De Novo e Sempre, O Mal-Estar na Cultura

Sérgio Telles

O tema que escolhi para falar hoje é um que me interessa excepcionalmente. É aquele que vincula a psicanálise com a cultura, é aquele que usa a psicanálise para entender a cultura e vice-versa.

Como sabemos, depois de descobrir o Inconsciente no trato com as histéricas, Freud - em rápida sucessão - constata que suas observações e conclusões são aplicáveis às outras patologias e à própria "normalidade": há um funcionamento psíquico cuja produção escapa totalmente à Consciência e à lógica racional, produção esta que se manifesta na sintomatologia dos "loucos" e nos sonhos dos "normais", e que se expressa através de uma linguagem cifrada até então incompreensível a ponto de ser-lhe negada qualquer significação. Freud organiza então um edifício teórico abrangente, capaz de nele incluir toda manifestação psíquica humana.

Sendo o Inconsciente patrimônio de todo e qualquer ser humano, com tudo o que ele representa de infantil, extemporâneo, atemporal, imutável, esta dimensão vai ter expressão e consequências extremamente amplas nas sociedades e nas culturas humanas.

Era pois inevitável que, no final de sua vida, Freud voltasse, de maneira mais sistematizada, seu interêsse para os fenômenos culturais e sociológicos. É quando escreve O MAL ESTAR NA CIVILIZAÇÃO, O FUTURO DE UMA ILUSÃO, POR QUE A GUERRA e A QUESTÃO DE UMA WELTANSCHAUUNG. Estes trabalhos poderiam ser considerados como pós-psicanalíticos, no sentido de que só poderiam ter sido escritos após o desenvolvimento pleno e coerente da teorização sobre o Inconsciente, levando Freud suas hipóteses até as últimas consequências.

Expressam eles, a meu ver, a Weltanschaaung psicanalítica freudiana, a concepção de mundo vista por sua ótica. Estas obras foram produzidos na velhice de Freud, estando ele já com o câncer que o abateria no final de 16 anos de sofrimentos e inúmeras cirurgias. Tinha passado pela Primeira Grande Guerra e observava o retorno do belicismo e e do anti-semitismo. Tais fatos davam elementos para que Freud não se sentisse especialmente otimista com a humanidade. Mas as idéias ali expressas não devem ser atribuidas, como alguns o fazem, ao humor depressivo com que Freud os teria escrito. Creio que são decorrência da lógica interna de sua teorização e trazem teses muito fecundas, que continuam muito atuais.

Muitas vezes ouve-se dizer, mesmo dentro do campo analítico, que não existe uma Weltanschauung própria da psicanálise. Acho que essa afirmação tem dois motivos. O primeiro decorre de uma leitura apressada de um dos trabalhos citados acima, a Conferência XXXV, justamente intitulada "A Questão de uma Weltanschauung", a última das "Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise", que Freud escreveu em 1932. O outro motivo penso ser decorrente de uma atitude resistencial e defensiva frente ao conteúdo revolucionário e radical que está exposto nestes quatro trabalhos, na medida em que ali Freud ataca com grande vigor as ilusões mais prezadas pela humanidade, atitude temerária, capaz de polarizar reações negativas.

O próprio Freud se questionava se ao atacar a religião não prestava um desserviço à causa da psicanálise, prevendo a oposição que poderia desencadear e os efeitos prejudiciais daí decorrentes. Sua coragem pessoal e sua postura ética em relação ao que considerava ser a verdade o fez enfrentar o risco, mantendo postura idêntica ao analisar a ideologia marxista-leninista, a qual via como uma outra ilusão que se organizava como uma religião leiga. No calor dos embates ideológicos que dividiram nosso século, sua análise cética, fria e distante poderia ser bastante incômoda, passível de ser equivocadamente confundida com uma posição conservadora, de direita.

Essas obras de Freud demonstram sobejamente como para ele a psicanálise não deveria jamais restringir seu arsenal à aplicação meramente psicoterápica, abdicando de seus interesses mais amplos sobre a sociedade e a cultura.

É interessante lembrar que, no final da vida, ao se debruçar sobre a religião, as ideologias, a cultura, Freud está mirando a realidade externa, o mundo externo, mirando no sentido oposto àquele que preferencial e necessariamente privilegiara, o dirigido ao psiquismo, ao mundo interno. É curioso quando lembramos que no início de sua atividade, Freud estava particularmente interessado neste mundo externo, que - a seu ver - era o gerador dos "traumas psíquicos". Sabemos que naquela ocasião, Freud elaborou sua "teoria da sedução", baseando-se nos relatos das histéricas que se diziam seduzidas por seus pais. Logo Freud abandonou tal teoria, vendo aquelas queixas como fantasias decorrentes das pulsões e relações objetais introjetadas, centrando a partir daí sua atenção no mundo interno.

É um tema da maior importância, como mostra a moderna teorização francesa, exemplificada por Laplanche, que retoma alguns aspectos da "teoria da sedução", enfatizando a relevância da realidade psíquica dos pais na constituição do sujeito, apontando enfoques ditos "copernicanos" e "ptolomáicos" da teoria psicanalitica.

Assim, a polaridade entre mundo externo-mundo interno, com seu correlato realidade-fantasia, é um problema central da psicanálise, na medida em que através dos mecanismos de projeção e introjeção, da identificação introjetiva, das posturas narcísicas de fusão eu-mundo, de "sentimento oceânico" e sua defusão, estes mundos - externo e interno - estão em dinâmica interpenetração.

Isso faz com que o acesso à chamada "realidade" seja algo muito mais complexo do que uma ingênua equiparação com um ato de percepção sensorial faria crer. Este acesso à realidade é a meta final de um trajeto longo e tortuoso, onde a interferência dos desejos conscientes e inconscientes provocam inevitáveis distorções e desvios. Em outras palavras, o que vemos à nossa frente não é necessariamente o que está à nossa frente. O que vemos é o resultado de uma série de "filtros" constituídos por idéias, informações, desinformações, fantasias de realização de desejo. Daí o porque de nossas erros de avaliação da realidade.

As percepções e concepções regidas pelo princípio da realidade devem se impor sobre aquelas regidas pelo princípio do prazer. A realização alucinatória do desejo, própria do funcionamento do processo primário, deve ser substituida pela procura na realidade da realização do desejo, segundo o processo secundário. O "wishful thinking", o pensamento permeado pela realização de desejo, deve ser substituído pelo pensamento regido pelo reconhecimento possível da realidade. Na linguagem lacaniana, o real é inacessível, e a realidade é o produto resultante da rede simbólica e imaginária jogada sobre o real. Na linguagem freudiana, a realidade será sempre fruto de uma Weltanschauung, uma cosmovisão.

Mas o que é mesmo uma Weltanschauung? Assim Freud a conceitua: "Suponho que Weltanschauung seja um conceito especificamente alemão, cuja tradução para línguas estrangeiras certamente apresenta dificuldades.[...] Weltanschauung é uma construção intelectual que soluciona de maneira uniforme todos os problemas de nossa existência com base em uma hipótese superior dominante, a qual, por conseguinte, não deixa nenhuma pergunta sem resposta e na qual tudo o que nos interessa encontra seu lugar fixo. Facilmente se compreenderá que a posse de uma Weltanschauung desse tipo situa-se entre os desejos ideais dos seres humanos. Acreditando-se nela, pode-se sentir segurança na vida, pode-se saber o que se procura alcançar e como se pode lidar com as emoções e interesses próprios da maneira mais apropriada."

Freud logo acrescenta que a psicanálise, não poderia ter sua própria e independente Weltanschauung, pois sendo ela um ramo da ciência, seu ramo "psicológico", deve necessáriamente compartilhar da Weltanschauung que é própria da ciência. É preciso esclarecer, diz Freud, que esta Weltanschauung da ciência já diverge bastante da definição antes proposta, na medida em que apesar de pressupor "uma uniformidade da explicação do universo, o faz na qualidade de projeto, cuja realização é relegada ao futuro".

Vou novamente citá-lo dado a clareza e a importância de suas afirmações. Diz ele: "Ademais, marcam-na (a esta Weltanschauung cientifica) características negativas, como o fato de se limitar àquilo que no momento presente é cognocível e de rejeitar completamente determinados elementos que lhe são estranhos. Afirma (esta Weltanschauung) que não há outras fontes de conhecimento do universo além da elaboração intelectual de observações cuidadosamente escolhidas - em outras palavras, o que podemos chamar de pesquisa - e, a par disso, que não existe nenhuma forma de conhecimento derivada da revelação, da intuição ou da adivinhação".

Deixemos sublinhado que: a) Freud deixa claro que a psicanálise tem sim uma Weltanschauung, que é a cientifica, b) Ao especificar as características "negativas" da Weltanschauung científica, Freud faz uma decisiva declaração epistemológica a respeito da produção de conhecimento, estabelecendo a diferença radical entre o conhecimento produzido pela ciência, obtido rigorosamente dentro dos limites do princípio da realidade, e todas aquelas outras produções que são confundidas com o conhecimento, mas que não passam de ilusões decorrentes da realização de desejo, baseadas que são no princípio do prazer.

O conhecimento científico, assim, não pode se apoiar em "revelações", base de todo o "conhecimento" oferecido pelas religiões. O conhecimento científico é fruto de observação e pesquisa da realidade, produzido num longo processo de tentativa e erro, com seus ensaios e correções, comparações, possibilidade de descrição e reprodução em circunstâncias estudadas. As "revelações" são dados que uma suposta divindade oferece e que devem ser acatados sem maiores questionamentos.

O que está implícito em tudo isso é que diferentes Weltanschauungen produzem diferentes formas de conhecimento. Se já citamos duas Weltanschauungen, a religiosa e a científica, Freud ainda cita mais duas, a artística e a filosófica. Reconhece, entretanto, que a relação mais problemática é a que se estabelece entre a Weltanschauung científica e a religiosa, pois a artística de antemão se supõe uma ilusão, e a filosófica caminha próximo da Weltanschauung cientítica, equivocando-se apenas por sobrevalorizar o poder de suas formulações racionais, o que a faz incorrer em graves erros.

Quando Freud diz que das quatro Weltanschauungen, a relação mais problemática é a que se estabelece entre a religiosa e a científica, é por reconhecer que aquilo que a ciência oferece para a humanidade é muito pouco e muito severo comparado com as onipotentes ofertas proporcionadas pelas ilusões religiosas. Frente às dificuldades da condição humana, com seu desamparo, sua fragilidade, seu desconhecimento, sua perplexidade frente a morte, a religião oferece todas as respostas e reasseguramentos desejados. A ciência, pelo contrário, nos faz ter de lidar com o desconhecido e trabalhar para chegar a um conhecimento eficaz, não nos poupando a visão de nossa própria finitude e limitações.

É verdade que somente assim, reconhecendo o desconhecimento e lutando contra ele é que a ciência produz um saber de valor inestimável, por ser através dele que o homem consegue um progressivo domínio sobre a natureza, criando novas facilidades que possibilitam uma melhor qualidade de vida.

Mas para a grande maioria das pessoas, isso é irrisório frente às "certezas" que a religião oferece. Frente ao desamparo e à morte, nossos medos mais arraigados, a religião oferece uma organização que reproduz a situação infantil, onde pais todo-poderosos cuidam de filhos desvalidos, dão todas as respostas, todas as garantias.

Neste ponto central, a religião é o oposto da ciência, representada aqui pela psicanálise. A religião atende aos mais profundos e regressivos anseios inconscientes de proteção e amor, enquanto a psicanálise (a ciência) mostra o infantil e regressivo deste desejo e conclama para o homem lutar com suas próprias forças para superar os dilemas que são inerentes à sua existência. O pensamento científico e o pensamento religioso são antípodas irreconciliáveis, sendo o cientifico facilmente invadido por aquele outro.

Se podemos estabelecer a diferença entre conhecimento e as ilusões fruto de realização de desejos infantis proporcionados pela religião, não se pode ignorar ou diminuir a extraordinária importância que esta exerce - justamente por este motivo - para a vida humana.

Como está claro, as Weltanchauungen cumprem um importante papel defensivo na angústia decorrente do desamparo humano. Com excessão da cientifica, são estruturas simbólicas que possibilitam a representação de um mundo organizado de acordo com ilusões que amenizam aspectos mais ásperos da realidade da condição humana.

As ideologias que marcaram tão intensamente o nosso tempo podem ser consideradas como Weltanchauungen. As ideologias, quer sejam de direita (os delírios nazistas do 'superhomem', da 'raça pura ariana') ou de esquerda ( a ditadura da proletariado), organizam todo um modo de ver o mundo e a realidade, veiculam fortes paixões, atendem a fantasias de realização de desejo que determinam modelos ideais de organização social que os aproximam inteiramente da Weltanschauung religiosa.

Pode parecer chocante esta equiparação entre nazismo e comunismo, mas a faço propositadamente para ressaltar o aspecto ilusório comum às duas, bem como os efeitos totalitários que as duas produziram na realidade. Mas não posso deixar de dizer que, a meu ver, são ilusões qualitativamente diferentes, pois uma coisa é fantasiar a construção de uma sociedade regida por uma raça superior que deveria destruir todas demais (nazismo) e outra coisa é fantasiar a construção de uma sociedade organizada racionalmente de modo que se eliminem as grandes injustiças sociais (comunismo). Poder-se-ia dizer que numa ilusão predomina a influência de Tânatos, na outra a de Eros. Aliás, em que pese o ceticismo de Freud frente ao comunismo, como logo veremos, ele valoriza a importância do desejo de organizar racioanalmente a sociedade implícito naquela ideologia como um importante passo da humanidade frente a uma atitude mais adulta e responsável, distante da postura infantil religiosa, que deixa a deus ou ao destino o poder de reger suas vidas.

Voltando às Weltanschauungen, como se formam estas cosmovisões, estas Weltanschauungen, estas ideologias? Já vimos que elas decorrem de fantasias de realização de desejo, com bases na idealização infantil. Lembramos que o sujeito se constitui dentro da família, onde os pais oferecem os modelos básicos de identificação organizatória do aparelho psíquico, veiculando para o filho, juntamente com a linguagem, os valores básicos da cultura onde estão imersos e aqueles mais específicos, próprios da família. Assim, as cosmovisões e ideologias de cada família serão adotadas ou não pelo filho, em função das identificações ou movimentos opostos a ela, frutos da conflitiva edipiana. Concordando ou não com a Weltanschauung dos pais, estes valores serão introjetados, farão parte do ideal do ego e do superego, constituirão importante componente da identidade do sujeito. Esses valores possibilitarão laços sociais, através da formação de grandes grupos geradores de identificação entre seus membros.

Tendo em mente sua participação como componentes da identidade do sujeito, fica claro que eventuais abalos nestas visões de mundo, nestas Weltanschauungen, nestas ideologias, possam ter efeito profundamente desestruturador para o sujeito em causa, que sente tais abalos como ameaça a sua própria integridade psíquica.

Estes dias em que comemoramos os 500 anos do Descobrimento oferecem um exemplo disso. Imaginemos o trágico efeito que a chegada do colonizador europeu provocou sobre a Weltanschauung dos ameríndios. Modo de se ver, de ver o mundo, ver a relação com o sagrado - tudo posto em cheque da maneira mais radical e irreversível.

Um outro exemplo atual diz respeito àqueles que - como eu - comungavam com uma ideologia de esquerda e que foram surpreendidos com as reviravoltas trazidas pela história, fazendo-nos perder referenciais organizatórios idealizados importantes. Isso gera em muitos uma penosa desorientação que é combatida, não poucas vezes, com um cego aferrar-se à situação anterior, a um negar a realidade atual. Penso que somente elaborando-se o luto por estas formações ideais se recuperará a capacidade de propor novos modelos de mudança, diferentes daqueles que a realidade demonstrou serem inexequíveis.

De fato, a queda do muro de Berlim e a revelação dos horrores totalitários da ditadura do proletariado nos forçam a reconhecer que o sonho de mudar o mundo através da revolução levou a aberrações inomináveis com elevado custo humano. Este reconhecimento é doloroso, mas sua negação leva a uma paralisia depressiva.

É necessário entender que se a solução desejada para os problemas sociais (revolução, ditadura do proletariado, etc) se mostrou inadequada, isso não faz com que fique anulada a visão crítica das distorções do capitalismo que geram a injustiça social, não faz vencedora a ideologia de direita.

De certa forma, a depressão causada pela perda do sonho de poder mudar o mundo, de ter um papel ativo na construção de um mundo melhor, é importante componente do mal-estar da cultura hoje em dia. Joel Birman acha que isso é também um elemento importante na atual crise que da psicanálise. Diz ele que se nos anos 60 se acreditava que era possível mudar o mundo externo com a revolução, também se acreditava que era possível mudar o mundo interno com a psicanálise. Como o primeiro se revelou impossível, isso desencadeou uma descrença na segunda possibilidade.

Em O MAL ESTAR NA CIVILIZAÇÃO, Freud nos mostra como o desamparo (Hilflosichkeit) no qual o ser humano chega à vida é decisivo para a estruturação de seu psiquismo. A este ser humano não é dada outra escolha a não ser se alienar no desejo deste outro do qual depende completamente. Presa de sua insuportável fragilidade e dependência, o pequeno ser humano se imagina como uma unidade com a poderosa mãe. Não há separação, não há falta. Ele está completo, vivendo o narcisismo primário, lugar do ego ideal.

O inevitável rompimento deste estado é que dá origem ao sujeito propriamente dito, que somente então se reconhece como tal. Este rompimento do narcisismo primário é traumático e violento, provoca uma ferida narcísica irreversível, desencadeadora da agressividade, na medida em que força o sujeito a reconhecer os limites entre ele e o outro, entre o eu e o não-eu, deixando exposto assim a falha e falta na qual nos estruturamos incompletos e, portanto, desejantes.

É esta a matriz do Inconsciente, que, como Freud diz, nada mais faz que desejar, desejar restabelecer aquela unidade, aquela completude para sempre perdida, aquele estado fusional, vivência que nos colocava além do desejo, no gozo do corpo da mãe, sob a fôrça da pulsão de morte.

Em O MAL ESTAR NA CIVILIZAÇÃO, Freud diz que na pulsão destrutiva, agressiva, advinda da pulsão de morte, está o maior perigo à civilização. Além da identificação e das relações amorosas, a única forma de contornar, controlar e reprimir a agressividade humana é através do processo de sua internalização. Desta forma, a agressão ao invés de ser dirigida para fora, se volta para dentro de cada um de nós. Isto se dá através da ambivalência do complexo de Édipo reforçada pela pulsão de morte, pelos processos de identificação, responsáveis pela formação do super-ego, que - entrando em tensão com o ego - estabelece o sentimento de culpa.

O sentimento de culpa seria o mal-estar da cultura, o preço de vivermos em sociedade, reprimindo a sexualidade e a agressividade. Sob esta ótica, o mal-estar é estrutural, próprio dos processos de organização do psiquismo do homem, do fato de ele existir, de ser, pois ele só pode ser e existir como homem dentro da civilização. A existência humana é problematizada por não mais ser natural. Em relação a ela, as leis da natureza são substituidas pelas leis da cultura. Por esta razão, se - por um lado - a civilização em si, provoca um mal-estar, por outro lado, sem civilização não haveria humanidade, seríamos apenas outros primatas regidos pela natureza. A primeira e maior lei cultural, aquela que nos separa definitivamente dos outros animais, é o tabu do incesto, a regulamentação das relações sexuais, com a consequente organização das relações de parentesco, presentes em qualquer sociedade humana, mesmo naquelas ditas primitivas.

Sendo assim, vê-se que o mal-estar independe das estruturas sociais externas para se organizar como tal.

Era por ter essa visão da importância das pulsões e da forma como se constitui o sujeito que Freud via com grande ceticismo as afirmações do marxismo-leninismo que, supervalorizando a noção da importância dos fatores econômicos na organização social humana, acreditava estar construindo um homem novo ao abolir a propriedade privada, tida como a corruptora de sua natureza originalmente boa.

Diz Freud: "A agressividade não foi criada pela propriedade. Reinou quase sem limites nos tempos primitivos, quando a propriedade ainda era muito escassa, e já se apresenta no quarto das crianças, quase antes que a propriedade tenha abandonado sua forma anal e primária; constitui a base de toda relação de afeto e amor entre as pessoas (com a única excessão, talvez, do relacionamento da mãe com seu filho homem). Se eliminamos os direitos pessoais sobre a riqueza material, ainda permanecem, no campo das relações sexuais, prerrogativas fadadas a se tornarem a fonte da mais intensa antipatia e da mais violenta hostilidade entre homens que, sob outros aspectos, se encontram em pé de igualdade".

A agressividade, e alguns aspectos anais da propriedade, se assentam no arcaico desejo de posse do objeto amoroso, da posse do outro, dialética que se instala nos momentos de estruturação do sujeito. São sentimentos que não são abalados por mudanças superestruturais. Além do mais, a idéia de que a distribuição equitativa da propriedade seria possível, de que com isso se poria fim às diferenças entre os homens, base das lutas, lembra Freud, não passa de uma fantasia, de um desejo distante da realidade. Diz ele: "Quem quer que tenha provado as desgraças da pobreza em sua própria juventude e experimentado a indiferença e a arrogância dos abastados, deveria achar-se a salvo da suspeita de não ter compreensão ou boa vontade para com os esforços destinados a combater a desigualdade de riqueza entre os homens e tudo a que ela conduz. Certamente, se se fizer uma tentativa para basear esta luta numa exigência abstrata, em nome da justiça, da igualdade para todos os homens, existirá uma objeção muito óbvia a ser feita: a de que a natureza, por dotar os indivíduos com atributos físicos e capacidades mentais extremamente desiguais, introduziu injustiças contra as quais não há remédio" (grifos meus). Ou seja, a forma absolutamente aleatória e injusta com que a natureza distribui os dons de beleza e inteligência continuaria gerando privilegiados e desprivilegiados, mantendo motivos para a competição, a rivalidade, a inveja e a luta entre os homens.

Sendo o malestar estrutural, independente das organizações sociais, implicaria isso um niilismo político freudiano? Todos os modelos políticos sociais seriam igualmente enganosos e ilusórios? Tanto faz um regime totalitário como uma democracia? Mais ainda, sendo o mal-estar estrutural, implicaria também um niilismo terapeutico da psicanálise?

Claro que não, pois ao acreditar que a única salvação do homem está na aceitação da civilização como uma de nossas maiores conquistas e, dentro dela, a Weltanschauung científica, Freud disto faz decorrer uma série de consequências das mais importantes, pois esta Weltanschauung só pode ser estabelecida se o Estado tiver interesse em educar as massas, dar oportunidades para seu crescimento e desenvolvimento, afastando-as da ignorância e do obscurantismo. Exige-se pois um Estado iluminista, que permita o crescimento intelectual de seus cidadãos, para que possam desenvolver suas potencialidades ao máximo, afastando-os de uma tutela infantilizadora e castradora. Neste novo iluminismo, evidentemente, se inclui o conhecimento da importância do inconsciente e de sua presença em todo ato humano.

Do ponto de vista terapeutico, Freud sustenta que somente ao superar as amarras narcísicas onipotentes, o que possibilita o assumir sua verdadeira dimensão trágica de ser-para-morte, o homem pode desabrochar plenamente em todas as suas possibilidades.

Se Freud criticava a URSS por acreditar que o final da propriedade privada acabaria com a agressividade, sem reconhecer que esta tem bases na posse do objeto amado, na analidade, o que pensaria ele hoje da sociedade capitalista, onde a "propriedade privada", travestida de e estilhaçada em "objetos de consumo" é estimulada incessantemente pela mídia e pela propaganda, fetichizando-a a mais não poder? A ilusão alimentada pela ideologia é que consumir, comprar, ter a propriedade dos mais diversos objetos trará a felicidade, a desejada completude narcísica perdida.

O que diria de nossa sociedade atual, denominada por Debord como "sociedade do espetáculo"? Essa sociedade onde o poder - seja qual for sua inclinação - para se perpetuar em sua situação de privilégio instala o "espetáculo", onde a realidade é totalmente escamoteada pela manipulação das massas através da midia e da propaganda, tornadas onipresentes e oniscientes, ambas a venderem ilusões e mistificações? Nesta sociedade, a mídia, em aparente pletora de informação, na verdade desinforma sistematicamente na medida em que não expõe, ou o faz de forma distorcida, justamente aquilo que efetivamente interessa saber e informar. Ambas - midia e propaganda - se empenham em fragmentar o raciocínio lógico e destruir a noção de história, promovendo um eterno e autônomo presente, na ignorância ou na negação de um passado ligado ao futuro. Nesta sociedade, a irracionalidade a tudo permeia, a produção econômica é regida por demandas artificialmente criadas e a única lógica vigente é a da permanência do poder, que usa de todos os recursos para se perpetuar. "O espetáculo confundiu-se com a relidade, ao irradiá-la", diz Debord.

Claro que tudo isso está muito longe dos pressupostos sustentados pela Weltanschauung cientifica , psicanalítica, em sua luta contra a ilusão. Aqui tudo alimenta a ilusão, tudo conspira contra a verdade.

Falamos antes como o acesso à realidade é difícil em função das ilusões decorrentes da realização de desejo, ilusões que - por sua vez - organizam-se em Weltanschauungen, das ideologias, religiões. O que Debord acrescenta com grande clareza é a forma como o poder - seja ele qual for - não tem interesse em proporcionar o acesso das massas à efetiva compreensão da realidade, coisa que inevitavelmente colocaria em risco seus privilégios. Para tanto, o poder manipula incessantemente as Weltanchauungen moldando-as dentro de seus interesses.

Por dificultar o acesso à realidade, por alimentar sistematicamente ilusões, por negar a castração simbólica, essa "sociedade do espetáculo" dá margem ao que muitos chamam de "novas formas de subjetivação", que poderiam ser entendidas como novos transtornos de caráter, os transtornos de órdem narcísica, as personalidades borderline.

Birman afirma que as "depressões", "síndromes do pânico" (essas duas grandes vedetes dos consultórios atuais) e as toxicomanias decorreriam da frustração narcísica. A necessidade de manter a satisfação narcísica alimentaria o narcotráfico e a própria ênfase atual da psiquiatria na farmacologia, a seu ver, seria uma contrapartida, um movimento próximo ao do narcotráfico, por enfatizar a crença na possibilidade de ter rápidas e fáceis satisfações químicamente condicionadas, ignorando a importância do mundo simbólico do paciente.

Vejo a grande incidência dos distúrbios narcísicos atuais de uma forma um tanto diferente. Se entendemos o narcisismo como o momento de fusão com o objeto primário, as disfunções narcísicas apontam para a existências de sujeitos nos quais a castração simbólica não operou adequadamente, deixando-os permanentemente numa atitude de adição frente a suprimentos narcísicos dos quais não podem abrir mão, sem os quais não podem subsistir. Esses suprimentos narcísicos poderão ser fornecidos pela droga ou pelo outro, ao qual há uma aderência, uma dependência fusional pouco reconhecida. Nesses casos não há o reconhecimento de uma efetiva alteridade, pois o sujeito não se discrimina inteiramente do objeto, está nele entranhado sem o reconhecer e sem se reconhecer. Aparentemente ele "usa" o outro, na verdade ele necessita vitalmente deste outro, não poderia existir sem ele.

Ao lado da superestrutura constituída pela "sociedade do espetáculo", que outras explicações teríamos para o aparente aumento destas patologias narcísicicas? Seria - como muitos dizem - a decadência do nome-do-pai, da lei, o que resultaria numa castração simbólica evitada? A família - por vários motivos - não estaria mais exercendo sua função primordial de lugar onde se estrutura a subjetividade, onde se constitui o sujeito humano, onde a função materna e a função paterna tomam corpo e são exercidas, proporcionando as matrizes identificatórias essenciais, mediando os padrões culturais da sociedade para as novas gerações?

Como já foi dito, esse mundo da patologia narcísica é largamente alimentado pela "sociedade do espetáculo". A mídia, especialmente a toda-poderosa televisão, nos bombardeia initerruptamente com imagens de sucesso sexual e financeiro, mostrando um novo olimpo, onde desfilam os atuais deuses cheios de beleza, juventude, dinheiro e fama. Ela promete a acesso a este olimpo, desde que sigamos suas instruções de consumo, insistemente propagadas através da publicidade. Isso tem um efeito altamente nocivo. Sabemos que a publicidade em si é enganosa, é uma falácia. Para vender seu produto, apela para a fantasia de todos, promete a realização de secretos desejos inconscientes. Sabemos de tudo isso, mas, como diz Mannoni, "mesmo assim", seguimos as instruções de consumo, na impossível esperança de atingir o paraíso prometido. Quando se esgota a denegação e a realidade se impõe, resta apenas uma grande frustração com as promessas não cumpridas, um aumento das feridas narcísicas, um imenso incremento da inveja frente aos felizes habitantes do olimpo.

Dizendo de outra forma, a televisão impõe padrões narcísicos absolutamente irrealísticos veiculados massivamente através da publicidade, frente aos quais todos nós reagimos desenvolvendo uma forma perversa de pensar, como disse Mannoni..

Frente ao narcisismo inevitavelmente ferido pela realidade, só restam duas alternativas. A primeira alternativa é tentativa desesperada de restaurá-lo, numa insana procura de subsídios narcísicos. Drogas, relações fusionais, negação da alteridade, intolerância, projeção do insuportável, o querer acreditar que tudo se resolve facil e rapidamente. Às vezes me parece que a psiquiatria, como diz Birman, talvez inadvertidamente, entre por esta via, acreditando tudo poder fazer com as drogas, dispensando a dimensão humana, subjetiva, simbólica do paciente. Todas estas medidas estão intrinsecamente ligadas à forma de funcionamento da "sociedade do espetáculo".

A outra alternativa é a que aquela que a psicanálise oferece, indo na contra-mão do espírito do tempo, nadando contra a atual maré, afrontando a "sociedade do espetáculo". É proporcionar o confronto com a inevitável ferida narcísica da castração, única via para uma integração maior do psiquismo e um contato mais efetivo com a realidade interna e externa de cada um. Não deve nos produzir muita admiração, constatar que os compradores de ilusão, e eles são legião, não se interessam muito por tal mercadoria.

Referências Bibliográficas

Freud - obras citadas no texto
Mannoni, Octave - Chaves para o Imaginário - Vozes - 1973
Debord, Guy - A Sociedade do Espetáculo - Contraponto - 1997
Mal-estar na atualidade - Joel Birman - Civilização Brasileira - 1999
Palestra conferida na inauguração da Sociedade de Psicoterapia Psicanalítica do Ceará - Fortaleza, junho de 2000