SERIA A CONDIÇÃO FEMININA O TEMA CENTRAL DE "AS HORAS"?
ou
AQUI NINGUÉM TEM MEDO DE VIRGINIA WOOLF. PELO CONTRÁRIO.

Sérgio Telles

(Algumas idéias sobre o filme AS HORAS de X e o livro homônimo de Michael Cunningham)

O filme AS HORAS, de Stephen Baldry, mostra como a adaptação de uma obra literária para o cinema pode ser uma verdadeira transcriação, refazendo-a numa linguagem diferente daquela originalmente usada.

É curioso como significativa parcela dos que escreveram sobre o livro e/ou filme, os viram como um libelo da questão feminina/feminista, mostrando aspectos da condição da mulher, seus impasses, suas patologias. Até mesmo a depressão que ali aparece é vista por alguns como uma característica "feminina"...

Pretendo discutir esse ponto de vista. Mas, antes de abordá-lo, farei algumas digressões. Para tanto, me basearei mais diretamente no livro, pois é difícil falar do filme em si - como tal, uma obra prima - sem que se imponha a referência à obra de Cunningham e esta leva imediatamente a "Mrs. Dalloway", de Virginia Woolf.

Vamos encontrar em AS HORAS, mediados pelo narrador onisciente, as mesmas elucubrações dos personagens, seus monólogos interiores, suas complexas 'streams of counciousness', introspecção especulativa característica de "Mrs. Dalloway", recurso narrativo incorporados no estilo literário de Virginia Woolf através de suas leituras de Freud, já que ele se aproxima das associações livres descritas pela psicanálise.

Essas características ou recursos literários usados por Virginia Woolf em "Mrs. Dalloway" (1925) remetem, por sua vez, ao "Ulísses" (1922) de Joyce.

As aproximações entre os dois livros são inegáveis. "Ulísses" e "Mrs. Dalloway" mostram um dia na vida do personagem central. Se em "Ulísses" acompanhamos o caos anárquico e plebeu instalado na mente de Bloom, enquanto perambula pelas ruas de Dublin, em "Mrs. Dalloway" o mesmo se dá na cabeça de uma mulher instalada no alto da pirâmide social de um mundo rigidamente hierarquizado. Mas o funcionamento psíquico de Bloom e de Clarissa Dalloway é o mesmo; semelhante é o ruminar incessante de seus pensamentos, seu desdobrar lento e minucioso que tenta esforçadamente dar conta das perplexidades e da angústia de viver.

Talvez por causa dessa proximidade, Virginia Woolf tenta desmerecer "Ulísses", como registrou em seu diário, numa anotação de 1922 - "An illiterate, underbred book it seems to me: the book of a self-taught working man, & we all know how distressing they are, how egotistic, insistent, raw, striking, & ultimately nauseating" ("um livro ignorante e mal-educado é o que este me parece: o livro de um trabalhador autodidata, e todos sabemos quão desagradáveis eles são, quão egoístas, insistentes, grossos e chocantes e altamente repugnantes").

Se há proximidades entre os dois livros e os recursos narrativos empregados, não se pode negar que o experimentalismo de Joyce é muito mais radical, ao caminhar para a desarticulação não só do gênero "romance", como da escrita e da própria linguagem. Isso o deixa como um marco na história literária, mas distante dos leitores.

Pessoalmente, como um leitor amante de livros e escritor, não acredito que "Finnegans Wake" seja lido hoje em dia a não ser por 'scholars' em literatura, professores universitários obrigados a escrever suas tediosas teses.

Neste sentido, Virginia Woolf acertou mais a mão. Seus livros são muito mais palatáveis e legíveis, ocupando um merecido lugar no cânone dos grandes autores, dos clássicos, daqueles que serão sempre lidos e amados.

AS HORAS de Cunningham, por sua vez, é um livro que homenageia explicitamente Virginia Woolf, parafraseia com minuciosidade "Mrs Dalloway". Mas não seria justo dizer simplesmente que ele faz um pastiche de Virginia Woolf, que copia seus cacoetes, imita o que é imitável.

O autor do pastiche copia e distorce, mas não tem a mesma envergadura literária do autor que o motiva. Falta-lhe este misterioso misto de inteligência, sensibilidade, criatividade, amor à vida e intimidade com a morte que são próprios dos grandes escritores. E Cunningham mostra em AS HORAS que é um grande escritor. Ele comunga inteiramente com as percepções, intuições, sensibilidades e idiossincrasias de Virginia Woolf. Assim, AS HORAS seria um meta-pastiche, uma homenagem de um grande escritor a outro grande escritor.

Sentimos em AS HORAS aquela mesma fina, aguda, delicada forma de apreender a experiência humana, tão fina e delicada que beira o doentio, o insuportável. Vemos em Cunningham, como em Virginia Woolf, uma percepção da riqueza extraordinária da vida, de seu caráter trágico; uma captação exacerbada da passagem do tempo.

São percepções que a maioria das pessoas embota para conseguir viver melhor, para não entrar em desespero com os sonhos jamais realizados, com o corpo que entra em decadência, com a lembrança daqueles arrebatados pela morte, com o conhecimento de que o mesmo ocorrerá com cada um de nós em data incerta. São percepções que se misturam com outras, advindas do prazer de estar vivo e usufruindo o momento presente, a alegria de poder constatar a beleza e o horror das coisas, sentir o amor e o ódio que permeiam tudo em volta.

Penso que Rimbaud, quando disse a repetida frase "por delicadeza, perdi minha vida", tinha esse tipo de impasse em mente. Talvez para não "perder a vida", tenhamos de sufocar essa sensibilidade aguda que nos dispersa e fragmenta a atenção numa miríade de ocorrências e vivências que quase impossibilita a atuação concreta, o agir concentrado e atento nas tarefas práticas e imediatas exigidas pela realidade. Mas, em assim fazendo, também corremos o risco terrível de "perder a vida", pois estaríamos eliminando algo central, da maior importância, o alimento de nossas almas e nosso espírito se estiolaria nas mesquinharias do dia-a-dia.

Esses aspectos da peculiar relação de Cunningham com Virginia Woolf , concretizada em "As Horas", têm, em minha opinião, um paralelo. É o livro "Charlotte em Weimar", onde Thomas Mann faz sua homenagem a Goethe.

Este livro extraordinário trata da viagem que Charlotte Kestner fez para visitar Goethe, então no auge de seu poder e glória, ocupando o cargo de administrador do ducado de Weimar. Quarenta anos antes, ela fora a inspiradora da heroína de "Os sofrimentos de Werther", um dos livros mais populares de Goethe. Isso lhe trouxera uma incômoda e indesejada notoriedade que a acompanhou por toda a existência, ferindo profundamente sua vida privada. Agora que está velha, quer um acerto de contas com Goethe. Sente que fora usada por Goethe e quer uma satisfação pelo peso que teve de carregar por sua culpa, contra sua própria vontade.

Com este mote, Mann vai mostrar os impasses do convívio do gênio criador com seus próximos e contemporâneos. É uma convivência sofrida e trágica por evidenciar uma distância intransponível com a qual ambas as partes têm de se haver. Por um lado, a solidão do gênio criador, pois, independente de sua vontade, sua largueza intelectual, psíquica, sensitiva, o afasta do comum dos mortais. Já nestes, aparece o ressentimento, a inveja, a noção dos próprios limites, a constatação das desigualdades injustas que o acaso produz.

Somente um gênio como Mann poderia escrever colocando-se na pele de Goethe. Isso fica patente no capítulo onde descreve, na primeira pessoa, o despertar de Goethe. O filho, as mulheres, as amantes, os áulicos, a arte, a literatura, a ciência. Porque fora ele escolhido pelo destino e aquinhoado com tanto? Danação e exaltação, mas sempre solidão. Como não ferir as pessoas, como estar próximo delas sem diminuí-las, como esconder o abismo que entre eles existe e sempre existirá, enquanto for vivo?

Essas considerações em torno de Mann e Goethe se impõem, como disse, pela similitude da relação literária ali expressa com a estabelecida entre Cunningham e Virginia Woolf.

Além disso, há uma outra aproximação, pois um dos temas de AS HORAS é a criação artística, o ato criador, a inefável alquimia que pega o efêmero e transitório e lhe dá consistência e permanência, que apara as formas brutas e ásperas da realidade e as coloca num modelo ideal, que viverá para sempre. Essa aguda percepção do ofício de criar, de produzir arte, é o tema de Virginia Woolf, de Mann, de Cunningham. São artistas criadores que, não satisfeitos em produzir arte, tentam entender os mecanismos de seu ofício, seus prazeres e suas dores. Tentam entender como o praticam, já que este dom lhes é tão natural quanto o respirar. Entenda-se bem, o que é natural é o desejo e a capacidade de criar, mas, exposta à luz do dia a criação, resta ainda o longo trabalho de burilá-la, aperfeiçoá-la, dar-lhe a forma almejada. E nisso vai muito trabalho disciplinado.

Centrando-nos agora em AS HORAS, suscita admiração a habilidade narrativa de Cunningham ao criar um rendilhado delicado e cheio de nuances, uma construção enevoada e evanescente, que, não obstante, é sustentada por um inflexível fio condutor.

Cunningham estrutura sua obra tecendo três fios narrativos, em torno de três mulheres - Mrs. Dalloway, Mrs. Brown e Mrs. Woolf. A primeira é Clarissa, a mulher dos dias de hoje, nova-iorquina, editora, que organiza uma festa para Richard, seu amigo poeta aidético, que acaba de ganhar um importante prêmio literário. Tempos atrás, quando jovem, disputara o amor de Richard com Louis e perdera. A segunda é uma mulher de Los Angeles, vivendo em 1949, que se refugia na leitura de "Mrs. Dalloway", tentando escapar da infelicidade de um casamento de aparência. A terceira é a própria Virginia Woolf, que - em 1923 - se prepara para receber, em Richmond, a visita londrina de sua irmã Vanessa e seus filhos. Está, naquele momento, gestando as idéias de "Mrs. Dalloway", aquele personagem que organiza uma grande festa, ocasião em que faz um balanço de sua vida, percebendo-a, mais uma vez, como um andar na corda bamba sobre o abismo hiante da morte. É um forte hino de amor à vida, exatamente por entendê-la como uma batalha minuto a minuto contra a morte, sempre presente e sempre tão à mão, tão acessível..

O que une essas três mulheres?

As três mulheres organizam festas para seus entes queridos. As três mulheres apresentam uma ambígua sexualidade - Clarissa, rejeitada pelo poeta, estabelece uma relação homossexual; Mrs. Brown, em meio a seu tumulto interno, é tomada pelo desejo por uma vizinha; Virgínia Woolf, ao elaborar seu livro, imagina uma personagem que teve um grande amor lésbico irrealizado, além de mostrar-se incestuosamente ligada a sua irmã Vanessa, o que não nos admira, sabedores que somos dos abusos sexuais cometidos contra as duas, na infância, pelo meio-irmão muito mais velho.

As três mulheres expressam a condição feminina. O fazer um bolo (Mrs.Brown), o planejar uma festa (Mrs. Dalloway no romance de Virginia Woolf e no personagem Clarissa), a administração dos serviçais (Virginia Woolf) são atividades nas quais as mulheres tentam expressar suas criatividades e capacidades, escorraçadas que são das atividades "importantes" num mundo regido pelos homens.

Até então, pensamos que Cunningham está contrapondo a vida de três mulheres em épocas diferentes apenas para ressaltar, sim, como muitos disseram, alguns aspectos da condição feminina, em difícil luta para se afirmarem num mundo de homens, regido pela lógica fálica.

Mas algo acontece que muda nossa perspectiva. A habilidade narrativa de Cunningham faz com que um importante dado fique escamoteado até quase o desfecho da trama. Seu livro (na publicação original) tem 23 capítulos e 228 páginas e só no 19º capítulo, página 203, vamos saber o que antes passara despercebido - Richie, o sensível filho que presencia as dificuldades emocionais de Mrs. Brown, é Richard, o poeta aidético. (Diga-se de passagem que esse mesmo efeito "aprés-coup", talvez com impacto um tanto menor, está presente no filme de Bauldry).

Com isso, Cunningham ilustra à perfeição o conceito freudiano de "Nachtraglichkeit", o "aprés-coup", a posteridade. A informação de que Richie é Richard ressignifica toda a narrativa, que passa a ter uma outra dimensão, pode ser lida de outra forma.

Somente então fica claro que Cunningham estava contando, de forma indireta e disfarçada, a história de Richard.

O tema principal de Cunningham não são as três mulheres e sim Richard, o poeta aidético, personagem que escondeu nas entrelinhas, disfarçado e pouco evidente, mantido à sombra destas mulheres e do próprio fluxo narrativo. Richard é o fulcro onde repousa toda a construção narrativa. É ele quem une os três fios narrativos que se interpenetravam tão harmoniosamente, contando as histórias das três mulheres.

O efeito "aprés-coup" permite admirar a grandeza da habilidade literária de Cunningham e, ao mesmo tempo, refazer - na forma linear e direta - a narrativa que ele tão originalmente soube montar.

Se fôssemos refazer a história cronológicamente, veríamos as desventuras traumáticas do menino Richie, cristalizadas num momento privilegiado - um antigo aniversário do pai - quando presencia, impotente e angustiado, o desespero dissociado e despersonalizado da mãe, o vazio da relação entre os pais, a incapacidade dos dois estabelecerem uma comunicação afetiva verdadeira, presos que estão de uma fachada estéril e psicotizante. Richie vê a mãe fugindo da realidade através da leitura compulsiva de Virginia Woolf e intui, quando o deixa com uma vizinha, que ela planeja se matar. Muitos anos depois, vamos encontrar os efeitos daquela vivência traumática na forma como Richie chegou à idade adulta. Ele agora é Richard, o poeta homossexual gravemente enfermo que acaba de ganhar um grande prêmio e que receberá uma festa organizada por uma amiga. Sua homossexualidade pode ser rastreada na estrutura familiar, tal como vislumbramos no episódio da infância. Seu pai, apesar de ser um herói de guerra, não pôde exercer a função paterna, cortar a relação simbiótica entre o filho e a mulher, por estar, ele mesmo, presa de uma idealização denegadora frente a mulher. Desta forma, não possibilita modelos de identificação masculina para o filho. Já a mãe, tomada pela instabilidade, ora seduz, ora abandona Richie, fugindo para a leitura compulsiva. A identificação de Richard com a mãe pode ser detectatada em vários momentos. A começar pela homossexualidade, aqui entendida como decorrente da não castração simbólica que, por sua vez, leva à identificação com o objeto de amor do qual não foi possível se afastar, modalidade descrita por Freud em seu estudo sobre Leonardo. Isso faz com que Richard não possa concretizar seu amor por Clarissa, preterindo-a por Louis, uma relação vivida como menos traumática. A identificação com a mãe vai aparecer ainda no interesse pela literatura e por Virginia Woolf. Para o pequeno Richie, se a mãe admira Virginia Woolf e prefere sua leitura à sua presença, se ela é um outro objeto de desejo da mãe, ele será um escritor, disputando com Virginia Woolf a atenção absoluta da mãe. Finalmente, a identificação com a mãe aparecerá no próprio gesto suicida.

Os traumas derivados da relação ambivalente com a mãe, marcada pela simbiose narcísica e a rejeição mais fria, será a matéria prima para a sublimação e dará origem à obra poética de Richard. Sua produção literária é assombrada pela Mãe, vista ora como Deusa magnifica e poderosa que o protege, ora como Bruxa que o aterroriza.

Ao receber o prêmio literário, Richard refaz o trajeto de sua vida e termina por cometer suicídio - gesto final que condensa tanto a identificação fusional com a mãe como a tentativa desesperada de dela se separar.

A releitura de AS HORAS que acabamos de realizar, proporcionada pela descoberta do habilidoso "aprés-coup" literário, nos faz entender que considerar a condição feminina como o tema central ali abordado é o equivalente a entender o sonho detendo-se em seu conteúdo manifesto, pois, manifestamente, Cunningham centra a atenção nas mulheres e, de forma latente, fala da vida de Richard e das vicissitudes da mente criadora.

Revendo os personagens femininos, todas homossexuais ou bissexuais, é de se pensar se eles efetivamente expressam caracteristicas de uma genérica condição feminina atual ou se, pelo contrário, revela situações muito singulares. Virginia Woolf, gênio literário, se suicida. Clarissa, numa relação lésbica, tem de suportar o irreversível ressentimento da filha, que a acusa de lhe ter negado um pai, sendo, como é, filha de um anônimo doador de esperma. Mrs. Brown, após abandonar o marido e os filhos ainda crianças, vai viver reclusa, entre livros, como bibliotecária, no Canadá - mais uma vez, a arte como espaço alternativo à vida, fuga ou asilo eficaz para alguns (Mrs. Brown, a leitora, não se mata) e muito vulnerável para outros (Virginia Woolf, a criadora, se mata).

Tendo Richard como tema central de AS HORAS, podemos dizer também que o tema central é a criação literária, vista aqui como fruto da sublimação de traumas infantis. Richard sofreu uma infância com um pai esvaizado e uma mãe despersonalizada, dissociada, tendo essa experiência funda marca em sua personalidade e em sua sexualidade, além de ser a matéria prima de sua obra.

Se quizermos, podemos ainda ver AS HORAS como um retrato de uma crise socio-cultural mais ampla, onde vacilam os papéis convencionais do homem e da mulher no crepúsculo de uma injusta sociedade patriarcal regida firmemente pela lógica fálica. No lusco-fusco presente, enquanto os novos valores não estão estabelecidos e onde os antigos não mais se impõem ou até mesmo se invertem (no filme, as mulheres prescindem dos homens, controlam-nos, o pai de Richard é um ser acéfalo e o próprio Richard está ferido em sua masculinidade), parece reinar uma infeliz e triste confusão de papéis, o que proporciona saídas insatisfatórias, como o homossexualismo generalizado, gerador de evidente desconforto.

A meu ver, o abandono da lógica fálica não deve levar a uma implantação de um feminino (ou feminismo) idealizado e sim ao afastamento de toda e qualquer idealização ou onipotência, condição indispensável para que possam conviver em justa eqüidade o masculino e o feminino.

Cunningham parece mostrar o artista como alguém ferido por seu próprio dom, pessoas impossibilitadas de viver como o comum das gentes. Ao contrário do gênio como visto por Mann, que fere os circunstantes com sua grandeza, aqui o artista é alguém machucado, segregando de suas chagas uma preciosa seiva, sua obra. Essa visão se aproxima da de Michaux, que numa de suas "viagens imaginárias", descreve como um povo, que ele chama de Os Hacs, cria seus artistas: "Os Hacs planejaram criar anualmente algumas crianças mártires, que submetem a um tratamento duro e injustiças flagrantes, inventando para tudo razões e complicações ilusórias, baseadas em mentiras, numa atmosfera de terror e mistério. Encarregados deste trabalho estão alguns homens empedernidos, verdadeiros brutos, dirigidos por supervisores astutos e cruéis. Desta forma, eles criaram grandes artistas, grandes poetas, mas também, infelizmente, assassinos e principalmente reformadores - intransigentes incríveis".

AS HORAS é um denso e complexo entretecido de Eros e Tânatos, representando simultaneamente o anseio pela morte e exaltação da vida. Sabendo-se da morte sempre à espreita, organizam-se festas de celebração da vida. Ele abre com o suicídio de Virginia Woolf, em 1941, e o tema do suicídio ecoará em toda a trama. Ressoa em Mrs. Brown, em seus períodos de franca desrealização e despersonalização, uma personalidade 'as if'', deprimida, dissociada, com contato falso e artificial com a família, estando sempre namorando a possibilidade de se matar, desejo captado pela intuitiva criança que a observa com grande paixão. É esse mesmo filho que termina por realizar suas (dela) fantasias de suicídio, anos mais tarde, não antes de escrever uma novela onde um personagem, inspirado na mãe do protagonista, comete suicídio.

Em AS HORAS podemos, mais uma vez, ver a arte como sublimação das experiências e vivências traumáticas, como tentativa de domar a dor das grandes feridas. Cunningham ilustra bem isso ao mostrar como os conflitos do autor penetram na produção de sua literatura. Virginia Woolf ao criar "Mrs. Dalloway", sabe que - no livro - alguém vai morrer, alguém vai se matar, se não a própria personagem central, alguém, um "poeta louco"; em seu livro, a personagem saberá lidar como ninguêm com as empregadas, já que ela mesma, Virginia, se apavora de ter de dar ordens às suas. E, claro, o próprio Richard, o grande poeta, que tem sua produção inteiramente centrada pela Mãe.

A literatura como uma via de expressão e contenção, através da simbolização, daquelas pulsões mais profundas e inarticuladas que controlam o suceder psíquico inconsciente é ilustrada através do comportamento de Mrs.Brown. Sentindo seu psiquismo fragmentado, em permanente estranhamento, fingindo sem parar uma integração impossível, busca alívio na literatura, nos grandes autores. Estaria fugindo da realidade através da leitura, do mundo da fantasia? Estaria procurando ali um eixo que sabe não possuir? A despersonalização de Mrs. Brown é mesma descrita em Virginia Woolf, que inveja os serviçais e outros circunstantes por constatar que eles sabem manter a constância de seus próprios egos, por não precisarem fingir que são eles mesmos. Eles simplesmente são.

Ao concluir, quero citar três momentos específicos do filme de Daldry, para fazer-lhe um pouco de justiça, desde que até agora estive mais centrado no livro. As duas primeiras são cenas excepcionais, mais bem realizadas no cinema do que na literatura.

Uma delas é a cena de suicídio de Richard. Ao matar-se na presença de Clarissa, a amiga que planeja uma festa em sua homenagem, o gesto de Richard poderia ser visto como uma imensa agressão. Mas não é assim. Vivera até aquele momento por Clarissa, mas agora pede licença para partir. Como tinha ela partilhado de sua vida tão intensamente, o matar-se em sua presença é um desdobramento lógico disso, mais um ato de amor.

A outra cena se beneficia dos altos recursos da grande atriz Merryl Streep, que interpreta Clarissa, a mulher de Nova Iorque. É quando, no final, conversa com Mrs. Brown e ouve sua confissão. Sua face deixa transparecer uma complexa postura que, em termos ideais, deveria ser a de que qualquer analista. Uma capacidade de acolher o relato das vivências humanas e do sofrimento delas decorrente, sem julgá-las ou condená-las, mas também sem condescender ou negar todas as suas implicações e conseqüências, por pior que sejam.

A terceira tem outra conotação. Trata-se da cena onde Virginia Woolf discute na estação de trem com o marido Leonard, impondo sua decisão de voltar a Londres, com o que Leonard concorda, chorando. Ouvi várias mulheres de minhas relações, colegas, comentarem essa cena, considerando-a da maior importância, pois ali julgavam ver uma evidência da "impossibilidade" do homem entender o "desejo da mulher", o "mistério" do "desejo feminino".

Pergunto-me se o impacto dessa cena viria mesmo do confronto com o "feminino inacessível ao homem" ou se, meramente, não derivaria de uma vingança fálica das mulheres, que vêem aí - finalmente - uma mulher impondo uma decisão a um homem, quando o muito mais comum é vermos, no cinema, um homem impondo uma decisão a uma mulher que, debulhada em lágrimas, a ele se submete.