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Em Memória de Jacques Derrida

Homenagem de René Major a Jacques Derrida,
publicada no Le Monde

Eu sabia que, segundo a lei da amizade, como ele mesmo se empenhou em demonstrar, um deve sempre morrer antes do outro. Mas eu sempre me recusei a pensar que ele seria o primeiro. Eu cheguei mesmo a dizer-lhe isso um dia. Ele se surpreendeu. Realmente, por que lhe recusar isso? Não era ele sempre o primeiro a se aventurar nas questões mais difíceis, a dá-las para refletir ainda durante muito tempo? Quem terá, melhor que ele nesse dia, pensado a morte do outro, a terá pensado sem cálculo, sem culpa, sem perdão, sem expiação, sem dívida? À parte de tudo que nos é tão familiar.

Como não tremer no momento de pronunciar aqui mesmo seu nome, Jacques Derrida, no entanto com tanta freqüência pronunciado, como ele próprio tremeu pela morte de seu amigo Maurice Blanchot, no momento de pronunciar seu nome? Falar, calar-se, um tão impossível quanto o outro, como ele disse por ocasião da morte de um outro amigo, Paul de Man. As forças e a voz nos faltam, como elas lhe faltavam nesses últimos dias. Elas faltam a todos aqueles que tiveram a sorte de conhecê-lo, de compartilhar sua amizade, e para quem sua ausência será para sempre impensável. Uma amizade cada vez única, como é único o fim do mundo [1] que sua interrupção leva com ela.

Foi uma amizade de quarenta anos sem sombra. Eu não saberia dizer porque ela foi sem sombra. O que sei é que nenhum álibi vinha entravá-la. Quantas vezes levei-o a outro lugar, a Lille, a Toulouse, a Montpellier, a Londres, a Madrid, ao Rio de Janeiro, sem que ele se esquivasse. A cada vez, ele abria ao pensamento novos caminhos, à vontade, tanto na psicanálise como na filosofia ou na literatura. Ele me fez participar, sem que isso representasse em nenhum momento qualquer contrato de permuta, de tantos colóquios, em tantos lugares e países. Nós estávamos juntos, nós nos preservávamos juntos, sem estarmos num conjunto nomeável. Um dia nós nos perguntamos sobre o que nos fazia estar juntos. Ele me respondeu: “São nossas dissidências, nossos gêneros inclassificáveis”. De hoje em diante, nós estaremos juntos separados na noite. Estou certo de que outros também o estarão como eu.

Diz-se hoje em dia que ele é “o último grande pensador”. E isso é verdade; é portanto o fim de um mundo. Todo um mundo! Um mundo onde podíamos contar com ele para lançar uma luz sobre tantas questões que deixam o futuro tão incerto, tão improvável. Sejam elas questões políticas, jurídicas, sociais e inconscientes, ou que digam respeito à guerra, à democracia, ao perdão, à hospitalidade, à justiça, à imunidade e à auto-imunidade, à relação com o outro como qualquer outro. Tudo o que for preciso de hoje em diante pensar com ele sem ele.

Jamais conheci um pensador de uma tal potência que tivesse tanta consideração pelo outro. Nos colóquios onde se faziam palestras em torno de sua obra, ele podia responder longamente a seus interlocutores dando provas da mais minuciosa escuta. Ele era igualmente atencioso e generoso nas suas amizades.

Interrogando-se sem descanso sobre tudo com uma acuidade incomparável, ele também se interrogava sobre si mesmo. Convidado no ano 2000 para os Estados Gerais da Psicanálise, ele tinha baseado suas proposições sobre a crueldade e sobre um impossível possível para além de uma soberana crueldade perguntando-se se o único discurso que, sem álibi teológico ou outro, podia reivindicar a coisa da crueldade psíquica como sua causa própria, não seria o da psicanálise, o único em que o mal radical não seria abandonado à religião ou à metafísica e poderia dar conta de um gozo em fazer ou em deixar sofrer, em se fazer ou em se deixar sofrer, a si mesmo, o outro como outro, o outro e os outros em si. Os tempos que são os nossos têm de sobra exemplos os mais insustentáveis.

Recentemente, quando ele foi atingido por um mal que o fazia sofrer quotidianamente, ele se perguntava se tudo o que ele tinha dito naquele dia não estaria também na antecipação do que lhe estava acontecendo. Hoje acho no pós-escrito acrescentado à sua conferência: “E se houvesse “isso sofre cruelmente em mim, em um eu” sem que se pudesse alguma vez suspeitar de que alguém exercesse uma crueldade? Ou que a desejasse? Haveria então crueldade sem que ninguém seja cruel.[...] E se um perdão puder ser pedido pelo mal infligido, pela ofensa de que o outro possa ser a vítima, não posso também ter que me fazer perdoar o mal de que sofro?”

Temo que o mal de que nós vamos sofrer, nós, seja imperdoável.

René Major
9 de outubro de 2004

[1] Jacques Derrida, chaque fois, la fin du monde, édition, Galilée 2003.
Em inglês: The work of mourning, The University of Chicago, Paris, 2001.

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