|
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS- UNISINOS
CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
ESTÁGIO DE PSICOLOGIA CLÍNICA
Falando sem palavras: o sintoma atravessado no corpo
autora: Sabrina Sartori Rocha1
orientadora: Paula Daudt Sarmento Leite
(IC-FUC / SERVIÇO DE PSICOLOGIA CLÍNICA)
O presente trabalho consiste em apresentar idéias que surgiram a a partir de um atendimento clínico realizado durante o estágio de Psicologia Clínica.. Pensa-se que o medo, a angústia e a dor também estavam passando pelo corpo daquele menino que, com apenas quatro anos, portador de uma cardiopatia congênita, seria submetido à cirurgia e encontrava-se muito agitado. A sua hiperatividade em véspera de cirurgia cardíaca foi a forma encontrada pelas ações para se expressar. "Dizer" do medo. "falar" da angústia, das fantasias dolorosas. Nos atendimentos realizados também houve a importância do brinquedo e do gestual à nível do pré verbal. O brincar não impediu que o menino tivesse experiências dolorosas em seu corpo, mas permitiu expressar sentimentos de raiva, de abandono e de medo, provocados pela sua hospitalização.
A teoria e a técnica utilizadas em um contexto hospitalar têm um objetivo determinado: operar em melhores condições físicas e psicológicas. No caso estudado, os efeitos traumáticos do e no corpo puderam ser, de alguma forma, diminuídos pela expressão do material lúdico e de seus desenhos, onde a oportunização de um espaço para orquestrar seus sentimentos possibilitou uma vinculação necessária. Assim, ele que não era cego, percebia através dos mecanismos que ele mesmo se utilizava para perceber o mundo a sua volta e se angustiava ainda mais. O que não era lhe dito pelo julgamento incapacidade de compreensão, era manifestado através de sua agitação.
Chegando para o atendimento, utilizou-se do espaço e "falou" pela ordem do seu conhecimento: ação! Falou da dor que morava no coração, daquela que não foi simbolizada. O que estava inscrito no corpo era a hiperatividade como sintoma da dor que estava no coração. Conclui-se que se o sintoma for escutado, será, então, relativizado o falar porque muitas vezes o dizer não fala; apenas diz o que a fala esconde.
Palavras Chaves: Sintoma, Linguagem, Hiperatividade, Comunicação, Hospital
A necessidade de "rachar as palavras", invocada por Foucalt, é ferramenta básica no fazer da clínica. O que o autor não se deparou foi com uma criança com dificuldade auditiva e fonoaudiológica em véspera de cirurgia cardíaca, vindo para atendimento psicológico por "hiperatividade"2.
Rachar as palavras, é capturar o sentido original. Aquilo que diz respeito a proveniência da superfície de inscrição dos acontecimentos. O ponto do surgimento, aquilo que produz sentido das coisas para o sujeito. Porém, somente esta captura letrada não basta na investigação terapêutica.
Pensar a clínica com seus atravessamentos no corpo é algo que não se faz sem pensar na linguagem e suas vicissitudes. Através da linguagem, compreende-se o que se faz, o que se pensa e o que se deseja. A ação, o pensamento e o que lhe é circunscrito (desejo), são evocativos de palavras, de gestos, mímica facial, toque, lágrima, sorriso. O que realmente importa é a autenticidade com que se faz. Verdadeiro, ao que se sente, seja à qualquer verdade, mesmo aquela que traz a dor.
Sob minha opinião, porém, comunicação é o princípio soberano que abarca inúmeros outros. A linguagem que aqui se trata não é somente a veracidade do verbo, mas também a veracidade do pensamento e da ação.
Comunicar-se é relação e ocorre na dupla. Caso não aconteça ou se perca, dá-se a morte, o fim. Estagnação do (s) desejo (s). Desta forma, pensar a linguagem como sintonia da dupla terapêutica, é germinativo, fecundante. Aquilo que rompe a semente e se sustenta com suas raízes. O que já nasceu, mas ainda está por vir. Como aquele sujeito que não dispõe de palavras para falar da sua dor, mas que utiliza-se de recursos para comunicar-se. A voz que, mesmo com tanta dificuldade para sair, não quer calar e de alguma maneira, está imersa em linguagem: visual, olfativa, rítmica, mímica e gestual. Cabe a nós, "psi", decodificá-la na fala, mas principalmente no corpo.
Faz-se necessário ter um ouvido suficientemente capaz para ouvir a dor e deixá-la sair da forma como vier. Ouvir a "fala" do corpo como processo de vinculação. Se tu me "ouves" é porque o que faço com o corpo não é tão horrível assim, portanto, na dupla terapêutica a transferência é fundamental.
Aprofundando mais o conceito de transferência, vemos que Gregório Baremblit3 retoma o conceito em Freud comparando o termo com o retorno de uma situação anterior, passível de reconstituição, que se reitera, que se renova na situação terapêutica.
A relação de acolhimento e de continência possibilita para o sujeito uma envergadura interior, que é a força para enfrentar o problema. Assim, ocorre a potencialização do corpo para encontrar-se com o mundo.
O indivíduo, considerado por dualidade de corpo e mente é dinâmico. Assim, consegue constituir-se com sentimentos e atitudes do meio em que está inserido. Nestas trocas, ocorrem ações e reações. Ações de afeto e reações de afetação.
Quando a ação é de afeto, o indivíduo está se "re-lacionando": fazendo laços novamente com o meio através da linguagem, seja falada, gestual ou perceptiva. A reação de afetação é a resposta da ação de afeto, onde, em função de dois, há uma cumplicidade do sujeito com o meio ( mais que vinculação, eu diria até uma dependência) Não há divisão: ambos se afetam, como via de mão dupla. O que se faz para o meio também se recebe ( é claro que podemos pensar em várias moedas) e vice-versa.
O que bate em nós
A contra-transferência é um instrumento eficaz na compreensão dos mecanismos mentais inconscientes do paciente.
Sandler comenta que Heimann considera contra-transferência abarcando todos os sentimentos que o analista experimenta em relação ao seu paciente. Este conceito pode ser estendido para além do atendimento psicanalítico no caso de hospitalizações sendo útil sua compreensão na relação médico-paciente, paciente-equipe.
Para além da Psicologia
Humanos, fora da situação analítica , quantas vezes sorrimos sem estarmos felizes? Ou quantas vezes choramos por obrigação da situação e não por autenticidade da emoção que sentimos? Onde anda a autenticidade das manifestações dos sentimentos sentidos?
Anzieu4 observa que expressões comuns como "é uma questão de pele, suar a camiseta, arrancar o couro, tirar a pele, entrar na pele e tocar a realidade" estão no contexto da condição humana. Comunicar-se com outros, normatizando-se pelo corpo aquilo que não pode-se dizer com palavras e mais especificamente "falando" através da pele, elemento que "toca" o meio.
O que "toca" o meio também é o que protege o sentimento. A "casca" é o mais sensível porque é o que aparece, colocada como linguagem do sintoma.
No setting e na vida fora dele aparecem as palavras (discurso) e também o silêncio barulhento dos sentimentos que "borbulham". A dor ! Aquela que não acaba se apertarmos o botão do controle remoto ou se tomarmos uma Aspirina. Porque esta dor que me refiro é mais intensa. É incomodativa e não tem como mandar ela ir embora e deixar o corpo que a abriga. Então quem "incomoda" o meio é o sujeito, através do corpo.No caso estudado, a hiperatividade do pacientezinho
A dor que não se comunica é uma dor mais doída. É aquela que não tem nome, rosto e sobrenome. Por ter sido engolido com fogo, a dor que não se fez saber, só tem o corpo daquele que sofre porque foi através dele que ela existiu.
A comunicação que torna comum um saber ou uma intenção tem, muitas vezes, mais sentido do que as palavras. Estas, são efêmeras. O tempo faz esquecer as solitárias letras.
O que fica na lembrança são as ações. O ato tem mais intencionalidade, é mais pertinente ao sentimento e as origens. Então, por que as palavras ainda são fonte única de importância para a clínica?.
O que foi dito com eloqüência não significa ser verdadeiro. Dionisiacamente, o que foi dito baixinho não significa ser menos importante do que as canções. Por mais que se tente capturar a intenção do pensamento - sentimentos através do verbo - não será original como na ação do corpo.
O Roxo e a Amarela
Se pensarmos no atendimento clínico deste caso que me proponho a trabalhar, penso que o medo, a angústia e a dor estavam passando pelo corpo daquele menino que com apenas quatro anos, portador de uma cardiopatia congênita seria submetido à cirurgia e encontrava-se muito agitado. A hiperatividade em véspera de cirurgia cardíaca foi a forma encontrada pelas ações para se expressar. O sintoma deve ser entendido como um desejo de se comunicar e o seu significado cabe ao terapeuta. Quando o menino "dizia" do medo e "falava" da angústia, das fantasias dolorosas, teve para além das palavras, o corpo para dizer e ser entendido.
Nos atendimentos que realizei também houve a importância do brinquedo e do gestual à nível pré verbal. Conforme Winnicott5, o brinquedo é considerado a linguagem universal da criança, atuando como ferramenta facilitadora para a expressão dos seus sentimentos, principalmente nas situações difíceis.
O brincar não impediu que o menino tivesse experiências dolorosas em seu corpo, mas permitiu expressar sentimentos de raiva, de abandono e de medo, provocados pela sua hospitalização.
A teoria e a técnica psicológica utilizadas em um contexto hospitalar têm um objetivo determinado que facilita a execução de procedimentos cirúrgicos em melhores condições psíquicas . No caso estudado, os efeitos traumáticos do e no corpo puderam ser, de alguma forma, diminuídos pela expressão do material lúdico e de seus desenhos, onde pintava-se de roxo ( cianótico) e pintava-me de amarelo (pelo jaleco que usava para trabalhar).
A oportunização de um espaço para orquestrar seus sentimentos possibilitou uma vinculação necessária, onde ele, pelo contrato estabelecido inicialmente dos 40 minutos da sessão, adiantava o relógio, mostrando que ainda precisava mais tempo para "falar" de tudo o que lhe atemorizava.
Por se tratar de uma criança com dificuldades auditivas e fonoaudiológicas, a equipe e a mãe, combinavam procedimentos "escondidos" do menino, mas na sua frente. Assim, ele que não era cego, percebia através dos mecanismos que utilizava para comunicar-se com o mundo a sua volta e se angustiava ainda mais. O que não era lhe dito pelo julgamento da incapacidade de compreensão, era manifestado através de sua agita-ação.
A atividade expressiva da criança -aquilo que se manifesta através da vida psíquica -predominantemente é a brincadeira, o jogo. Assim, no preparo para a cirurgia cardíaca do paciente, foi disponibilizado uma caixa de brinquedos contendo inclusive materiais cirúrgicos, seguindo o método da Aberastury6.
A autora citada constatou a importância do trabalho da psicologia no preparo para a cirurgia e que operar uma criança, levando-a enganada ou sem esclarecimentos da cirurgia, traz variantes importantes na posterior elaboração das perdas .
A equipe que atendia o menino, por sua vez, angustiava-se mais ainda por vê-lo tão ativo e pouco "escutava-o" de fato. Assim, chegando para o atendimento psicológico, utilizou-se do espaço e "falou" pela ordem do seu conhecimento: a agita-ação! Reforço aqui a importância de mais espaços físicos e representativos para tal oportunidade.
Durante uma das sessões, pegou uma boneca e enrolou micropore por todo seu corpo deixando somente as pernas soltas. Enrolou a cabeça da boneca, e metade do corpo. Assim, penso na projeção do conflito dele na boneca, onde sentia-se "amarrado", sem forças para enfrentar aquela situação. O seu corpo ( através das pernas da boneca) poderia se comunicar com o mundo e com a equipe através da "hiper-atividade".
A representação dos sentimentos não foi expressada pela colocação do verbo (palavra), mas pelo contato com o meio, através da ação (atividade). Não que a palavra não seja importante, mas penso que deve ser somada às ações e relativizada no entendimento dinâmico e na intervenção psicológica.
O sofrimento, no sentido psicanalítico do termo, é um sofrimento de palavra e de vivência. Quer seja o do corpo ou a da alma, ele é sempre um sofrimento simbólico e o seu entendimento é atingido integralmente pela falta do discurso e/ ou da sua expressão.
A dificuldade fonoaudiológica dava-se também pelo fato dele falar da forma como ouvia: com dificuldade e distorções de compreensão. Assim, ele não dispunha de palavras compreensíveis culturalmente para falar da dor como portadora de um sentido, sendo sua expressão física carregada de movimentos pulsionais inconscientes de angústias primitivas.
"As palavras significantes perdem sua liberdade de ligar-se a outras quaisquer como expressão da autêntica liberdade do inconsciente para auto-representar-se (...)", segundo Renato Trachtenberg7. Assim, o inconsciente coletivo também é construído e atingido por chavões sem sentido, ações isoladas e desejos produzidos. Perde-se a intencionalidade do sentido original onde valores de mercado embalando lixos valem mais do que a tão sofrida autenticidade.
O valor simbólico do comportamento pode complementar com o valor semântico do discurso, assim há uma leitura mais atualizada das interpretações, segundo métodos psicanalíticos.
Naffah Neto8 coloca que a memória corporal que vem de apelos pulsionais, reverberações, repetidamente, busca reconhecimento e elaboração psíquica, talvez como um sem-fundo corporal, de pura ferida, trazida num campo de forças invisível, indizível, mas capaz de produzir efeitos.
Os bebês "falam" com o corpo através de posturas, gestos, mímicas e gritos para chamar a atenção da mãe e ser atendido no momento que assim o deseja. Essa decodificação, varia conforme a sensibilidade de cada mãe em função da sua própria história pessoal de filha, marcada pela influência cultural a qual pertence.
Ferenczi9 também fala de lembrança traumática que permanece imobilizada no corpo como único lugar que pode ser despertada. Para isto, penso na relação da dupla terapêutica, onde a transferência é fonte única para possível entendimento e a psicoprofilaxia de saúde mental é exercitada principalmente em hospitais com situações estressantes10. Ouvimos na voz de Marisa Monte a música de Caetano Veloso:
"Escuta a voz de quem ama. Ela chega aí (...)
É só ter alma de ouvir e coração de escutar (...)"
E para quem não escuta a escuta, o que, então, escutar ?
E para quem não fala a fala, o que , então falar?
Falar da dor que mora no coração, daquela que não foi simbolizada é falar daquilo que a escuta clínica deve escutar de forma investigativa e compromissada. O que estava inscrito no corpo era a hiperatividade como sintoma da dor que está no coração. Se o sintoma for escutado, será então relativizado o falar. Porque muitas vezes o dizer não fala. Apenas diz o que a fala esconde.
A necessidade de abrir novos meios de interações e relações diz respeito à uma prática clínica de sujeito agenciado ao seu tempo e produzindo uma subjetividade diferente onde não há cronologia uniforme, mas uma maior quantidade de tipos de espaço (tribos, nichos), forças (relações de poder e saber) e duração( intensidade, tempo, velocidade).
Com os tempos atuais, surgem novas comunidades e por conseqüência novos interesses, novas formas de subjetividade, subjetivação e comunicação. Cada novo agenciamento, seja ele "psi" ou social, cria uma cartografia especial bem perto uma da outra, se mesclam, se bifurcam. Assim, a aprendizagem está atrelada a todo processo clínico e terapêutico onde todo o pensamento e todo o comportamento humano remete-nos à sua estruturação inconsciente, como produção inteligente e simultaneamente simbólica.
Conclusões
O brincar não impediu que o menino tivesse experiências dolorosas no seu corpo, mas permitiu expressar sentimentos de raiva, de abandono e de medo provocados pela hospitalização e invasão corporal cirúrgica.
Tomemos o cuidado de no atendimento psicológico não agir como Procusto11. Ele, como bandido, oferecia pousada aos viajantes perdidos, deitava-os sobre uma cama de ferro, cortando-lhes os pés ou esticando-lhes a força para caberem na cama. Não devemos, pois, comparando esta atitude de Procusto com a prática da Psicologia, incorrer no erro de fazer com o que aquilo que não foi dito verbalmente passe desapercebido e discursos sejam diagnosticados por manuais como única verdade da dor do sujeito.
Sabrina Sartori Rocha
E-mail: bitarocha@bol.com.br
1 - Graduanda de Psicologia.
2 - Até porque foram tantas as demais contribuições do autor que talvez lhe faltou tempo para escrever sobre o tema.
3 - BAREMBLIT, Gregório. Cinco Lições sobre Transferência. São Paulo: HUCITEC, 1991
4 - ANZIEU, Didier. O Eu-Pele. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1989.
5 - WINNICOTT.Donald. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro:Imago, 1975
6 - ABERASTURY.Arminda. El nino y sus Juegos. Buenos Aires: Paidos, 1979
7 - In A Gangorra. Trabalho apresentado no CEP de PA, 1997
8 - NAFFAH NETO, Alfredo. O terceiro Analítico e o sem fundo corporal. 1999
9 - In: WINNICOTT, Donald. Explorações Psicanalíticas. Artes Médicas: Porto Alegre, 1994
10 - Exemplo do caso estudado deste paciente que com 4 anos, tendo dificuldades auditivas e fonoaudiológicas fora submetido a cirurgia cardíaca
11 - Lenda grega contada por Manoni In Mac Dougall, 1991
|
|