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A criança, seu lugar na contemporaneidade e as implicações na clínica psicanalítica
Leandro Alves Rodrigues dos Santos
Para Jacques Lacan (1969[1998]), "(...) o sintoma da criança é capaz de responder pelo que há de sintomático na estrutura familiar". Mas, se nos apoiarmos nessa hipótese, estendendo esse raciocínio, pelo que mais, além do sintoma da família, poderia ser capaz de responder um sintoma de uma criança?
Se um sintoma aponta para a verdade de um sujeito, para onde então apontariam os variados sintomas das crianças que chegam hoje aos nossos consultórios? Sem cair na tentação da generalização fácil, poderíamos nos perguntar: haveria algum fio condutor nesse amplo espectro de configurações do sofrimento infantil? Talvez. Mas antes de qualquer afirmativa fortuita, torna-se necessária alguma reflexão sobre o sofrimento infantil na contemporaneidade.
Do que sofrem as crianças hoje? Do mesmo que as crianças relatadas nos primeiros casos dos pioneiros de Psicanálise com crianças, Melanie Klein, Hermine Van Hug Helmuth, Anna Freud e outros?
Ao nos debruçarmos sobre os escritos dessas psicanalistas, pioneiras no atendimento à infância, notamos que, ao menos aparentemente, não recebiam crianças com fracasso escolar, com hiperatividade, apáticas e/ou anórexicas quanto ao desejo de algo da sociedade de consumo, oriundas de novas configurações familiares, de casais separados ou de avós ocupando forçosamente a função materna, ou ainda pior, precocemente amadurecidas, quer seja pela brutalidade da vida ou ainda por pura demanda dos pais. Um breve recenseamento nos escritos desse período denota que o fenômeno se configurava de uma maneira diversa, com uma ênfase em sofrimentos muito mais facilmente caracterizáveis como quadros severos, incluindo-se aí as psicoses, os casos limites e as derivações de situações extremamente traumáticas, como por exemplo, as guerras mundiais que assolavam aquela parte do mundo.
E em terras brasileiras, nesse século que se inicia; como chegam e, do que se queixam as crianças que nos procuram? Em primeiro lugar, um aspecto parece não ter mudado: ainda são os pais que nos procuram, alguns consternados e preocupados, outros não poucos quase sempre se queixando da criança, ou ainda de instituições que se queixam de suas crianças, como por exemplo, a escola. Mas, excetuando-se esse aspecto, aparentemente ao menos em termos fenomênicos, algo parece ter mudado.
Antes que os mais afoitos se apressem em afirmar que para a Psicanálise o fenômeno pouco importa, pois é certamente imaginarizado, seria então prudente nos determos um pouco mais nas questões que antecedem a queixa desses pais que nos procuram, além dos aspectos que se imbricam com o social, algumas vezes relegado a um obscuro segundo plano pelo psicanalista.
E, se falamos de social, cabe lembrar que estamos num momento histórico, social e cultural profundamente marcado por um fenômeno que atravessa a vida cotidiana de todos: o consumismo. Para uma parcela da população, trata-se de não saber o que consumir, para outra, o de não poder consumir, mas, a despeito disso, o desejo de consumo é fortemente fomentado em todas as esferas das sociedades regidas pelo discurso capitalista.
Pois bem, e qual a imbricação desse dito fenômeno na clínica psicanalítica com crianças? A resposta a essa questão pede alguns desdobramentos, não nos esqueçamos jamais do alto poder subversivo que o inconsciente - representante-mor da subjetividade humana - possui, haja vista as histéricas, que por meio de suas conversões se contrapunham ao discurso moralista e conservador da Viena em que Freud vivia, possibilitando o surgimento da Psicanálise.
Seria, então, possível traçar um paralelo - com o devido cuidado e guardadas as proporções - entre o sentido do discurso histérico daqueles idos e o sentido que talvez haja nesses sintomas - ditos da infância - especialmente nos dias atuais?
Um pouco de ousadia não faz tanto mal, algumas vezes nos permite ver mais além e descobrir novos ângulos de uma questão, portanto, num rasgo de ousadia, pensemos que, hoje, os pais, estimulados a consumir, produzir e, por que não, ascender socialmente, talvez destinem um outro lugar psíquico aos filhos, em seu desejo e em sua economia libidinal. Lajonquière(1999) afirma que o " (...)adulto quando se endereça a uma criança demanda-lhe inconscientemente repor aquilo que experimenta estar lhe faltando"(p.96). E, ainda nessa mesma linha, nos recorda que,
"(...) a cota de narcisismo depositada na criança, idealizada ao ponto tal que o adulto quando olha nos olhos dela, recupera a felicidade que acredita ter perdido ou, da qual supõe estar privado. Assim, do fundo desse olhar, retoma-lhe sua própria imagem refletida às avessas ou, em outras palavras, quando olha para uma criança e focaliza de fato aquela outra ideal, todo adulto consegue se ver a si mesmo completo".(p.190)
Se esse raciocínio nos serve, não é de se espantar a quantidade de pais que nos procuram, estranhando porque seus filhos não desejem nada, tudo perde a graça facilmente, nada tem valor, apresentem pouca convicção quanto ao próprio desejo e nada de uma rebeldia saudável. Não quebram vidraças, não transgridem a lei, só ficam enfurnados em seus quartos, com videogames e/ou televisão. Mas, afinal, ele tem de tudo, por que não é feliz?
Essa é a questão que, enigmaticamente, angustia os pais da criança moderna. Mas, como pode atuar o psicanalista nesse cenário? Recusar a demanda? Aceitá-la acríticamente levaria ao risco de estar adaptando a criança ao ideal parental, não muito diferente de quando um consumidor leva um eletrodoméstico à assistência técnica reclamando que não funciona como o esperado, portanto necessita ser consertado.
Um psicanalista não faz parte da troupe de profissionais e de saberes que se prestam a efetuar uma intervenção que se assemelha a uma assistência técnica, tampouco uma criança não se assemelha a um eletrodoméstico, portanto devemos ter um cuidado redobrado quando nos propomos a atender crianças.
De quem é a demanda? Quem sofre com o sofrimento infantil? Por que atualmente está tão difícil suportar a tristeza de uma criança, ou ainda a processos absolutamente normais e esperados de luto?
Afinal, se um brinquedo quebra, imediatamente outro é reposto, não há tempo para um luto da perda do brinquedo quebrado, ou mesmo de um cachorrinho morto, é só repor num pet-shop outro cachorrinho e dar o mesmo nome. Atentemos para o fato de que isso não se aplica somente aos estratos superiores das classes sociais, com sua facilidade de acesso aos inúmeros gadgets que a dinâmica capitalista produz em profusão. Também os mais pobres têm acesso, se não nos shoppings centers, certamente nos camelôs, com seus gadgets importados diretamente de algum país oriental, cópias baratas, mas que certamente funcionam em sua missão de tamponar a falta de uma criança.
Alguém deve estar feliz, sempre feliz! E se os adultos não conseguem, alguém precisa ocupar esse lugar, que sejam os pequeninos, que raramente se opõem à tentação de fazer o outro, o especialmente o grande Outro familiar feliz!
E tudo gira em torno da criança, erotiza-se seu corpo, antecipa-se ao seu desejo, apropria-se de seu suposto desenvolvimento psicológico, cognitivo e afetivo, missão esta cumprida soberbamente pela ciência, que desautoriza o saber da mãe e do pai, este cada vez mais afastado do lugar que ocupava naqueles tempos de autoridade, exagerada ou não.
Alfredo Jerusalinsky (1999) retrata bem esse momento quando afirma que
"(...) destituído o pai, as mães parecem ter substituído nos cartazes de sua demanda o metonímico "Procura-se um homem", pelo metafórico "Procura-se um saber". É aí que a ciência moderna se prontifica oferecendo novos romances. Surge um idílio novo e racionalista: a mãe e o pediatra. O sexo deste último não tem muita importância, já que se trata de um saber científico, e a ciência se pretende não sexual. Dito de outro modo, se trata da ilusão de vir a produzir um saber sem desejo, ou seja, de um saber sem falta.
Os idílios se multiplicam com o mesmo modelo: a mãe e a pedagogia, a mãe e a psicologia, a mãe e o nutricionista, a mãe e o psicanalista. É claro que este último não poderia escapar a esta transferência de um suposto saber científico.
Um casal parental constituído, então, pela mãe, de um lado, e pela ciência, do outro, sustentado pelo princípio jurídico-racionalista de igualdade.
E como virão a ser os filhos desta paixão sem desejo?"(p.08)
Portanto, se uma criança se opõe a esse cenário que descrevemos, talvez essa postura seja muito mais um sinal de relativa saúde psíquica, ao invés de ser considerada como um sinal de sofrimento psíquico, patogênico e passível de ser "tratado" pelos profissionais "psi", que certamente se diferenciam dos psicanalistas, como, aliás, Françoise Dolto(1988) já nos alertava:
"Seja-me permitido formular votos de que os psicanalistas clínicos só tenham de cuidar de casos que, com efeito, decorram das desordens profundas da vida simbólica que datam de antes dos quatro anos de idade e não dessas dificuldades reacionais sadias à vida escolar atualmente efetivamente patogênica. Refiro-me às reações ou crises caracteriais sadias de um sujeito ocupado em resolver dificuldades reais necessárias na sua vida emocional, pessoal e familiar e que, momentaneamente se desinteressou por seu papel de aluno. Os dramas para as crianças, em nosso país e nosso sistema, provêm do estilo de instrução passiva, nos horários e programas obsessivos e que, de modo algum deixa a cada qual uma margem de acesso à cultura. As lições e os deveres esquecemo-nos disto com demasiada freqüência, são meios, mas não fins em si mesmos. (pp 24-25)".
Atentemos para um detalhe, Dolto estava falando do sistema escolar de seu país, a França, o que diria então do sistema escolar de nosso país? É preciso destacar que a escola, enquanto instituição criada pela cultura para filiação de suas novas gerações, reproduz um discurso dominante - nesse momento histórico o discurso capitalista e da ciência - o que redunda num paradoxo, seria possível para a escola se adaptar a esses discursos sem cisões, vicissitudes, percalços e equívocos? Não, e seus membros denunciam essa homeostase imperfeita, quer seja pelos alunos, ou até mesmo pelo corpo docente, igualmente produtor de sintomas que desafiam essa ordem. Haja vista o grande número de professores que buscam os serviços psiquiátricos e de assistência psicológica. O professor está deposto de seu lugar de saber, de autoridade e de "modelo", sendo freqüentemente desrespeitado, na escola pública pela violência física, na escola privada pela violência da relação assimétrica entre as classes sociais, como podemos ver nas frases típicas: "Meu pai paga a escola, posso reclamar para a direção e você pode ter problemas no seu emprego!" Ou ainda em casos extremos; com ditos como: "Você não é diferente de minha empregada lá de casa, depende do salário no final do mês!".
O que essas crianças denunciam com esses discursos? E o mais importante de tudo; como deveria se posicionar o psicanalista frente a esse cenário?
Talvez aqui entremos numa questão ética, onde a clínica psicanalítica, como sempre fez, possa escutar esse mal estar que se apresenta de formas diferentes e fora do usual, mas que igualmente nos demanda um exercício de reflexão e até mesmo, por que não, um re-dimensionamento de nosso instrumental, bebendo na fonte dos textos freudianos que tratam das questões narcísicas e dos variados tipos de mal estar que assolam a civilização, impressionantes provas da capacidade de antevisão de Sigmund Freud no que concerne ao sofrimento humano.
Por fim, à guisa de alguma conclusão, o psicanalista, enquanto cientista do inconsciente e pesquisador da subjetividade humana, deve estar alerta para as armadilhas que a cultura constantemente arma. Na época de Freud, esperava-se que as histéricas parassem de denunciar a hipocrisia em relação à sexualidade, portanto supostamente dever-se-ia cala-las! No caso das crianças que hoje chegam aos nossos consultórios, também deveríamos cala-las? Não, a psicanálise, enquanto discurso e ética, certamente se opõe a qualquer solução de adaptação do sujeito à cultura, mas ao invés disso implica-o na difícil tarefa de suportar a impossibilidade da consecução total de seu desejo, confrontando-o com uma falta que o lembrará ininterruptamente de sua condição humana.
Naturalmente esse discurso também se aplica às crianças, hoje representante de um questionável narcisismo parental, que alienado aos discursos dominantes, impede a possibilidade de assunção de um sujeito nos rebentos, que certamente ultrapassam a condição de consumidores ou de mera potência, de vir-a-ser algo que a falta dos pais insiste em demandar.
Leandro Alves Rodrigues dos Santos
Psicanalista, mestrando em Psicologia (USP/IP).
E-mail: leandro.psi@uol.com.br
Referências Bibliográficas
DOLTO, F., Prefácio In: Mannoni A primeira entrevista em Psicanálise. Rio de Janeiro; Campus, 1981
JERUSALINSKY, A. N., Apresentação In: Calligaris (org.) Educa-se uma criança? Porto Alegre; Artes e Ofícios, 1995.
LACAN, J., Duas notas sobre a criança In: Opção Lacaniana, Ab. 1998, nº 21 (extraído de Ornicar?, Revue du champ Freudien, nº 37, Avril-Juin, 1986, p.13 e 14.) Traduzido por Ana Lydia Santiago
LAJONQUIÈRE, L., Infância e ilusão (psico) pedagógica; escritos de Psicanálise e Educação. Petrópolis: Vozes, 1999.
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