quando da entrada em vigor da lei. Dessa forma, os psicanalistas formados sem atender os critérios essências da tríade mencionada - análise pessoal, cursos teóricos e supervisão de casos clínicos- teriam definitivamente adquirido o mesmo status de um psicanalista formado dentro dessas exigências. Esta, a nosso ver, é uma grande contradição, porque justamente o indesejável - a formação inadequada, a justificar a possível regulamentação - seria legitimado em lei.

Da mesma forma, a proposicäo em apreciação legitimaria sociedades que formam profissionais sem atender às condições essenciais e sem qualquer vínculo com a tradição histórica da psicanálise. Tal como prevê o projeto, seria suficiente terem sido registradas em conformidade com o Código Civil Brasileiro. Sem dúvida, um outro grande contra-senso.

Também a designação do Conselho Federal de Medicina e suas regionais como responsáveis pelo registro dos psicanalistas e pela fiscalização da profissão apresenta-se como solução incompreensível. Em nenhum momento da proposição identifica-se qualquer elemento que justificasse a transferência dessa função para o órgão de fiscalização da profissão médica., até porque o projeto não caracteriza a psicanálise como especialidade da Medicina. Exige apenas que o psicanalista seja portador de diploma de nível superior, com título de especialista em Psicanálise. Portanto, não se entende o sentido da proposta, que ainda inclui o estabelecimento, pelo Conselho Federal de Medicina, do Código de Ética Psicanalítica, e a concessão, aos psicanalistas, dos mesmos direitos dos médicos. A se caracterizar a Psicanálise como profissão, teríamos também que , por analogia classificar, da mesma forma, como profissões a Cardiologia, a Psiquiatria, a Nefrologia assim por diante.

Poderíamos nos alongar ainda mais demonstrando a incapacidade do projeto de lei de oferecer os meios fundamentais para uma possível regulamentação das atividades do psicanalista. Os aspectos abordados, todavia, já indicam que, se aprovado, poderá provocar grandes prejuízos ao desenvolvimento da psicanálise no Brasil, com sérios transtornos para as sociedades psicanalíticas que, ao longo de muitos e muitos anos, vêm conseguindo angariar o respeito e a confiança de todos os segmentos da sociedade. Além disso, sem sombra de dúvida, os que se utilizam de seus serviços serão as maiores vítimas.

Todas as discussões, debates e estudos de que participamos deram-nos a forte convicção da importância da psicanálise e da complexidade de todos os aspectos que a envolvem, seja de sua linguagem, de seus estudos, de sua organização e dos mecanismos de formação de psicanalistas, entre outros tantos fatores.

Diante dessa realidade, estamos convencidos de que qualquer regulamentação deve acautelar-se para não cercear o constante processo de aperfeiçoamento dos estudos e da prática psicanalítica, e de que só será possível disciplinar a matéria com a efetiva participação da comunidade psicanalítica brasileira, em um longo e criterioso processo de discussão.

Por todas essas razões, entendemos que a proposição em tela não justificou a necessidade de regulamentação da profissão. A análise do mérito, por sua vez, revelou que os dispositivos são contraditórios e muitas vezes incompreensíveis, refletindo a ausência, em seu processo de elaboração, daqueles que seriam o objeto precípuo da iniciativa.

Diante do exposto, manifestamos nosso voto contrário ao PL nº3.944, de 2.000.

Sala da Comissão, em de de 2001.
Deputado Rafael Guerra
Relator
prpl3944-00psicanalista110691-060.doc